Na fase mais dura da Velha República, havia no Congresso um rosto que servia de termômetro dos humores do regime: o do velho senador nordestino Dinarte Mariz, já falecido. Dizia-se então, maldosamente, que se o senador, supostamente ligado aos setores militares mais “duros”, estivesse sorrindo, era um péssimo sinal. Se, ao contrário, andava com a cara fechada, então era possível respirar.

Na Nova República, felizmente, não há um sucessor do senador Dinarte. Nem por isso deixa de existir um semblante em que se pode ler, com clareza solar, a temperatura da crise, desta vez econômica: o do ministro da Fazenda, Dílson Funaro. Sua mistura muito pessoal de ascetismo com uma timidez de colegial, é verdade, nunca permitiu que o ministro se desse o luxo de uma única e escassa gargalhada pública em seus 17 meses de poder. De todo modo, a sorridente bonomia da época áurea do Cruzado se foi, e a pesada fisionomia que Funaro hoje carrega é um eloquente retrato falado desses duros tempos de turbulência do Cruzado-II.

Se compararmos a tensa face do ministro com resplandecente rosto que o presidente José Sarney tem exibido, sobretudo depois de sua ensolarada e pachorrenta esticada de fim de ano no litoral do Maranhão, o contraste não estará muito longe do que haveria numa comparação entre a Xuxa e Madre Teresa de Calcutá. É claro que pode existir, aí, todo um universo de características pessoais. Mas nesse jogo de fisionomias do poder está embutida, também, uma poderosa metáfora sobre o nosso peculiaríssimo presidencialismo tropical, um regime em que, se as coisas vão bem, viva o presidente; se, porém, vão mal, então abaixo os ministros.

É certo que não se trata de novidade introduzida na Nova República. Basta lembrar que durante os seis anos de mandato do general João Figueiredo, por exemplo, o Instituto Gallup cansou de constatar que a opinião pública considerava seu governo um desastre, mas gostava do presidente. De toda forma, na Nova República as coisas se acentuaram. Não foi por acaso que o ex-deputado Paulo Maluf, durante sua frustrada tentativa de chegar ao governo de São Paulo, no ano passado, costumava desabafar em particular: “Não se pode criticar o Sarney. Ele parece a rainha da Inglaterra.” A queda de popularidade sofrida pelo presidente após o Cruzado-II não mudou o quadro.

Curioso presidencialismo, este nosso. Inspirado no americano, parece só lhe ter herdado os defeitos, como Carlos Lacerda disse do deputado Amaral Netto, em célebre frase. Nos Estados Unidos, agora às voltas com o chamado “Irãgate”, a cada vez que o presidente Ronald Reagan tenta conter os limites do escândalo no estreito âmbito de um almirante e de um tenente-coronel, a nação lhe cobra virtualmente aos gritos a responsabilidade. No Brasil, se o Cruzado-I foi um sucesso espetacular, foi sobretudo o Cruzado do Sarney. Já o II, que deu com os burros n’água, é o Cruzado do Funaro.

Não é difícil, pelo andar da carruagem, prever que o fracasso da tentativa de pacto social proposto pelo presidente, se vier a morrer na praia, será debitado na conta do ministro Almir Pazzianotto. Da mesma forma, a “Missão Sarney” junto aos governadores eleitos, que tem obrigado o ministro Paulo Brossard a deslocar Brasil afora sua coleção de chapéus e suas incríveis gravatas-passarela, será imediatamente transformada em “Missão Brossard” assim que trombar nos arroubos de independência do primeiro governador de peso.

E, no entanto, responsabilidade pela atual crise é o que não falta ao presidente José Sarney. Não se trata, é claro, de negar o relevante, quase insubstituível papel desempenhado pelo presidente nesta delicada transição democrática prestes a completar dois anos. Nem de lhe subtrair méritos, esforços e talentos no desempenho de um cargo que, conforme o próprio Sarney é o primeiro a lembrar, ele não buscou. Está reservado com boa antecedência o lugar, amplo e confortável, do presidente na história contemporânea. Ademais, nem na União Soviética do secretário-geral Gorbachev, nem na China do camarada Deng Xiaoping está mais na moda apagar personagens de fotografias oficiais. Mas é um saudável exercício de cidadania lembrar que o presidente, como diriam os locutores esportivos – e com todo o respeito -, também tem pisado na bola.

Basta começar pelo começo – o Plano Cruzado. Não são poucas as testemunhas capazes de relembrar, com riqueza de detalhes, uma certa reunião ocorrida na sala existente atrás da biblioteca do Palácio da Alvorada, na noite do dia 24 de fevereiro do ano passado. Foi ali, em companhia de cinco ministros de estado, de seu genro e secretário Jorge Murad, do consultor-geral da República Saulo Ramos e de cinco dos sete jovens economistas considerados pais originais do Cruzado que o presidente Sarney fez absoluta questão de que o congelamento de preços fosse a pedra de toque da revolução econômica que seria desencadeada dias depois. “É por aí que o povo vai entender a reforma”, insistiu Sarney. De fato, foi. Só que o entusiasmo popular pelo congelamento, medida defendida como necessariamente passageira pelos próprios formuladores do Cruzado, acabou contagiando de tal forma o presidente que ele a sacralizou.

Os riscos foram apontados naquela mesma noite pelo professor Luiz Gonzaga Belluzzo, chefe da assessoria econômica de Funaro. Foi Belluzzo, aliás – e não os hoje numerosos críticos do Cruzado -, quem inventou, ali mesmo, a expressão “engessamento da economia”, para mostrar justamente o que não deveria ser feito além de um certo prazo. Não adiantou. Se já três meses depois do Cruzado a equipe econômica quis retificar os rumos do plano, foi Sarney quem insistiu em manter o congelamento. Em seus discursos triunfalistas, o presidente sistematicamente ignorou o ágio, a maquiagem dos produtos, a escassez de matérias-primas e a sonegação de mercadorias, realidades que já tiravam o sono da equipe econômica.

O presidente, é preciso lembrar, chegou a proclamar ao país como reais índices de inflação mais baixos que os medidos por qualquer instituição do próprio governo. Foi ele também a muralha que conteve as correções do Cruzado até que a campanha eleitoral se escoasse – e, na hora de explicar ao eleitorado que o sonho acabara, o microfone foi parar na frente de Funaro, Sayad e Pazzianotto.

Agora, quando se avolumam os indícios de que o ministro Funaro vai esperar a feiura da inflação chegar a seu auge, antes de pegar o boné e voltar a seus negócios particulares, é bom lembrar que quem preside a República é o presidente. Afinal, Sarney, ao contrário do que Maluf resmungava, não é a rainha da Inglaterra.

Artigo publicado no Jornal do Brasil em 11 de janeiro de 1987

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