A AVENTURA, A DOR E A ALEGRIA DE FOTOGRAFAR (Texto feito por Ricardo Setti para o livro Fotografia em Revista — As melhores fotos em 60 anos da Editora Abril, cuja capa está neste post, editado por Thomaz Souto Corrêa e Carlos Grassetti. Este livro traz o trabalho, no Brasil e no exterior, da maioria dos melhores fotógrafos do país e vários dos melhores do mundo)
O aviãozinho passava cada vez mais rente e, do céu, cuspia fogo de metralhadora. O fotógrafo de VEJA Pedro Martinelli e o amigo que o acompanhava, o jornalista brasileiro Silio Boccanera, decidiram que era melhor pular da caçamba da camionete em que estavam e se abrigar.
No chão, meio se arrastando e meio engatinhando, conseguiram se esgueirar para dentro de uma casa abandonada, semidestruída em consequência da guerra civil que explodira na Nicarágua em 1979,
com o levante contra a ditadura do general Anastasio Somoza.
Cada um num canto, encolhidos, mal tiveram tempo de respirar. Uma bomba caiu na rua e sua fortíssima explosão arremessou os dois para fora da casa.
“Do jeito que eu estava, com os braços em torno das pernas, a cabeça abaixada e agarrado a meu equipamento, fui jogado no meio da rua”, lembraria depois “Pedrão”, como é conhecido o corpulento fotógrafo de mais de 100 quilos.
Atordoado, com a perna sangrando, Pedrão percebeu que seu parceiro de carona na camionete dos guerrilheiros da Frente Sandinista de Libertação Nacional havia desaparecido em meio ao caos de León, a segunda maior cidade do país. Apesar de sofrerem bombardeio aéreo, os guerrilheiros tinham tomado a cidade, e somente um quartel da Guarda Nacional do ditador ainda resistia, no centro.
Angustiado, enquanto fotografava o que podia, ouvindo explosões e tiros, em meio a fogo e morte, Pedrão procurou por toda parte o amigo – e só foi
reencontrá-lo à noite, já no Hotel Intercontinental de Manágua, a capital, onde se aglomeravam jornalistas do mundo todo que acorreram para cobrir a guerra.
Pedrão relaxou. Mas, além de precisar continuar por alguns dias no meio daquele inferno, abrigava uma preocupação adicional: teria dali a alguns dias que seguir para San Juan, Porto Rico, com a incumbência de cobrir os Jogos Pan-Americanos.
* * * *
A fotógrafa Nana Moraes recebe nos primeiros meses de 1987, no Rio, um pedido da redação de CLAUDIA: cobrir o batizado de Maria Luiza, a filha recém-nascida do maestro e compositor Tom Jobim.
Começam os telefonemas para localizar Tom e marcar a foto. A conselho do pai, o também fotógrafo José Antonio, Nana decide procurar Tom em seu restaurante predileto, a churrascaria Plataforma, no Leblon.
De fato, lá estava o músico, que a atendeu cordialmente e convidou-a a sentar-se.
Nana acomoda-se e ouve de Tom:
– Por favor, peça um chope pra você.
O maestro nota o ar intrigado de Nana, e explica:
– É que minha mulher me proibiu de beber, e se ela aparecer por aqui não vai desconfiar que o seu chope sou eu quem está tomando.
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A tarefa do fotógrafo Armando Prado para CAPRICHO duraria o dia inteiro – dez, doze horas. A reportagem de moda consistia em mostrar às leitoras adolescentes da revista pijamas e camisolas que, de tão confortáveis, supostamente as induziriam a nem querer sair de casa ou, neste caso, sair vestidas com a roupa de dormir.
Escolheram-se três locações em São Paulo: um cinema da Rua Augusta, a casa de um conhecido arquiteto e um colégio particular. A modelo seria uma gauchinha de 14 anos, uma das tantas promessas de modelos vindas do Sul que sonhavam, e sonham, iniciar a carreira em CAPRICHO.
Alta, com um rosto marcante e um nariz um tanto proeminente, fora do padrão, olhos claros, a garota revelou-se muito profissional. Não reclamou de nada, diferentemente do que ocorre com a maioria das colegas, mostrou-se bem-humorada o tempo todo, topou sem hesitação refazer as fotos que fossem necessárias, tinha atitude e personalidade.
Manteve o astral mesmo numa cena em que se molharia num chuveiro: na casa do tal arquiteto, por causa da luz adequada, Armando escolheu um chuveiro externo, de água fria.
A garota iria longe. Seu nome é Gisele Bündchen.
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O fotógrafo J.R. Duran ficou preocupado quando ele e a equipe de PLAYBOY – a editora Ariani Carneiro, um assistente de fotografia, uma produtora, um cabeleireiro e um maquiador – chegaram à ilha de Santorini, na Grécia.
Apesar de ser um consumado globetrotter, era sua primeira vez na ilha, e ele não gostava do que via. A estrada que saía do aeroporto mostrava uma paisagem pedregosa, desértica, destituída de atrativos. E ele carregava a responsabilidade de fotografar para a edição de 20º aniversário da revista – e no mais glamouroso cenário possível – a mulher mais comentada do país: Adriane Galisteu, a última namorada do campeão de Fórmula 1 Ayrton Senna, morto no ano anterior, 1994.
Suas apreensões logo se dissiparam quando atravessaram uma espécie de grande portal do paredão rochoso, sobra ancestral de um vulcão extinto, que dá acesso à esplêndida baía de águas azul-marinho, emoldurada por escarpas coalhadas de casas brancas brilhando ao sol.
As atividades começaram no dia seguinte, e se estenderam por nove dias. Em seus 15 anos de PLAYBOY, Ariani Carneiro não se recorda de tarefa que demandasse tanto tempo.
