São Paulo – Do alto de seus 70 anos de idade e 40 de vida pública, e sobretudo em sua indisputada condição de Grande Patriarca da Nova República, o Dr. Ulysses Guimarães contempla com otimismo o cenário de um país que elegeu ontem, sábado, 15 de novembro, a sua Assembleia Constituinte. Ele não acredita na hipótese de um retrocesso institucional, acha que o Brasil embica na direção de uma democracia estável e prevê que a Constituinte que está saindo das urnas tomará posse oxigenada pelos ventos de mudanças que a nação exige.

Prudente, o Dr. Ulysses não fala muito em números, mas espera uma estrondosa vitória eleitoral do PMDB. Nem assim, contudo, pretende pressionar o presidente José Sarney a mudar o Ministério.

– O que importa é o presidente não o Ministério – sentencia. E o presidente, lembra, é um homem do Nordeste, com funda consciência de que só há salvação para o país na libertação do homem brasileiro “da fome, da miséria, do medo”.

Plenamente recuperado dos problemas de saúde que o afligiram no curso do ano, queimado pelo sol dos palanques que freqüentou nos 23 estados brasileiros, o Dr. Ulysses tem ainda a alma retemperada pela perspectiva certa de, uma vez mais, como em 1982, receber votos para sua reeleição como deputado federal em cada um dos 572 municípios de São Paulo, embora poucos votos tenha pedido para si mesmo. O presidente do PMDB e da Câmara dos Deputados falou ao JORNAL DO BRASIL no jardim de inverno da ampla casa onde vive há 26 anos, no Jardim Europa, em São Paulo, ao som do canto de seus vários passarinhos, e do latido eventual do fox terrier pêlo-de-arame Tico, seu cão de estimação.

JB – Se o governador Leonel Brizola reiniciar a campanha pelas Diretas-Já no dia 16 de novembro, como se anuncia, o senhor vai de novo subir nos palanques com ele?

Ulysses – O presidente José Sarney está com mandato em curso. Eu acho muito longo o mandato de seis anos, mas nós herdamos – eu digo nós porque são o governo e o PMDB – uma situação muito difícil para o país do ponto de vista social. Mais difícil do que matar um monstro é remover seus escombros. Nós estamos agora procurando remover esse entulho, esses escombros. A Constituinte vai fixar a duração dos mandatos, inclusive o do Sarney. Mas entendo que mobilizar o país agora para limitar o mandato do presidente é desaconselhável. Seria truncar o Plano Cruzado e todas essas proposições de reformas que estão aí. Há um ditado do caboclo que diz: não se muda de cavalo no meio do banhado. Sou um cavaleiro muito prudente, e nós estamos no meio do banhado. Há um banhado aí perigoso, da fome, da miséria, da volta da inflação.

JB – A campanha para a Constituinte correspondeu aos seus anseios?

Ulysses – Correspondeu, porque houve uma mobilização muito grande da sociedade. O povo descobriu de vez o voto e eu noto que, quanto mais pobre é o bairro, mais as pessoas participam da eleição. Essa ampla mobilização popular para credenciar os constituintes foi muito salutar.

JB – Mas o Sr não acha que a eleição simultânea para os governos estaduais esmagou o debate sobre a Constituinte?

Ulysses – De certa forma, sim. Mas qual seria a alternativa? Prorrogar os mandatos de senadores e deputados ou dos governadores? Isso seria inaceitável. Não havia maneira de descoincidir as eleições. No caso do PMDB, nós debatemos a Constituinte há 20 anos e, com ela eleita, daqui para a frente vai haver um enorme mecanismo de pressão para atribuir um ordenamento jurídico a uma parte muito grande do Brasil que hoje está à margem dele. Não pode haver lei onde há miséria, fome, analfabetismo. A grande missão da Constituinte é ocupar esses espaços. O estado foi inventado para dar segurança. Hoje, não está dando. A guerrilha urbana atenta até contra a – vou usar uma palavra difícil – ontologia do estado.

