15 setembro 1976
Apaga-se a última estrela
Com a morte de Mao Tsé-tung, seu líder absoluto há três décadas, a China perde a última e maior figura de sua
constelação de heróis nacionais — e mergulha num futuro de incertezas.
Desde o início, para a China, 1976 foi um ano carregado de desgraças. Inundações assolaram várias províncias, um gigantesco meteoro espatifou-se contra a região nordeste e, começando a 28 de julho, uma avassaladora sucessão de terremotos espalhou pelo país destruição e mortes ainda não avaliadas em toda a sua extensão. Finalmente, na última quinta-feira, 15.º dia da oitava lua, segundo o antigo calendário chinês, o rosário de infortúnios seria coroado com a conta de talvez mais pesadas consequências: aos 10 minutos da madrugada, morreu o líder que quem sabe mais fundo tenha marcado a vida do país, em seus três milênios de história — Mao Tsé-tung, vencedor de uma sangrenta guerra civil de mais de vinte anos, dirigente supremo da nação nos últimos 27 e dono de uma autoridade absoluta, semidivina, que transformou radicalmente a China e mudou o destino de seus 800 milhões de habitantes.
Fossem outros os tempos e o nexo entre as várias catástrofes seria imediatamente estabelecido. Pois, segundo a milenar cosmologia chinesa, desastres naturais eram o prenúncio de que chegara para o imperador, finalmente, o momento de perder o “Mandato dos Céus” —o direito absoluto e incontestável de governar. Seja como for, o imperador-guerrilheiro que foi Mao, o filho de camponeses transformado em algo próximo de uma divindade entre seus concidadãos, desaparecido dois meses e meio antes de completar os 83 anos, teve sua morte anunciada, apropriadamente para o país que forjou, na forma de um comunicado do Comitê Central do Partido Comunista. “O camarada Mao Tsé-tung”, dizia a nota, “respeitado e querido líder de nosso Partido, nosso Exército e das diversas nacionalidades do nosso povo, grande mestre do proletariado internacional e das nações e povos oprimidos do mundo, morreu em consequência do agravamento de sua enfermidade, apesar de ter recebido meticuloso tratamento médico em que foram esgotados todos os recursos.”
Nenhum analista de qualquer parte se atreveu a prever com exatidão que efeitos terá na condução e na vida do país a morte do líder. Com Mao, desapareceu o último dos grandes forjadores da história do século XX. E, para os chineses, apagou-se a última e maior das estrelas de uma constelação de heróis que já fora desfalcada, ainda neste ano, de figuras como o primeiro-ministro Chu En-lai, braço direito de Mao desde o início da Revolução Chinesa, em 1927, e segundo homem na mais alta hierarquia chinesa desde a vitória da Revolução, em 1949, e o marechal Chu Teh, ex-comandante supremo do Exército Popular de Libertação.
Não é de surpreender, assim, a perplexidade agora dominante nas principais chancelarias do mundo quanto aos rumos que a China tomará, daqui para a frente, tanto no plano interno como em suas relações com os Estados Unidos e a URSS. Nada de radical, é verdade, deverá ocorrer de imediato: o país provavelmente será governado por um colegiado em que estarão representados membros tanto da corrente “radical” como da “moderada” do Partido, das Forças Armadas e dos diversos organismos do Estado, com Hua Kuo-feng, o atual primeiro-ministro, à frente. Para o futuro, porém, não se exclui a hipótese de que a Revolução chinesa enverede novamente, como no passado, por imprevisíveis e atormentados caminhos, a partir da inevitável disputa pelo poder.
(legenda) Na grande praça Tien An Men, em Pequim, a reverência a Mao Tsé-tung
A morte de Mao só foi anunciada às 16 horas da quinta-feira, com um atraso de mais de dezesseis horas, e provocou enorme comoção. O primeiro sinal de que algo havia acontecido foi a transmissão da Internacional, o hino dos comunistas em todo o mundo, pela Rádio de Pequim. A emissora pedia também que todos os chineses estivessem
perto de um aparelho de rádio às 16 horas, para uma “importante comunicação” — o que, de certa forma, preparou os espíritos.