Preocupado em obter o máximo de originalidade no ensaio, Duran havia anotado uma série de ideias num caderninho. Peculiares, surpreendentes, elas foram se materializando: Adriane nua, de sandálias de salto alto, passando roupa ao ar livre. Ou, a céu aberto, banhando-se numa bacia. Estendida, de olhos fechados, sobre a cúpula curva do chalé de um hotel.
“Os pressupostos dos ensaios de nu são quase sempre os mesmos”, ressalta o fotógrafo. “O diferencial é a sensação de intimidade que as fotos possam produzir.” Aí, e por isso, Duran viria com a proposta de algo “extremamente íntimo” – inspirado em cena rápida e improvisada de sua vida privada –, que se tornaria um marco na história da revista: que tal se ela se deixasse fotografar depilando, com um barbeador de lâminas, o púbis?
– Nem pensar! – reagiu Adriane.
Experiente, o fotógrafo jogou a isca:
– Ok. Então eu deixo essa foto para fazer em outro trabalho, com outra estrela.
No último dia, Adriane voltou ao assunto:
– Olha, Duran, pensei bem e aquela ideia pode ser legal.
A foto da “deusa loura nua na Grécia”, como dizia a chamada de capa da revista, com Adriane de salto alto, blusa de seda azul, um anel de ouro e pedra preciosa no dedo mínimo esquerdo, sem roupa íntima e se depilando não num banheiro, mas num cenário inusual – numa saleta ornada com quadros, assentada sobre um sofá de couro branco –, virou notícia no dia em que a edição veio à luz, superando 1 milhão de exemplares.
O colunista Zózimo Barrozo do Amaral, que ditava moda e modismos no Jornal do Brasil, logo a denominou de “raspadinha” – alusão maliciosa aos bilhetes da loteria instantânea, ainda muito em voga naquele 1995. O tema atiçou uma torrente de manifestações, que incluíram de psicanalistas a programas de fofoca na televisão, do escritor Luis Fernando Verissimo a revistas semanais.
Na Folha de S.Paulo, que tratou do caso várias vezes, o exigente colunista Marcelo Coelho sentenciou: “Uma foto antológica”.
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O fotógrafo Sergio Sade, incumbido por VEJA da cobertura da visita oficial do general-presidente Ernesto Geisel ao Japão, em setembro de 1976, se beneficiou de um acordo prévio entre a Abril e a agência noticiosa Associated Press.
Todas as fotos em preto e branco da viagem seriam reveladas pela AP, e esta designou o que Sade imaginava tratar-se de um office-boy para auxiliá-lo. “Esse japonesinho pequenino trabalhou dois ou três dias comigo e sofreu um bocado”, lembra Sade, “porque eu, sendo o único fotógrafo da revista, me deslocava muito e lhe passava filmes sem parar. Ele ia para o laboratório da AP e vinha novamente me encontrar para continuarmos.”
No final da viagem, Sade dirigiu-se ao escritório da AP em Tóquio para agradecer a cooperação, convidou o chefe para uma cerveja e resolveu incorporar o exausto japonesinho.
No bar ao lado, conversa vai, conversa vem – e Sade, apiedado da “máquina surrada” que o rapaz portava, perguntou-lhe se ele também era fotógrafo.
E, estupefato, ficou sabendo que o “japonesinho” chamava-se Huýnh Công Út, de pseudônimo Nick Hut, vencedor do Prêmio Pulitzer de Fotografia de 1973 nos Estados Unidos, com a célebre foto da menina nua queimada com napalm após um bombardeio aéreo no Vietnã do Sul – provavelmente a foto mais emblemática da Guerra do Vietnã.
“Eu não sabia o que dizer para ele”, reconhece Sade. “Foi uma lição de humildade fantástica. Se a situação fosse inversa, eu provavelmente iria dizer que tinha o Pulitzer e que não aceitaria atuar de boy de outro fotógrafo.”
* * * *
O fotógrafo Marco de Bari está embarcando, entusiasmado, para Roma. Seu destino final é Monte-Carlo, em Mônaco. O objetivo é uma reportagem com uma Ferrari Spider 360, amarela, conversível, que, em QUATRO RODAS, irá reproduzir, com um carro diferente, a primeira capa da revista, na qual uma modelo posava de pé junto a um Karmann-Ghia vermelho.
A Ferrari sairá na edição de 40º aniversário da revista, em agosto de 2000. Bari faria um casting em Milão, para a contratação da modelo loura que posaria para a foto. Por isso, levava na bagagem todas as peças de produção destinadas à jovem – vestidos, blusas, minissaias, sandálias de salto alto.
Ao passar pela alfândega, em Roma, pediram que abrisse as malas. O próprio Bari contaria depois:
– Pela cara do guarda, com certeza ele pensou: “Xiii, é mais um travesti brasileiro chegando…”
A contrapartida viria em Monte-Carlo. Bari instalou-se num hotel, saiu com a Ferrari e realizou a tarefa. Monte-Carlo é uma cidade minúscula, e um dos porteiros do hotel viu o fotógrafo com a Ferrari e a louraça a bordo. Não se conteve ao encontrá-lo na volta:
– Mon Dieu, o senhor mal chegou e já conseguiu um mulherão desses!