JB – O Sr tem repetido muito nos últimos dias a frase “ou mudamos ou seremos mudados”. Que mudanças são necessárias e quais são as razões dessa sua preocupação?

Ulysses – Tem muita gente aí que vai ser mudada por causa disso… O país evoluiu, mudou do campo para a cidade. Na Constituinte de 1946, mais de 60% da população brasileira viviam na zona rural. Hoje, temos quase 70% na zona urbana. O país mudou também pela explosão dos meios de comunicação. Saber é poder, e o povo sabe que está podendo saber. O partido que a meu ver representa e participa dessa mudança é o PMDB, que será o grande vitorioso da eleição – o que é bom para o país. O seu acoplamento com este sentido evolucionista explica a grande maioria que o partido vai ter em todo o país, na Constituinte e nos governos estaduais.

JB – Objetivamente, o Sr entende que o ministério do presidente Sarney corresponde a esse anseio de mudanças revelado na campanha eleitoral?

Ulysses – O ministério do presidente Sarney faz o que ele quer. Basta dizer que o Sarney é um homem que dorme quatro horas por dia, despacha com todos os ministros, leva os assuntos para estudar em casa. O que importa, fundamentalmente, é o presidente. Ele pratica na política a ciência bovina da ruminação. Quem não rumina não faz política. E o Sarney é um animal ruminativo. Fica com as coisas na cabeça ruminando até tomar uma decisão. O Sarney é um homem do Nordeste, e como tal muito impregnado das terríveis desigualdades sociais deste país. A questão do ministério é com o presidente. Agora, quanto à Constituição, entendo que ela vá ser progressista, evolutiva, mesmo porque entendo que ninguém tem vocação para haraquiri, para o suicídio. Quem se voltar contra as medidas que vão ser propostas no sentido de corrigir a injustiça e a discriminação social, de libertar o homem brasileiro da fome, da miséria e do medo, terá seus projetos políticos encerrados.

JB – Pelo que sentiu na campanha, o Sr acredita que a Constituinte será majoritariamente pró-mudanças?

Ulysses – Acredito que sim. Dou o testemunho, depois de ter percorrido nesta campanha praticamente os 23 estados brasileiros – em alguns fui duas, três vezes – de que a Constituinte vai mexer com o momento social brasileiro. Não vai mais haver um Brasil legal e um Brasil real, um terá de se aproximar do outro. A nova Constituição vai alavancar as reivindicações, as aspirações de ascensão social das camadas subterrâneas. Esse entulho da injustiça social vai ser removido.

JB – E se isso não acontecer, o Sr vislumbra no horizonte o perigo de um retrocesso institucional, com a volta dos militares ao poder?

Ulysses – Bem, se as mudanças não se concretizarem, será um grande mal. Mas não entendo que isso possa servir como um convite aos militares para uma nova aventura. A experiência deles no poder foi tão desastrosa que não acredito que queiram voltar. De qualquer maneira, não vejo realmente condições, porque eles se colocaram de tal forma contra a sociedade, confrontando com a sociedade… Até por uma questão de instinto de conservação, não creio, não acredito, não.

JB – O Sr anuncia a grande vitória do PMDB em todo o país e afirma que o importante é o presidente, e não o ministério. Mas há uma questão política em jogo, que parece inevitável: o Sr acha que a atual composição política do ministério deve permanecer intocável, mesmo que o PMDB aumente seu peso na sustentação do presidente Sarney?

Ulysses – Nós separamos a parte político-partidária da administrativa. Não vamos constranger o presidente, criar problemas. Nosso propósito não é mudar o ministério, é mudar a sociedade. Se nós criarmos problemas com o ministério, enfraquecendo o presidente, poderemos prejudicar a ação governamental. O governo tem de agir com muita velocidade, porque há muitos problemas pendentes que precisam ser resolvidos.

JB – E qual é o primeiro problema que deve ser atacado pelo governo após a apuração dos votos?