Soluçando e chorando abertamente, centenas de pessoas concentraram-se minutos depois na imponente praça Tien An Men —a praça da Paz Celestial, em Pequim, na entrada da Cidade Proibida, cujos muros cor de ocre escondiam a residência de Mao. Em pouco tempo, milhares de bandeiras vermelhas, muitas improvisadas com colchas, túnicas e outras peças de roupa, surgiram nos balcões, nas ruas, nas praças, nas janelas de casas e edifícios, enquanto os alto-falantes tocavam música fúnebre, a “Internacional” e o hino chinês, “O Oriente é Vermelho”. Pelas ruas, repetiam-se cenas de lamentação. Pessoas passavam em bicicletas, equilibrando-se para enxugar os olhos.
Um grupo de choferes de táxi chorava reunido à volta do rádio de um carro. Homens e mulheres de todas as idades, jovens e crianças choravam em lojas, nas praças, em postos médicos, dentro dos ônibus. Depois, começaram a aparecer as faixas pretas nos ombros dos que usavam trajes claros, e flores de tecido nos que se vestiam de branco.
Muitos usavam na roupa um crisântemo branco — símbolo do luto e da dor na China. Nas ruas reinava um completosilêncio, embora elas estivessem cada vez mais cheias. Com o crepúsculo, a lua cheia começou a iluminar a imensa Praça da Paz Celestial e o grande retrato do presidente sobre o portal da Cidade Proibida ficou cercado de flores e faixas de saudação. No ar da cidade havia um intenso perfume de ciprestes das coroas fúnebres.
No interior, a notícia demorou mais a correr. É outono na China, e avançam os preparativos para a colheita. Pouco a pouco, porém, começaram a se formar nas estradas longas filas de bicicletas, carroças e, ocasionalmente, caminhões cheios de camponeses, em direção aos centros urbanos. Nos vilarejos, onde os girassóis já crescem altos, acompanhando os muros, trabalhadores se reuniam à volta de aparelhos de rádio. O rádio transmitia a nota do Partido lembrando que Mao fizera praticamente tudo: liderara a Revolução e o Exército, vencera “os oportunistas de esquerda e de direita”, revelara a teoria histórica de que “a burguesia existe dentro do Partido”, lutara contra o “revisionismo” e proporcionara uma “experiência nova e plena de significado mundial”. Agora, dizia a nota, é “o momento de transformar a dor em força para continuar a vontade de Mao”.
O longo comunicado, como se poderia esperar, não fez qualquer referência à causa de sua morte. A agência Nova China apenas confirmou que Mao estava doente havia algum tempo, “empreendendo luta tenaz contra sua moléstia, até seu último suspiro”. Segundo as várias especulações, o presidente sofrera um derrame ou padecia da doença de Parkinson, já que tinha dificuldade para falar e perdera parte dos movimentos da face e de uma das mãos.
O documento do Partido foi porém surpreendentemente revelador quanto a um outro ponto — as dissensões existentes entre os dirigentes chineses. Com efeito, se reinasse a paz entre os herdeiros de Mao, não haveria necessidade do enfático apelo à unidade dos chineses contida na nota. Segundo a proclamação do Comitê Central, é preciso “fortalecer a direção unificada do Partido” e “unir-se estreitamente em torno do Comitê Central”, “aprofundar a crítica a Teng Hsiao-ping” — o dirigente que caiu em desgraça em abril —, “continuar o contra-ataque ao vento direitista” e “consolidar e desenvolver as vitórias da Grande Revolução Cultural Proletária” — o vendaval ideológico que, sob a inspiração de Mao, varreu a China de 1966 a 1969.
Na verdade, a morte de Mao ocorre num momento especialmente nebuloso da política chinesa — o mais confuso desde o final da tormentosa Revolução Cultural. Nos últimos dezoito meses, além de Chu-En-lai, morreram outros três dos nove membros do comitê permanente do Politburo. Desde o ano passado começaram a se alastrar desordens públicas que parecem ligadas a uma luta pelo poder ou a um enfraquecimento da autoridade. Nas províncias de Hunan e Chekiang há notícias de assaltos a bancos. Sechuan, a mais independente e mais populosa província do país, está sob lei marcial. E correm, cada vez mais, notícias de corrupção — como a de um funcionário da cidade de Sian, que, a troco de suborno, teria mudado a sentença aplicada a um estuprador. Em Tangs-han, nas áreas atingidas por recentes terremotos, parece ter havido saques de lojas e residências — um conjunto de fatos rigorosamente escandalosos na puritana, asséptica China.