As lentes deles
captaram 60 nãos de história
Os fotógrafos da Abril. Eles têm para contar tantas histórias, tão dramáticas, emocionantes ou divertidas, mas sempre interessantes, quantas são as que narraram nos últimos 60 anos, através de suas câmeras, para centenas de milhões de leitores. Histórias de um Brasil e um mundo em mutação. Sobre guerras e revoluções, avanços e retrocessos econômicos, o progresso tecnológico e as mudanças no comportamento sexual, o despertar dos direitos das mulheres e das minorias,
a preocupação com o ambiente. Sobre a evolução da moda para uma indústria criadora de hábitos,
os novos padrões de beleza, saúde e consumo, o desenvolvimento do esporte e a disseminação planetária da música, os novos horizontes da medicina, a reviravolta nas religiões e nos hábitos de alimentação. Sobre a queda do Muro de Berlim e o fenômeno da globalização,
a digitalização da vida e a revolução nas comunicações. Do Brasil de Juscelino Kubitschek e seus primeiros
passos em direção à modernidade até o país que se abre ao mundo e consolida a democracia, do planeta sob
a Guerra Fria à multipolaridade de centros de poder – nada, nos últimos 60 anos, escapou à lente dos fotógrafos da Abril. A essência do esforço desses fotógrafos integra
o acervo do Departamento de Documentação (Dedoc) da editora, com 7 milhões de imagens.
Por fotógrafos da Abril entenda-se – e homenageia-se –, neste livro, todos aqueles profissionais que,
durante períodos duradouros ou curtos, na condição de contratados ou de colaboradores, com trabalhos presentes ou não nesta obra, contribuíram, com seu talento, esforço e dedicação, para a saga que as revistas da Abril puderam narrar em mais de meio século nas 187 publicações regulares que circularam nesse período. Sem contar centenas de títulos de revistas de
quadrinhos, fascículos, livros e outros produtos culturais ou de entretenimento, essas revistas somaram, em seis décadas, nada menos que 11 bilhões de exemplares – que, colocados lado a lado, dariam cinco vezes
a volta em torno da circunferência da Terra.
A excelência fotográfica da Abril começou por onde deveria começar: pelo começo. Victor Civita, fundador da empresa, levava as artes gráficas e a fotografia impregnadas no DNA. Seu filho Roberto, que sobretudo depois do lançamento de REALIDADE, por ele idealizada, em 1966, e de VEJA – igualmente projeto seu –, em 1968, abandonou a área comercial para voltar-se com toda ênfase à editorial, formou-se em business
administration mas também em jornalismo nos
Estados Unidos, e conhecia o universo de revistas o suficiente para colocar a fotografia no lugar merecido. Roberto Civita manteve e reforçou essa postura quando se tornou, com a morte do pai, em 1990,
o presidente da empresa. Pai e filho tiveram, desde os primórdios, a colaboração de profissionais com
approach semelhante e grande preocupação com o
visual das revistas, como o diretor editorial Luis Carta,
o diretor de arte Attilio Baschera e Thomaz Souto Corrêa, que chegou em 1963 como redator-chefe de CLAUDIA e logo galgaria sucessivos postos de comando.
Eles souberam aproximar-se de grandes fotógrafos e, progressivamente, atraí-los para a Abril. Nessas seis décadas, estima-se que pelo menos 2 mil profissionais passaram pelas páginas das publicações da Abril, dos quais 159 estão presentes neste livro. E como trabalharam, nesses anos todos, os fotógrafos da Abril.
Em alguns casos, pode-se constatar uma fração de seu legado via estatísticas – um pálido retrato do muito mais que cada um realizou. De toda forma, diga-se que Pedrão Martinelli, por exemplo, cobriu, para VEJA e ocasionalmente PLACAR, cinco Copas do Mundo, duas Olimpíadas, a morte e a eleição de dois papas, o incêndio dos edifícios Joelma e Andraus, em São Paulo, a revolução na Nicarágua… – seria preciso uma equipe de arquivistas para levantar tudo.
Um amigo de Orlando Brito contabilizou como de sua autoria 113 capas de VEJA.
Ninguém contou isso a Pedro Rubens, mas ele, que também não pesquisou, acredita ter sido, para a mesma VEJA, autor de “centenas” delas. Lemyr Martins totalizou, para PLACAR e QUATRO RODAS, sete Copas do Mundo, 317 Grandes Prêmios de Fórmula 1 e toda a carreira dos campeões Emerson Fittipaldi, Nelson Piquet e Ayrton Senna. Fotografou o milésimo gol de Pelé, no Rio, e foi o único a registrar a milésima partida do supercraque, na remota Paramaribo, no Suriname. Esteve com sua câmera em ação em todas as despedidas do Rei – da seleção brasileira, do Santos e, no final, do Cosmos de Nova York. Das 41 vitórias de Senna, clicou 38 – as três restantes, não, e somente porque coincidiram com Copas do Mundo. José Carlos Amaral Kfouri, o Cacalo, ignora quantas fotos de vários tipos (exceto ensaios) produziu para PLAYBOY em duas décadas e tanto, mas ainda se lembra de que retratou 76 protagonistas da tradicional entrevista do mês. Nana Moraes tinha atingido, em 2008, a espantosa marca de 600 capas para as revistas femininas, especialmente NOVA e CLAUDIA. Marco de Bari, que examina em média 1 200 fotos para editar cada edição de QUATRO RODAS, perdeu a conta das capas da revista sob sua responsabilidade – parou ao passar de 100. Sérgio Jorge fez de tudo na vida e, depois que deixou o comando do Estúdio Abril, já como freelancer, só a Feira Internacional de Móveis de Milão, na Itália, cobriu 12 vezes para CASA CLAUDIA. Marcelo Tabach chegou a editar para CONTIGO! 6 mil fotos de 11 fotógrafos em dois dias de Carnaval no Rio – e isso, com computador, radiocomunicadores e tudo, em pleno Sambódromo. J.R. Duran estabeleceu um recorde dificilmente alcançável ao chegar, em março de 2010, a um total de 243 ensaios de nu para PLAYBOY.