Ulysses – O primeiro ponto são as modificações que deverão ser feitas no Plano Cruzado. Eu até já conversei com o Funaro sobre isso. Quando o Plano foi implantado, já se sabia que ele não poderia ser imutável. Não se pode fazer nenhuma mudança que afete o crescimento do país, é necessário mantê-lo crescendo entre 6% e 7% ao ano, recusando as receitas recessionistas do FMI. Também não se deve fazer qualquer mudança que envolva custo social. A oferta de empregos, por exemplo, tem de continuar no mesmo nível.

JB – Presidencialismo ou parlamentarismo?

Ulysses – Eu sou pelo presidencialismo. A crítica que se faz ao sistema presidencialista é quanto à duração do mandato. Quando esse mandato é muito longo, e a presidência não satisfaz ou leva a uma sucessão de presidentes de um mesmo partido, então vem a revolução. A maneira de você temperar as vantagens do sistema presidencialista é abreviar o mandato.

JB – O Sr defende um mandato de quatro anos?

Ulysses – Defendo. Quatro anos é da nossa tradição. Sou contra o de seis. E também sou contra a reeleição. Já tem sido cometidos abusos no sentido de favorecer candidaturas de terceiros, então vocês podem imaginar o que aconteceria se fosse em causa própria…

JB – Que outros temas polêmicos o Sr prevê na Constituinte?

Ulysses – Outro capítulo também e delicado é o da distribuição de renda pelos patamares da federação. Vai haver uma pressão muito grande para a municipalização das receitas públicas. E é sempre difícil você mexer com dinheiro. É mais fácil fazer uma revolução do que uma reforma tributária, dizem os economistas. Outro ponto que vai ser um ramo de urtiga (risos) é o do capital econômico e social. Até onde deve ir a intervenção do estado? Isso vai dar muita discussão.

JB – A Aliança Democrática sobrevive às eleições? Já se fala na formação de um “partido do Sarney”, não é?

Ulysses – Você sabe que não há governo que não deseje ampliar suas bases de apoio, e nós não somos contra isso. Nós, do PMDB, até poderíamos querer uma exclusividade, com a maioria de 60% das cadeiras que se prenuncia… Mas o PFL vai eleger aí de 80 a 100 deputados, e é sempre bom ter isso com a gente na Câmara e no Senado para a elaboração da Constituinte. Mas o centro de gravidade do governo do Sarney, a sua sustentação, é o PMDB. Ele sabe disso.

JB – Quer dizer que o Sr não acredita nessa história de “partido do Sarney”?

Ulysses – Não. O Sarney não é burro. Ele sabe o que é fazer um partido. Sabe, porque foi presidente de partido, e isso não tem qualquer chance. Nós estamos, até o presente momento, e espero que continue assim, casados e bem casados. Estamos num regime de marido e mulher. A mulher manda de um lado e o marido do outro. Ele atua na área dele e eu atuo na minha, nós nos entendemos muito bem. Vamos aí vivendo em lua-de-mel. Também, com esse dote que o partido tem… (risos)

JB – Quem será o grande adversário do PMDB na sucessão do presidente Sarney? O governador Leonel Brizola ou o PFL? Como será esse cenário da sucessão? O PMDB pretende se compor com o PFL?

Ulysses – Falar sobre isso agora, sem a Constituinte, seria uma previsão muito temerária. Seria uma indelicadeza com meu próprio partido. Isso o partido é que vai resolver.

JB – O Sr já é candidato?

Ulysses – Não, eu não sei. Quem diz que eu sou candidato são os outros, não sou eu (risos). Na praça Pública é que dizem, nas ruas, eu fico só ouvindo. Não digo nada. Isso tem de ser resolvido no momento devido. É muito difícil, em política, você fazer um prognóstico num assunto dessa natureza. A Constituinte vai ser um dado muito importante. Há uma série de fatores que vão interferir nessa decisão.

JB – Quais as lideranças do PMDB que terão um papel importante nesse processo?

Ulysses – Tenho medo de citar alguns e esquecer outros… Alguns governadores vão ter uma projeção muito grande… O Waldir Pires, e Pedro Simon, o Miguel Arraes… Vocês vão publicar isso?