Por trás da surda disputa pelo poder estariam as correntes “radical” e “moderada” do Partido — os dois gruposdelineados a partir da Revolução Cultural, cujo confronto ainda influencia fortemente todos os setores da vida chinesa. De fato, certas medidas adotadas naqueles ardentes anos ainda se encontram em vigor e provocam controvérsias e ressentimentos. É o caso, por exemplo, das drásticas reduções de bonificações e aumentos salariais aos trabalhadores, destinadas a deter um “incipiente capitalismo”, ou a transferência maciça de estudantes para o campo, destinada a encurtar o enorme fosso entre os setores urbano e rural da população.
Também anda a todo vapor a radical reviravolta operada em todo o sistema educacional chinês para “democratizar amplamente” as oportunidades de ensino e tornar mais importante para os estudantes a consciência de classe e o fervor ideológico do que o currículo escolar. Há ainda as drásticas intervenções para combater um fantasma que ciclicamente é exorcizado na China — a formação de uma “nova elite” burocrática. Para combatê-la, a prescrição é a clássica, como governo insistindo em que milhões de quadros do Partido, técnicos e cientistas dediquem mais tempo ao trabalho manual.
Os radicais — geralmente fortes nos meios de comunicação e nas escolas — defendem intransigentemente essas medidas e lutam pelo primado da ideologia sobre as considerações de crescimento econômico. Os moderados, ao contrário — geralmente definidos como veteranos, pragmáticos militantes que controlam muitos setores do Partido e o aparato econômico do Estado —, querem menos política e mais produção. O expoente máximo desta última corrente ainda parece ser Teng Hsiao-ping — afastado da posição de substituto de Chu En-lai justamente por defender as idéias pragmáticas tão veementemente condenadas pelos radicais.
Embora tenha perdido todos os seus cargos no Partido em abril, Teng ainda permanece forte a ponto de receber irados ataques nominais do Comitê Central. O irrequieto Teng, de fato, tem muitos fôlegos. Varrido do cenário principal pela Revolução Cultural, acabou sendo pacientemente trazido de volta por Chu En-lai — que lhe admirava as qualidades de administrador e hábil conciliador — após uma devastado ra, penosa autocrítica.
Teng chegou a dizer publicamente: “Sou um intelectual pequeno-burguês não reformado, um homem cuja perspectiva burguesa do mundo não foi fundamentalmente alterada”. Uma vez reabilitado, porém, promoveu inovações consideradas “perigosas” em vários setores. Ele tentou, por exemplo, restaurar a disciplina nas fábricas e sugeriu incentivos salariais aos trabalhadores. Além disso, defendeu a importação de tecnologia estrangeira em troca de matérias-primas chinesas — um atentado ao sacrossanto princípio maoísta da auto-suficiência. E tentou decretar nos campos da ciência e da educação o fim da política de trabalho braçal para técnicos e professores.
Pior do que tudo, Teng entrou em franco confronto com Chiang Ching, derradeira esposa de Mao e principal inspiradora dos radicais. E chegou a esboçar um amplo programa de reabilitação de militantes “injustamente afastados” durante a Revolução Cultural. Muitos quadros jovens promovidos naquela época, dizia Teng, subiram “de helicóptero” — isto é, não por seus próprios méritos. Por coincidência ou não, “helicóptero” era justamente o apelido de um ex-operário têxtil de Xangai, Wang Hun-wen — protegido de Chiang Ching e um dos líderes do chamado “grupo de Xangai”, tido como a linha de frente dos radicais.
Teng não tardou a sofrer uma campanha implacável por seus “desviacionismos de direita” — aparentemente inspirada pelo próprio Mao. Após uma série de acusações, foi responsabilizado pelos “distúrbios contra-revolucionários” ocorridos no início de abril em Pequim, durante uma homenagem póstuma a Chu En-lai, e acabou em desgraça. O conflito entre as duas correntes, no entanto, está longe de terminar. Ninguém no Ocidente sabe qual é o verdadeiro equilíbrio de forças. De qualquer forma, os moderados parecem ter apoio de amplos setores do Exército, temerosos de um enfraquecimento na defesa nacional em caso de novos e tormentosos torneios ideológicos.
O futuro desenvolvimento dessa disputa, seja como for, é considerado fatal — e afetará diretamente as relações da China com os Estados Unidos e a URSS. Os prognósticos, mais uma vez, são extremamente complexos: embora ambas as facções em disputa sejam em tese anti-soviéticas, há nas duas subgrupos que advogam um resfriamento nas relações com os EUA e uma menor hostilidade aos soviéticos. Na hipótese de uma reaproximação China-URSS, poderiam ocorrer dramáticas mudanças no quadro internacional. A URSS poderia, por exemplo, retirar grande parte do milhão de soldados que concentra na fronteira com a China, reforçando sua frente ocidental na Europa e ameaçando diretamente a OTAN, aliança militar ocidental. A China, por sua vez, liberaria recursos de seu gigantesco orçamento militar, primordialmente voltado para a ameaça soviética, para amplos programas de desenvolvimento.
De qualquer forma, a URSS sempre alimentou esperanças de reaproximação, após a morte de Mao — à qual o Kremlin reagiu discretamente, enviando condolências ao PC chinês e à família do presidente. Desde o cisma sino-soviético, em 1959, Mao foi responsabilizado pela ruptura entre os dois países e Moscou periodicamente se refere a “elementos saudáveis” na China, que defenderiam uma reconciliação, e aos quais se oporia a “camarilha maoísta”. São, contudo, inúmeros os obstáculos a superar para um eventual degelo: além de suas concepções radicalmente diferentes sobre a revolução mundial, os dois países têm questões fronteiriças — que levaram aum sangrento choque armado em 1969 —, disputam o status de oráculo supremo do comunismo internacional, possuem interesses comerciais e políticos diferentes no Terceiro Mundo e estão em meio a uma frenética disputa pela influência na Ásia, após a retirada americana do Vietnam.
Nos EUA, por outro lado, após a morte de Mao — “figura gigantesca”, segundo o presidente Gerald Ford —,o secretário de Estado Henry Kissinger disse só poder afirmar que seu país não mudaria a política em relação à China, nem esperava mudanças da parte dos chineses. Mais tarde, porém, Kissinger admitiria a incerteza reinante em Washington: “Quando uma figura da estatura de Mao desaparece”, afirmou, “é extremamente difícil predizer o que seu sucessor fará.”
Mao, na verdade, talvez não tenha um sucessor formal. Uma das hipóteses levantadas na semana passada era a de restar vago indefinidamente o cargo de presidente do PC chinês — a um só tempo, uma hábil manobra para não agravar disputas e uma simbólica homenagem ao líder da Revolução. Seja como for, a China estará ocupada, nos próximos dias, com as homenagens fúnebres ao falecido líder, programadas para ocorrer de forma simultaneamente simples e grandiosa. O corpo de Mao está desde sábado exposto à visitação de milhões de chineses, no Grande Salão do Povo — última oportunidade para o adeus a um líder que não mais apareceu em público a partir de 1.º de maio de 1971 e foi visto pela última vez na televisão a 27 de maio passado, durante a audiência ao primeiro-ministro aquistanês Zulfikar Ali´Bhutto.
O corpo continuará exposto até sexta-feira, não se sabendo se depois será cremado ou sepultado. Até lá, por todo o país — em todas as unidades militares, fábricas, minas, empresas, estabelecimentos comerciais, comunas populares, escolas e unidades de trabalho de todo tipo — serão realizadas cerimônias fúnebres. Nenhum governante estrangeiro, conforme a tradição, será convidado. A bandeira permanecerá hasteada a meio pau em todos os mastros e todas as atividades recreativas estarão suspensas pelo luto oficial. Finalmente, às 15 horas de sexta-feira, será realizada a derradeira cerimônia. Perante a multidão reunida na praça Tien An Men, uma alta personalidade pronunciará o último elogio fúnebre. Ao iniciar-se o ato, tocarão sirenas em todos os rincões da China durante 3 minutos — e, por igual período, centenas de milhões de chineses manter-se-ão em pé, em silêncio, onde estiverem, “com a única exceção daqueles cujo trabalho não possa ser interrompido”. Uma reverência poderosamente significativa para alguém, como Mao Tsé-tung, que se orgulhava de ter, como disse, feito sua pátria levantar-se dos próprios joelhos.