A Arena vai “vencer” hoje na Comissão de Justiça da Câmara. Vai conseguir a licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves [MDB-GB] . Para tanto, numa atitude sem precedentes no Congresso, o líder Geraldo Freire [Arena-MG] substituiu, ontem, nada menos que oito titulares e um suplente da Comissão diante da certeza de que [votariam contra a licença e de que] o governo seria derrotado, o.
O placar será de dezoito votos contra treze, a menos que haja uma improvável ou quase impossível surpresa. Todos os substitutos ontem indicados, “gente de cofiança”, deverão votar a favor da licença.
As gestões do ministro Gama e Silva[da Justiça] tiveram dois resultados: a Comissão não somente não vai adiar a decisão para janeiro, como vai votar com o governo. E tem mais: ficou decidido ontem, ainda, que ou o plenário da Câmara vota a licença até este sábado, 14 de dezembro de 1968, ou o Governo convoca o Congresso para [trabalhar] todo o mês de dezembro.
O esquema de pressões conseguiu êxito completo: a Arena e sua liderança cederam em todos os pontos, levando de roldão a atitude tomada na véspera pelo deputado Djalma Marinho [da Arena-RN e presidente da Comissão de Constituição e Justiça] e todas as posições de políticos respeitáveis do partido, contrárias a uma decisão a toque de caixa.
A decisão do líder Geraldo Freire chocou a Câmara, provocando repulsa entre os deputados. O líder tentou explicar à imprensa, dizendo que “a ninguém isto dói mais que a mim” e que diversas substituições foram feitas de comum acordo com os substituídos. O fato, contudo, é que alguns deputados, como José Carlos Guerra (Arena-PR), foram rigorosamente postos para fora, submetidos a uma humilhação insólita na vida parlamentar.
A repercussão não tardou: os deputados Marcos Kertzmann (Arena-SP) e Rafael de Almeida Magalhães (Arena-GB) fazem correr, desde ontem, uma lista de adesões para a renúncia coletiva dos arenistas membros de comissões técnicas. O deputado Djalma Marinho [tido como exemplo de retidão no Congresso] deverá renunciar amanhã à presidência da Comissão de Justiça, tendo afirmado ontem que “agora o Rui Santos [Arena-BA, ferrenho defensor do Planalto] tem a Comissão dos seus sonhos”. O deputado Israel Dias Novaes (Arena-SP) disse que os substitutos foram escolhidos entre “os paus para toda obra”. O deputado Yukishigue Tamura (SP) queria sair da Arena. O MDB vai lançar hoje um manifesto.
O deputado José Carlos Guerra distribuiu nota à imprensa classificando sua substituição de evidente violência” e afirmando que “nada alterará minha posição, que não é fruto da passionalidade, mas de profunda convicção democrática” e que “a história de vários povos registra, para vergonha deles, atitudes semelhantes”.
A Comissão de Justiça teoricamente deve congregar os melhores juristas dos dois partidos. Contudo, os deputados [arenistas] que saíram — Montenegro Duarte (PA), Murilo Badaró (MG), Francelino Pereira (MG), Luís Ataíde (BA), Geraldo Guedes (PE), Raimundo Diniz (SE), Vicente Augusto (CE), Yukishigue Tamura e o suplente José Carlos Guerra — foram substituídos pelos deputados Grimaldi Ribeiro (RN), Nosser Almeida (AC), José Lindoso (AM), Carlos Quintela (RJ), Arnaldo Cerdeira (SP), Norberto Schmidt (RS), Amaral de Souza (RS) e Broca Filho (SP). A maioria de pouca ou nenhuma expressão como políticos ou juristas.
Grimaldi Ribeiro, do Rio Grande do Norte, é membro da Comissão de Relações Exteriores, tendo comparecido este ano a 6 das 23 reuniões do órgão. Nosser Almeida, do Acre, é membro da Comissão de Fiscalização Financeira, onde relatou apenas um projeto durante este ano. Notabilizou-se por ter um discurso no plenário, reclamando contra o rigor da alfândega de Brasília, que examinou sua bagagem ao voltar de viagem ao exterior. José Lindoso, do Amazonas, é membro da Comissão de Serviço Público, tendo participado de 10 das 31 reuniões que o órgão realizou. Votou a favor do projeto dos municípios incluídos na área de Segurança Nacional, durante a tramitação na Comissão Mista do Congresso.
Outro dos substitutos, Carlos Quintela, suplente de deputado em exercício pelo Estado do Rio, compareceu a apenas duas das duas dezenas de sessões da Comissão de Finanças desde que está em exercício. Arnaldo Cerdeira, figura de destaque do ademarismo na Câmara, espalhafatoso e piadista, dispensa apresentações. Como curiosidade, deve-se dizer que é membro suplente da Comissão de Agricultura, não tendo comparecido a uma sessão sequer neste ano.
Norberto Schmidt, do Rio Grande do Sul, é tido como “linha dura” da Arena e é uma exceção em matéria de trabalho: comparece regularmente às reuniões das comissões de que é membro. Amaral de Souza, também gaúcho, é membro efetivo da Comissão de Segurança Nacional. O único projeto que relatou, dando-lhe parecer favorável, foi o que aprovava o decreto-lei ampliando a competência do Conselho de Segurança Nacional. Finalmente, Broca Filho, de São Paulo, é o presidente da Comissão de Segurança Nacional e, naquele órgão, deu o “voto de Minerva” contra o projeto de anistia a estudantes trabalhadores.

O vice-líder do governo Haroldo Leon Perez (PR) tentava explicar ontem em conversa com jornalistas o porquê das substituições. Entendia que se o governo não ganhar na Comissão de Justiça, o presidente da República não terá condições de exercer, na plenitude, sua autoridade. Reconhece que a Câmara se enfraquece com o episódio, mas acha isso preferível a adiar a decisão para janeiro, permanecendo o impasse durante mais um mês. Leon Perez não acredita que o regime suportasse tanto.
Em outros setores da Arena, persiste a impressão de que novas crises surgirão, com o envio de novos pedidos de cassação de deputados. Por isso, está se tentando junto ao presidente [da Câmara], José Bonifácio (Arena-MG), a colocação urgente na ordem do dia do projeto que estabelece uma espécie de código de disciplina para os deputados, de autoria do deputado Dnar Mendes (MG). Isso daria à própria Câmara instrumentos políticos para evitar a repetição de episódios como o atual.
O problema da convocação do Congresso, por outro lado, agora não é tão urgente: ganhando hoje o governo na Comissão, a decisão do plenário poderá aguardar até janeiro, sem problemas. Mesmo assim, é possível que o líder Geraldo Freire tente votar a matéria até sábado. Todavia, qualquer manobra de obstrução do MDB vai impossibilitar uma votação antes do encerramento dos trabalhos legislativos.
A farsa da Comissão de Justiça está marcada para as 15 horas. A liderança da Arena deverá levá-la até o fim, pois é imprescindível uma decisão formal que conclua pela constitucionalidade do processo contra Márcio Moreira Alves. O jogo de cartas marcadas não despertaria maior interesse, não fosse a expectativa pelo pronunciamento que o deputado Djalma Marinho, depois de votar e de renunciar, deverá fazer.
Será uma vitória triste da Arena, uma vitória humilhante para a chamada classe política.
(Artigo de Ricardo Setti, de Brasília, para o Jornal da Tarde, de São Paulo, publicado a 10 de dezembro de 1968 sob o título original de “Esta votação não é séria”)