A baderna e a promiscuidade em que se transformou a questão da segurança pública no Rio de Janeiro afastaram um pouco as atenções dos brasileiros que vivem em São Paulo de uma praga terrível que se espalha pela periferia da capital e rivaliza em gravidade com os sequestros cariocas. Trata-se de um tipo de criminoso que se multiplica com a mesma velocidade da crise social que se agrava na esteira da ainda incontrolável corrente migratória rumo à Grande São Paulo: o chamado “justiceiro”.
Diadema vem mantendo uma média pavorosa de um assassinato por dia atribuído a tais bandidos. Mas nem é preciso citar estatísticas. Embu, São Bernardo, a periferia própria de São Paulo são, quase toda semana, palco de massacres coletivos, que por vezes têm por vítimas famílias inteiras. Uma pesada e implacável lei do silêncio, uma omertà semelhante à imposta pela Máfia italiana, tem quase invariavelmente impedido que os assassinos sejam identificados e presos. Os crimes quase sempre têm testemunhas, os matadores são, na maior parte das vezes, conhecidos das pequenas comunidades onde atuam. Basta a polícia aparecer, porém, e é sempre a mesma história: ninguém viu ou ouviu nada, ninguém conhece ninguém.
Esse tipo peculiar de criminoso acrescenta, às abominações dos delitos que comete, a terrível ironia contida em sua própria designação: “justiceiro”. Sob essa denominação que contém algo de nobreza escondem-se, na verdade, pistoleiros de aluguel, assassinos que massacram vítimas em geral desarmadas, com uma dose espantosa de sadismo e em troca, quase sempre, de dinheiro.
Há pelo menos 200 quadrilhas organizadas desse tipo só na região do ABCD. O problema tem suas cores acentuadas pelo fato de que a eliminação de pessoas se tornou uma indústria, crescente e lucrativa, e chegou ao requinte, em alguns casos, de constituir atividade de fachada lícita – como, por exemplo, a de certas “empresas de segurança”.
O pior de tudo, porém, é a impressão que tais bandidos passam a certos setores da população de que, a seu modo e por suas próprias mãos, fazem algum tipo de justiça, por matarem supostos marginais. A impressão é duplamente venenosa, por implicar o conceito de que a ordem pública não é monopólio do Estado e por admitir que o crime se combate com o crime.
Um dado adicional que acrescenta gravidade ao problema é constatar que a filosofia de combate à criminalidade adotada por sucessivos governos estaduais não desestimulou, na melhor das hipóteses, esse tipo de ação. Pode-se talvez levantar a exceção do governo Franco Montoro (1983-1989), com o inconveniente, porém, de que a forma de comunicação de sua política de direitos humanos foi tão desastrosa que passou adiante a ideia de que se tratava, basicamente, de uma forma de privilegiar bandidos. Tudo isso não quer dizer, é claro, que os diferentes governos do Estado venham sendo coniventes com os assassinos, nem que tenham deixado de combatê-los.
O que se passa, no mais das vezes, é que certas afirmações na área da segurança pública são feitas sem a devida cautela e podem ter repercussões altamente negativas. Vários políticos — candidatos a governos estaduais, governadores, secretários, parlamentares — já bateram na tecla de que direitos humanos seriam sobretudo direitos “das pessoas de bem”.
A eliminação de pessoas chegou ao requinte de constituir atividade de fachada lícita
É claro que declarações desse tipo sobre direitos humanos podem ser interpretadas por determinados grupos como um sinal de que, se é para agir contra supostos bandidos, a polícia vai ser mais benevolente.
A praga dos “justiceiros” não se esgota, é claro, em filosofia. Mas é incompreensível que problema tão grave venha merecendo um empenho tão convencional dos governos estaduais de São Paulo. É certo que a polícia paulista tem até um serviço especializado para combater tais criminosos. Só que isso é pouco. Como temos aqui uma situação exemplar, em que criminosos pretendem estar fazendo justiça com as próprias mãos, o problema arrasta consigo uma gravidade adicional. O Estado democrático não pode, em hipótese alguma, abrir mão do monopólio da administração da ordem pública e da justiça. Da mesma forma, o direito de um suspeito de um crime defender-se com advogado perante o Judiciário é indispensável a um regime civilizado.
Por tudo isso, o governo teria que entrar rijo no assunto: treinar, até no Exterior se for o caso, unidades especiais de policiais de elite, equipá-los com o que existe de melhor em armas de combate e instrumental técnico de investigação, agir no Judiciário para obter autorização legal para ações como escuta de telefones, infiltrar agentes treinados entre a população na busca de pistas, recorrer, se for o caso, a convênios com a Polícia Federal e trancafiar os bandidos condenados em presídios de segurança máxima para impedir os sucessivos vexames de fugas de matadores famosos.
Dá para fazer. É preciso, contudo, algo que anda em falta entre nossas elites governantes para este e outros temas: “vontade política”
Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo a 2 de agosto de 1990