JB – Alguma vez na sua vida o Sr já viu uma campanha disputada num nível tão baixo como neste ano?

Ulysses – Eu nunca vi. Esse xingamento… Antes, se havia xingamento era só no palanque. Mas, como agora, com esse multiplicador da televisão que penetra em todos os lares, eu nunca vi. Em São Paulo, o PMDB e o Quércia foram muito agredidos.

JB – De quem o Sr acha que partiu a iniciativa para baixar o nível da campanha?

Ulysses – Não sei. Sei que houve agressões generalizadas. Também, não fiquei aqui em São Paulo desde o início da campanha. O Quércia e o PMDB tiveram de se defender. O povo rejeitou esse tipo de comportamento, não era a campanha que a sociedade queria.

JB – Como vai ser a reunião que o Sr convocou para o dia 3 de dezembro, em Brasília, com todos os constituintes e governadores eleitos pelo PMDB?

Ulysses – Em primeiro lugar, nós temos de nos unir. Vamos já discutir alguns pontos da Constituinte, principalmente os que dizem respeito aos estados e municípios. Entendi que devia chamar os companheiros para dizer: Ganhamos, e agora? E agora, que fazer com esses votos que tivemos?

Image
Documento original da matéria publicada © Reprodução

JB – Como o Sr responderia a essa pergunta?

Ulysses – O voto tem duas vias, duas mãos. Não é só ir até a urna e depois ao palácio do governo. O mandato tem de se voltar para o homem. A Constituinte é do homem.

JB – Durante muitos anos, tentou-se fazer o Sr subir a rampa do Palácio do Planalto. Agora, o Sr não só subiu a rampa como se sentou na cadeira de presidente. Foi bom?

Ulysses – Eu não subi pela rampa, fui é no elevador privativo (risos). O Ernâni Satyro, ex-deputado da antiga Arena e do PDS e ex-governador indireto da Paraíba, já falecido, me disse uma vez: “Costumam dizer que essa cadeira tem espinhos. Mas, se tem, é só do lado de baixo, porque em cima não tem espinho nenhum, é uma gostosura…” (risos). Eu me sentei na cadeira de presidente e, mesmo em caráter transitório, isso é uma honra. É claro que todo homem que está na vida pública quer servir. Quanto melhores os instrumentos, como a cadeira de presidente, melhor você realiza sua vocação de homem público.

JB – O Sr está comemorando em 1986 seus 40 anos de vida pública. Qual foi a maior frustração que sentiu nesse longo período?

Ulysses – A grande frustração foi a revolução de 1964, esse parêntese que tivemos. Eu, quando lembro das viúvas, dos maridos presos, torturados, dos companheiros cassados… Foi uma experiência muito amarga, muito dolorosa.

JB – E que o Sr sentiu na madrugada do dia 26 de abril de 1984, com a rejeição da emenda das diretas?

Ulysses – No final da campanha, nós estávamos muito animados, queríamos chegar lá. Foi uma decepção muito grande… [Ulysses ajeita-se na cadeira e seus olhos começam a se encher de lágrimas], não sabíamos como a nação poderia reagir… O povo todo na rua… 50 milhões de pessoas nas praças públicas de todo o país… Tive muito receio de que o corpo social pudesse não aceitar aquilo de uma forma pacífica.

JB – Em que momento o Sr considerará encerrada a transição que começou com a eleição de Tancredo e Sarney no colégio eleitoral?

Ulysses – Com a promulgação da nova Constituição.

JB – A partir daí o Sr vê possibilidades de termos uma democracia estável?

Ulysses – Vejo, sim. Acho que essa experiência da ditadura foi tão frustrante… Inclusive, os militares estão muito advertidos contra ela. Agora se governo não prestar, o povo põe outro governo. Se o partido não corresponder, faz outro partido. Se a Constituição não satisfizer, vai pressionar. O grande elemento estabilizador da democracia vai ser o povo.

DEIXE UM COMENTÁRIO

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *