
O calendário é uma das criações mais implacáveis do homem, e quem se der ao trabalho de consultá-lo amanhã perceberá que estaremos a precisos dois meses das eleições [para senadores e deputados à Assembleia Constituinte, para os governadores dos 23 Estados e para todas as Assembleias Legislativas e, no Distrito Federal, para 8 deputados e 3 senadores, pela primeira vez].
Tão certo como o verão ou as finais do campeonato brasileiro de futebol, chegará também o dia 15 de novembro, e se existisse um termômetro capaz de medir o frio que atravessa o estômago do PMDB, ele baixaria sua coluna de mercúrio a índices siberianos.
Não é para menos. Um ano e meio de Nova República, completados por sinal amanhã, reduziriam dramaticamente o sex appeal do PMDB. De uma espécie de projeto brasileiro de PSOE (o Partido Socialista Operário Espanhol), um partido cuja capacidade de usar os talheres certos à mesa não o impede de ter e executar um projeto de gradual mudança da sociedade, o PMDB tornou-se um frankenstein político cevado pelo fisiologismo, inchado por uma avalanche de adesistas e descaracterizado em seu perfil ideológico com o fim do maniqueísmo fácil que a frente de oposição à ditadura militar permitia.
É assim que o PMDB caminha para as urnas. A grande bandeira que o maior partido brasileiro poderia desfraldar – o Plano Cruzado – não vai ajudar muito, na medida em que se esfarrapa entre a incompetência dos burocratas que não conseguem fazer nem a carne importada chegar à mesa do consumidor sem ágio e a feiúra da briga que separa a cada dia a equipe econômica do governo [diante da inércia do presidente José Sarney].
Não há dúvida de que o cruzado vem sendo alvo de boicotes, incompreensões e preconceitos de parte de muitos setores que, nos primeiros e gloriosos tempos da reforma, faziam fila à porta do ministro Dilson Funaro para ver quem conseguia a primazia na bajulação. Mas é igualmente verdadeiro que os jovens economistas gestadores do cruzado já trocam pontapés por debaixo das mesas de reunião de Brasília. Enquanto isso, a classe média abre latas de sardinha para substituir a carne, o frango, as salsichas, o peixe e os ovos nebulizados no país em que o boi magro, que existe, custa mais caro do que o gordo, que sumiu. Isso dá voto?
É nesse quadro que o partido se debate, como diria Nélson Rodrigues, com arrancos de cachorro atropelado. Não está se falando, aqui, de resultados quantitativos. Esses, Deus sabe que o PMDB terá. Mas há uma valiosa penca de líderes importantes ameaçados de perder a vaga na Constituinte e, sobretudo, existe no horizonte o fantasma cada vez mais materializado em carne e osso da derrota eleitoral para os governos de São Paulo e Minas Gerais.
E, no entanto, o governo mantém enrolada no armário uma bandeira que, tirada do escuro pelo PMDB e esticada à vista da nação, poderia ter o efeito de um Plano Cruzado instantâneo. Trata-se de vistosa, gigantesca bandeira, tão vasta quanto aquele que abrigou o povo da chuva no dia da eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral: o combate à safadeza do colarinho branco.
Com combate real, que não se perdesse na floresta de sindicâncias, inquéritos, investigações e processos que são tão mais volumosos quanto inócuos e que, na Nova República, guardam espantosa semelhança os da Velha.
Pois a verdade é que, na Nova República, foi-se o sr. Fernando Lyra do Ministério da Justiça, queixando-se de dificuldades para agir e até de preconceitos contra seu diploma de advogado de Caruaru [PE], e nada aconteceu; veio o sr Paulo Brossard [RS], com seu vernáculo e seus chapéus, e tudo continua na mesa, num país onde a escandalosa e invariável impunidade dos poderosos continua de fazer inveja até aos padrões mexicanos de Justiça. Está aí, para não deixar ninguém mentir – e só para pinçar um caso – a indecorosa “fitalhada” do caso Coroa-Brastel, divulgada com exclusividade pelo JORNAL DO BRASIL. Se, em si, as fitas gravadas [obtidas pelas autoridades] não contêm crimes, encerram uma vasta coleção de indícios e sugestões mais do que claras da existência de grossa bandalheira, além da propriamente dita, que foi o próprio estouro do grupo.
[Para refrescar a memória: o Caso Coroa-Brastel foi um escândalo financeiro ocorrido no início dos anos 1980, envolvendo fraudes cambiais e operações ilegais no mercado financeiro. As empresas envolvidas, Coroa e Brastel, eram instituições financeiras que realizavam operações fraudulentas de remessa ilegal de dólares para o exterior, causando grandes prejuízos ao sistema bancário brasileiro.
O esquema envolvia a simulação de operações de exportação e importação para justificar a saída de divisas do país. As empresas se aproveitavam da falta de controle rigoroso sobre o câmbio para enviar recursos ao exterior de forma ilegal. Além disso, havia a manipulação de empréstimos e a captação irregular de recursos no mercado financeiro.]
Certamente é estarrecedor constatar que nenhuma das falcatruas financeiras dos últimos 10 anos tenha terminado com a punição dos responsáveis. Mas talvez seja ainda mais surpreendente verificar a falta de sensibilidade do PMDB para o fato de que, ao primeiro criminoso de colarinho branco colocado atrás do xadrez – xadrez mesmo, desses com barras de ferro [grossas]na janela –, este país viveria um clima de vitória na Copa do Mundo. Nesse sentido, nada dá mais voto do que a cadeia.
Fica a sugestão.
(Artigo de Ricardo Setti, diretor do Jornal do Brasil em São Paulo, publicado 14 de setembro de 1986, sob o título original de “Cadeia também dá voto”. Foi meu primeiro artigo no então considerado prestigioso espaço denominado “Coisas da Política”)