O duro que eles deram
para chegar onde chegaram
Uma câmera presenteada pelo
pai — e surge a vocação
Como eles apanharam
o “bichinho da fotografia”
Há, porém, outras maneiras de medir a dedicação
e o trabalho dos fotógrafos da Abril. São incontáveis as histórias de riscos assumidos pelos profissionais – desde pequenos, quase risíveis, como o pontapé que
o fotógrafo de PLACAR Alexandre Battibugli levou na perna quando o craque italiano Del Piero comemorava, chutando placas de publicidade, um gol feito na Copa de 2006, até o dia em que o barco precário que conduzia a fotógrafa Ana Arruda, que não sabe nadar,
virou próximo a um lago repleto de jacarés na Amazônia. Episódio histórico ocorreu com os fotógrafos Claudio Larangeira e Geraldo Guimarães, que, com o repórter Nehemias Vassão, flagraram em 1972 para QUATRO RODAS um segredo de fábrica da Volkswagen em fase de testes – a peruinha Brasília, que, uma vez no mercado, se converteria num extraordinário sucesso de vendas. Notados pelos seguranças da fábrica, eles foram recebidos a bala. Por sorte, a matéria já estava apurada e fotografada. Posteriormente, os seguranças iriam para o olho da rua. Outra equipe de QUATRO
RODAS havia enfrentado, em 1966, uma ameaça distinta, quando Jean Solari colheu imagens de um segredo absoluto da Ford: o sedã Corcel, primeiro veículo de passageiros da fábrica. Antes mesmo de a equipe voltar à redação, a Ford telefonou para
a Abril ameaçando, na hipótese de as fotos serem
publicadas, suspender toda a publicidade em suas
revistas. Victor e Roberto Civita foram peremptórios: que a Ford agisse como bem entendesse – as fotos e a reportagem sairiam. A empresa, no fim, voltou atrás.
Fotógrafos, como se sabe, viajam sem parar. Ao voltar para casa após uma prolongada missão,
Jorge Butsuem defrontou-se com o choro assustado do primeiro filho: não tinha reconhecido o pai.
Pedrão Martinelli pulou tanto tempo de hotel em hotel que praticamente deixou de ter uma casa. Lemyr Martins cobria Fórmula 1 para PLACAR. Como, nos intervalos dos Grandes Prêmios, cabia-lhe a tarefa de cobrir diferentes campeonatos europeus de futebol, chegava a permanecer quatro meses seguidos longe da família.
Em situações distintas, com pautas distintas, algo
parecido aconteceu com quase todo profissional que, um dia, empunhou uma câmera para a Abril.
Há ausências por viagens, e algumas que não dependeram de pautas da redação. Um retrato de um Brasil que vai desaparecendo, vários deles viram-se, em um ou outro momento da carreira, presos durante missões profissionais. Em plena ditadura do general Garrastazu
Médici, Cristiano Mascaro, durante a elaboração de uma reportagem de capa de VEJA sobre o famoso sambista e bicheiro Natal da Portela, foi parar numa delegacia em Cascadura por haver dirigido a objetiva para uma reles estação de trem – supostamente, “área de segurança nacional”. Orlando Brito, que na VEJA em Brasília se consagraria como o grande fotógrafo do poder, passaria maus bocados estando ainda em
O Globo, no mesmo período Médici, por ter conseguido, via um colega com suspeitas relações com os serviços de informação, registrar militares treinando métodos de tortura. O episódio mobilizou o próprio ministro do Exército, Orlando Geisel, e Brito amargou três dias numa cela sem saber o que iria lhe acontecer.
O caso mais grave, com certeza, seria o de Geraldo Guimarães, o “Geraldinho”. Em 1969, alguns dias depois de fotografar para a capa de VEJA o cadáver do principal líder da luta armada daqueles tempos, o ex-deputado comunista Carlos Marighella, dentro de um Fusquinha na Alameda Casa Branca, em São Paulo, agentes levaram Geraldinho para o sinistro
DOI-Codi, onde, sob tortura, o mantiveram por 49 dias, apesar das ingentes tentativas de diretores da Abril para libertá-lo. O fotógrafo, que jamais recebeu explicação para a barbárie, precisou submeter-se a cirurgias e sofreu sequelas nos olhos, na coluna vertebral e no sistema urinário, algumas das quais continua carregando 40 anos depois. Amilton Vieira, igualmente de VEJA, escapou por pouco de sorte semelhante. Ele documentara uma chacina cometida pelo grupo do delegado de polícia Sérgio Paranhos Fleury, em cujo encalço ia, corajosamente, o promotor Hélio Bicudo, num processo judicial que corria em Guarulhos (SP). Operando em sintonia com os órgãos
de repressão do Exército, o grupo de Fleury, logo
conhecido como Esquadrão da Morte, passou a perseguir tudo quanto constituísse sinal de prova contra Bicudo. Um dia, diante da chegada das sinistras peruas
Chevrolet Veraneio de Fleury à sede da Abril, o fotógrafo conseguiu pôr-se a salvo fugindo pelos meandros da gráfica. Para que a poeira baixasse, a solução foi uma transferência provisória para QUATRO RODAS, para a qual Amilton passou a viajar, fazendo reportagens de turismo.
Essa tribo, os fotógrafos da Abril, deu um duro
danado, na vida e na profissão. Sem instrução, José Ferreira, um dos pioneiros dos paparazzi no Brasil, que se celebrizaria um dia por uma foto de Maria
Bethânia e Gal Gosta se beijando na boca, publicada na revista INTERVALO, começou como office-boy da falecida Ultima Hora em São Paulo. Jussi Lehto, antes de se tornar um excelente fotógrafo de Fórmula 1 e durante muitos anos chefe do laboratório da Abril e guardião de vasto equipamento fotográfico, foi operário e decorador de vitrines – sem contar que integrou um grupo de artilharia antiaérea durante a resistência de sua Finlândia natal à invasão soviética, no final de 1939, mal iniciada a II Guerra Mundial. Também com vitrines lidou Lemyr Martins no início da vida profissional, após haver desistido da carreira de gerente das Casas Pernambucanas quando quiseram transferi-lo de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, para Mato Grosso. Jean Solari, ainda sem pensar em brilhar em QUATRO RODAS e em REALIDADE, saía com um sócio num velho ônibus fotografando pelo Brasil afora, tentando produzir material para veículos da
Europa. Para se financiar, vendiam fotos para os próprios personagens que retratavam no interior, como fazendeiros e comerciantes. Jorge Butsuem, que viria a percorrer fecunda trajetória de 33 anos na Abril, chegou a lavar chão na produtora de cinejornais de Primo Carbonari. Orlando Brito servia cafezinhos na sucursal de Brasília da Ultima Hora. Ricardo Chaves voluntariou-se como faz-tudo na fotografia da Zero Hora de Porto Alegre sem abandonar os estudos – e trabalhou nove meses de graça. Nana Moraes apanhou das velhas máquinas de escrever, de cartas comerciais e de memorandos na tentativa de virar secretária.
Para ser o que terminariam por ser – um conjunto brilhante, com uma contribuição inigualável
para a fotografia brasileira –, nem todos os fotógrafos da Abril pretendiam de início seguir esse trajeto.
Maurício Nahas, em São Paulo, abandonou a medicina no segundo ano. Tal qual Cacalo Kfouri, só que no quinto ano de engenharia eletrônica operacional. Luiz Garrido, em Paris, desistiu a meio caminho da economia. Ricardo Chaves estudava mecânica em Porto Alegre e queria lidar com carros e motores. Antonio Milena, em Maringá (PR), sonhava jogar futebol como profissional ou pilotar aviões e não terminou educação física. German Lorca, em São Paulo, labutou anos como contador. Em Belo Horizonte, Cláudio Versiani iniciou um curso superior de química, como Germano Lüders em São Paulo, só que se transplantou para comunicação social, enquanto Lüders simplesmente largou mão da universidade. Em Santo André (SP), Pedrão Martinelli ambicionava chegar um dia à seleção brasileira de basquete. O negócio de Bubby Costa era o cinema,
e para isso ele deixou o Rio e emigrou para os Estados Unidos. Bia Parreiras e Bob Wolfenson, em épocas distintas, seguiam ciências sociais em São Paulo quando mudaram de rumo. Cristiano Mascaro formou-se em arquitetura em São Paulo, mesmo curso feito no Rio por Luis Humberto, cuja carreira de fotógrafo se daria em Brasília. Sérgio Berezovsky é a grande exceção: com 5 anos de idade, pediu à mãe que comprasse “uma revista de carro”, assunto de seu precoce interesse,
e ganhou um exemplar de QUATRO RODAS, que a partir daí passou a colecionar. Décadas depois, em 2000, tendo atuado como fotógrafo em VEJA, PLACAR e
O Estado de S. Paulo, entre outros veículos, Berezovsky – diplomado em jornalismo em São Paulo – se tornaria diretor de redação de sua revista preferida.
O caso de José Antonio é especial: em 1962, casado havia pouco, pai recente e com a mulher grávida
de uma menina, tocava negócios remanescentes do
falecido pai quando recebeu o diagnóstico de que uma doença grave iria levá-lo em meses – e decidiu aprender fotografia para registrar o começo da vida do filho.
No entrementes, submeteu-se a tratamentos, a filha nasceu, os sintomas desapareceram e ele decidiu dar uma guinada, iniciando trajetória de repórter fotográfico no Jornal do Brasil. Só viria a morrer 33 anos mais tarde, aos 61 anos de idade, num período em que o
filho, Sérgio, e a filha, Nana, deslanchavam na carreira. Não viveu, porém, para ver o neto Ricardo Moraes, filho de Nana, seguir, também ele, a profissão da
família. Deixou um legado riquíssimo em uma variedade de campos – além de ter burilado duas gerações de fotógrafos, como mestre em estúdio produziu fotos
de cozinha, moda e beleza de extraordinária qualidade, capas para todo tipo de revista e ensaios de nu originais e tecnicamente perfeitos.
Laços pessoais, de família ou alguma iniciativa de um parente foi, precisamente, o que levou vários fotógrafos da Abril a chegar ao métier. Adolescente, Bob Wolfenson não sabia o que fazer da vida, mas uma câmera presenteada pelo pai tornou a fotografia um de seus focos de interesse. Algo parecido ocorreu com Jussi Lehto, só que aos 10 anos de idade. Walter
Firmo teve certeza de seu destino ao ganhar do pai uma Rolleiflex, e justamente com ela, em 1958,
daria os primeiros passos na Ultima Hora do Rio.
Sua câmera, Otto Weisser ganhou de uma namorada. Sergio Sade tinha um vizinho que fotografava.
O irmão mais velho de Jorge Butsuem, amador, atuava como lambe-lambe. Uma prima próxima a J.R.
Duran, então vivendo em sua Barcelona natal, casou-se com um grande fotógrafo catalão. O pai de Maurício Nahas compartilhava com o filho a fotografia como hobby. Um irmão de Ricardo Corrêa, funcionário da Abril, conseguiu-lhe um emprego de office-boy da
redação de PLACAR, e ele desde o primeiro dia aproximou-se dos fotógrafos. Otto Stupakoff, muitos anos depois fotógrafo de primeira e extremamente versátil, além de grande pioneiro da moderna foto de moda no Brasil , embebeu-se de imagens em álbuns de família, começados pelos bisavós. Álbuns assim fascinavam Oscar Cabral aos 9, 10 anos de idade, tanto quanto
a câmera Rolleiflex do pai, corretor de seguros.
Esse time extraordinário teria uma formação multifacetada, com alguns pontos de convergência. Uns cursaram jornalismo ou comunicação, e ali mesmo voltaram-se ou já estavam voltados para a área em que se destacariam. Casos de Cláudio Versiani, Alexandre Battibugli ou Ana Araujo, que concluíram o curso,
ou de Lemyr Martins e Marco de Bari, que não
chegaram até o fim. Outros, em alguma altura da vida, estudaram fotografia propriamente dita. Pedro
Rubens aprendeu fotografia técnica na Escola Técnica de Aerofotogrametria, em São Paulo, e Antonio
Milena, no Sesc de Maringá. Roger Bester formou-
se na Regent Street Polytechnic, em Londres, e se aperfeiçoou com uma bolsa da Kodak nos Estados Unidos. Luiz Garrido percorreu rumo semelhante em
Paris, na École Nationale de Photographie. Bubby Costa enfrentou a exigentíssima escola do mestre americano Glen Fishback, o “gênio da luz”, na Califórnia. O curso de artes plásticas na FAAP e o interesse em publicidade levaram Luis Crispino a trabalhar como assistente de um fotógrafo marcante, Miro – e, como diz ele, “fui apanhado pelo bichinho da fotografia”.
Xxx xxxx xxxx, xxx
xxxxxx xxxxx x xxxxxxx
Juntando poesia
e prosa numa imagem
Pintura, cinema, escola,
vida: o que forma um fotógrafo
A diferença é quem
está atrás da câmera
Fotografia é para
contar boas histórias
A diversidade de caminhos percorridos na formação, no entanto, não impede que um grande número de fotógrafos da Abril caminhe para pontos de vista semelhantes sobre a profissão. “Técnica não é tudo”, afirmava por exemplo Otto Stupakoff, para quem
o que realmente importava era o estilo. Algo que
“o fotógrafo desenvolve à medida que se desenvolve como ser humano. No final das contas, fotografia não é nada mais do que a comunicação entre duas pessoas, e é impossível fotografar bem sem entender isso”.
A esta altura da vida e da profissão, revela Cláudio Versiani, “não me interessa tanto a técnica. Claro, quem quiser ser fotógrafo tem que dominar a técnica. O que interessa de verdade, entretanto, é a linguagem fotográfica, como escrever através de imagens, como contar histórias com fotografia. Quero saber dos sentimentos de fotógrafo e fotografados. A técnica é só o
suporte para essas imagens”. Opinião próxima à de Bob
Wolfenson: “Quando estou fotografando, minhas inquietações, formação e personalidade estão ali junto comigo, selecionando o modo de olhar”. Ana Araujo, fotógrafa de hard news, considera necessário “sempre estar de olho na notícia, no fato, mas sem esquecer
a arte, que no fundo é o que também me move na
fotografia. O ideal é juntar a prosa e a poesia, vamos dizer assim, em uma imagem”. Para Maurício Nahas, “é importante dominar a técnica, desde que depois ela se torne uma coisa intuitiva, espontânea”. Aprender como funciona uma máquina fotográfica é simples, acha por sua vez J.R. Duran. “A técnica é como a
ortografia”, acrescenta. “Você precisa de ortografia para escrever corretamente. Mas se você tiver apenas uma boa ortografia não existe nada por trás disso.” Roger Bester vai na mesma direção. “Só a técnica leva o fotógrafo longe. Muitas pessoas hoje em dia são capazes de fotografar graças às facilidades proporcionadas pela câmera digital. Para obter a foto maravilhosa, no entanto, quem faz a diferença é quem está por trás dela. Sempre vi a fotografia como algo intuitivo.”
Importante, para boa parte dessa grande tribo de mestres, é também aquilo que o fotógrafo acumula de cultura visual. Luiz Garrido sentiu-se um privilegiado durante seus anos em Paris. O artista plástico e amigo Frans Krajcberg, naquele tempo radicado na Cidade Luz, sugeria que fosse sozinho a exposições importantes, e em seguida levava-o em nova visita ao mesmo museu. “E eu, pelos olhos de Krajcberg, via outra exposição”, lembra Garrido. O fotógrafo Alécio de Andrade – um artista que entrou na mitológica agência Magnum pelas mãos do próprio Henri Cartier-Bresson – funcionaria como um segundo orientador fundamental.
“Ele dizia que se aprende fotografia no museu, no cinema e comprando livros de fotografia.” Garrido conta que chegava a ficar uma hora diante dos detalhes de um quadro no Louvre ou no então museu impressionista de Jeu de Paume. Mais diretamente mergulhada nesse universo, Maureen Bisilliat deixou sua Inglaterra natal para estudar pintura durante sete anos em Paris
e Nova York. Cláudia Andujar igualmente exerceu
a pintura durante anos. Walter Firmo assegura: “Bebi muito nas cores dos impressionistas. Sempre quero exaltar meu trabalho na gratificação estética, e tenho certeza de que o que me levou a fazer fotojornalismo não foi a questão factual”. J.R. Duran viu-se impactado por pintores espanhóis que conheceu e admirou na
juventude, como Joaquín Sorolla e Ramón Casas.
Oscar Cabral, nos primórdios da carreira, dedicava o tempo livre nos plantões de fim de semana na
Bloch Editores, no Rio, a beber avidamente das revistas estrangeiras e do material de agências como Gamma e Sygma, na redação de Manchete. Ricardo Chaves investiu um dos primeiros salários na compra dos
17 volumes da Encyclopedia of Photography da revista americana Life – e nem falava inglês. Germano Lüders relata ter aprendido fotografia “vendo livro dos grandes retratistas, como Irving Penn e Richard Avedon”.
E é outro que se enriquece observando a pintura: “Há o enquadramento, o fundo, a diferença do fundo para o primeiro plano, esses detalhes que você acaba olhando, aprendendo e tentando trazer para o seu trabalho”. Para ele, “o cinema é também uma riquíssima fonte de aprendizado visual, de enquadramento, luz, técnica”. Maurício Nahas concorda: “Uma coisa que me influencia é o cinema, o que fazem diretores como Martin Scorsese e Bernardo Bertolucci.” Não é por acaso, assim, que o editor Fernando de Barros, o grande e indisputado pioneiro da moda masculina no Brasil, que durante meio século prestou serviços à Abril, tenha sido não apenas diretor de cinema mas comandante do maior estúdio cinematográfico que o país já teve,
o Vera Cruz.
A cultura visual é, pois, crucial. Todavia, na visão de vários fotógrafos, não basta. “Uma pessoa ignorante jamais será um grande fotógrafo”, opina Jussi Lehto. J.R. Duran atribui grande importância às escolas particulares em que estudou na Espanha, na década de 60. “Engraçado, elas eram em geral bem ruins, mas serviram como base para minha vida inteira.
A formação de um fotógrafo é, na verdade, uma mistura de muitos ingredientes. Para mim, incluiu até o primeiro livro importante que li aos 15 anos, O Vermelho e o Negro, de Stendhal.” Cláudio Versiani considerou “fundamental” seu período na faculdade de comunicação. “Aprendi a ver e questionar, a pensar e a respeitar a visão dos outros. A escola tinha um grupo de professores fantástico, altamente qualificado. Entre inúmeras coisas, aprendi a analisar imagens e aprendi que deveria seguir estudando o resto da vida.”
Seja qual for a natureza, a extensão ou a origem de sua formação, o importante é a obra que todos esses fotógrafos produziram, de que uma pequena parte está neste livro. E, apesar do que diz Ana Araujo – “Fotógrafo precisa ter sorte, senão é melhor desistir da profissão” –, é igualmente verdadeira a assertiva de sua colega Bia Parreiras: “Não acredito em sorte sem trabalho”. E haja os dois. Que o diga, por sinal, a própria Ana. Por estar invariavelmente ligada, percorrendo, como faz há 18 anos, os meandros de Brasília, mas bafejada também por boa dose de sorte, conseguiu capturar para VEJA um momento em que o empresário Sebastião Buani colocava um gordo maço de cédulas no bolso. Buani, arrendatário do restaurante da
Câmara dos Deputados, denunciara estar tendo dinheiro vivo extorquido mensalmente pelo então presidente da Casa, deputado Severino Cavalcanti, que no auge do escândalo decorrente acabou renunciando ao mandato para não ser cassado. A foto resumia de maneira exemplar a crise e obteve o Prêmio Abril de Fotografia.
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Sorte, mas também
trabalho, nervos e rapidez
Um bilhete, e fotos
exclusivas de John Lennon
“Viva o Brizola!”, e ACM
emfim sorri para o fotógrafo
O time inteiro posa
com dentes de vampiro
Se a sorte jogou um papel na captura dessa imagem premiada, fora necessário equilibrar o trabalho com nervos e rapidez para que Ana registrasse em imagens os cadáveres de trabalhadores rurais mortos no episódio conhecido como o “massacre de Eldorado dos Carajás”, em 1996, um confronto entre manifestantes sem-terra e a Polícia Militar do Pará, no município
de mesmo nome. Ana e a repórter Mônica Bergamo descobriram que os 19 corpos dos mortos haviam sido levados de Eldorado para Marabá, a 100 quilômetros de distância, e colocados num almoxarifado, trancado por uma porta de grades de ferro. As grades, apertadas, não deixavam espaço para a câmera. A fotógrafa, tendo menos de meia hora para despachar o filme
de avião para São Paulo na mão de algum passageiro do único voo do dia, sob a pressão da cena horrenda e a premência do tempo, deu um jeito de desmontar
a câmera, passá-la por um dos apertados vãos da grade, montá-la de novo do lado de dentro, fazer as fotos, desmontar e remontar a câmera e sair correndo para o aeroporto. Valeu a pena: a foto materializou-se
na capa de VEJA e, mais importante, revelou para a história contemporânea, pela natureza dos tiros
à queima-roupa “no peito, na cabeça, na testa”, que se
caracterizara uma matança.
Adicionalmente sempre existe, é claro, o fator
presença de espírito, algo que Luiz Garrido sabe perfeitamente. Ainda jovem e freelancer em Paris, em 1969, sem isso não fotografaria o beatle John Lennon e a mulher, Yoko Ono, no começo de sua célebre “campanha pela paz mundial” deitados numa cama. Um enxame de fotógrafos entupia a entrada do Hotel Plaza Athénée, onde o casal se hospedava, e ninguém conseguia subir. Garrido, contudo, frequentava a pequena sucursal de Manchete, instalada defronte ao Plaza, e aos poucos passou a conhecer funcionários do hotel. Arranjou uma flor e escreveu um bilhete a Lennon dizendo algo como: “Oi, John, estou aqui embaixo entre um monte de fotógrafos. Gostaria de fotografar vocês. Se não der, tudo bem, vou embora. Em todo caso, mando-lhe uma flor”. Um bell-boy do hotel topou levar o papel e a flor. Não demorou e, para surpresa de Garrido, Lennon pediu que subisse. A sessão de fotos renderia um convite para acompanhar o casal a Amsterdã e a Londres.
Essa presença de espírito Garrido procurou conservar sempre. Profissional consagrado, clicando personalidades para a revista INTERVIEW, do Grupo Abril,
o dever em 1995 levou-o ao gabinete do superinfluente senador baiano Antonio Carlos Magalhães, em Brasília. Garrido desenvolveu um método peculiar para
obter retratos expressivos. Opera com lente grande
angular, aproxima-se ao máximo do rosto do retratado, o que lhe permite obter o que chama de “uma deformação controlada”, movimenta-se o tempo todo, fala alto, mal deixa o interlocutor pensar. “Você de repente joga um tapa na pessoa e ela libera o que tem dentro, entende?” – explica. Não estava funcionando, porém, com o esperto ACM. Garrido queria que o senador sorrisse, e ele fechava a cara. O fotógrafo percebera um grande Cristo acima da poltrona, tentou capturar uma metáfora visual, enquadrando ACM com o Todo-Poderoso em segundo plano, mas o senador olhou para trás e refugou:
– Não vou fazer isso, não!
E apressava o fotógrafo:
– Vamos logo com isso, meu filho, vamos logo!
Então veio a inspiração. Garrido passou a gritar, alto e bom som, o nome do equivalente ao demônio para ACM:
– Viva o Brizola! Viva o Brizola!
Enfim, surpreso com a menção, aos berros, do
inimigo político de uma vida inteira, o velho pajé desarmou o rosto num sorriso maroto, de quem manda e sabe que manda. E… click, estava na mão a foto da matéria intitulada Eu Sou o Poder!
É preciso jeito para obter retratos. O próprio Garrido usou de outro recurso – paciência – para fotografar o empresário Mario Amato, à época presidente da
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Notando que Amato, que o recebeu às
3 da tarde, estava algo sonolento, o fotógrafo foi
espichando os preparativos em silêncio até que o empresário cochilou. O resultado foi uma foto raríssima: Amato adormecido à cabeceira de uma enorme mesa de reuniões vazia. Germano Lüders lançou mão de longa argumentação sobre a importância de um executivo representar os valores de sua empresa para que o presidente da Alpargatas, Márcio Utsch, posasse de terno preto, gravata vermelha e usando, em vez de sapatos, sandálias havaianas. O retrato se tornou capa da edição de EXAME de 5 de julho de 2006. Feito mais complicado seria o de Ricardo
Corrêa, que quase apanhou quando sugeriu aos
jogadores do time de futebol do Glória Bistrita,
em Bistrita, na Romênia – cidade em que transcorre o romance Drácula, de Bram Stoker –, que pretendia fotografá-los para PLACAR com dentes postiços
de vampiro. Origem do mito do vampiro por causa do romance, o príncipe Vlad Dracul na história real é um herói nacional na Romênia pela feroz resistência oferecida contra os turcos otomanos no século XV.
Enquanto Ricardo, temporariamente conformado ante a resistência dos jogadores, registrava uma partida do time, o então diretor de PLACAR, Marcelo Duarte, que faria o texto, gastou os 90 minutos argumentando em favor da foto. O resultado, sensacional, mostraria os 11 jogadores envergando a camisa do time, na formação tradicional, e portando, cada um, uma dentadura de vampiro. Ela figura na matéria O Time
de Drácula Está com o Pé na Cova, publicada em
PLACAR em julho de 1997.
Trabalho duro inclui planejamento, quando isso é possível. Alexandre Battibugli recebeu certa feita a incumbência de fotografar o craque Robinho, revelação do Santos, cobiçado por vários clubes europeus de futebol. PLACAR alugou um estúdio em Santos para as fotos e Battibugli, tendo saído da redação com a ideia do jogador como mercadoria preciosa, levou consigo um carrinho de supermercado. Lá
pelas tantas, convenceu o craque a entrar dentro, e a foto resultante continha, sem margem para dúvidas, o espírito da reportagem. Do mesmo teor seria uma foto de Jô, revelação do Corinthians, com 16 anos
de idade e já no time titular. Após debater na redação o ângulo principal da história, Battibugli rumou para o estúdio munido de um estilingue e uma minibola de futebol comprada numa papelaria. Pronto, resolvida a capa da revista com o craque-moleque.
Bob Wolfenson planejou na medida do possível o ensaio com a atriz Maitê Proença que estaria na capa da edição de 21º aniversário de PLAYBOY, em 1996.
A pedido da redação, conseguiu dissuadir a atriz de trocar a complicadíssima Índia pela Itália como
cenário. A equipe seguiu para Taormina, a magnífica cidade repleta de ruínas greco-romanas na Sicília, mas uma multidão de turistas obrigou Bob a mudar
o planejado. Resolveram percorrer vilarejos típicos do interior. Num deles, apareceu o cenário ideal. “Passei na rua e vi uns velhinhos jogando baralho. Perguntamos ao chefão da cidade sobre a possibilidade
de fotografarmos. Para não assustar ninguém, não
revelamos que o ensaio se destinava a PLAYBOY, e sim a um livro de arte, com uma famosa atriz brasileira. Maitê aproximou-se com um roupão, os velhinhos não sabiam o que ia acontecer, aí ela sentou-se à mesa e o chefão disse que havia dado seu ok.” O que se seguiu deixou o pessoal da aldeia boquiaberto: “Pedi a ela que tirasse a roupa e os velhinhos jogando baralho não acreditavam, não conseguiam largar o carteado, e todo o trabalho foi sendo assim.” A certa altura, a equipe contratou o que Bob chama de “um grupo de carpideiras velhas, dessas de filme mesmo, de
preto”, e em meio delas, que tricotavam, Maitê sentou-se, nua, enquanto puxava assunto em italiano. A foto da atriz junto às velhinhas, todas às gargalhadas, e o conjunto do ensaio dão grande orgulho ao fotógrafo: “Esse trabalho foi um marco em PLAYBOY, na minha vida e na vida dela, todo mundo fala até hoje”.
Planejamento não exclui improvisação, esse vício nacional brasileiro que, nas artes fotográficas, pode transmutar-se em virtude. Aconteceu com Cláudia
Andujar, integrante eminente do grande time de fotógrafos de REALIDADE – convidada para trabalhar na Abril, como tantos colegas, por Roberto Civita. Cláudia imprimira marca própria à revista desde os primórdios. Seus trabalhos incluem temas como um matador profissional em Alagoas e o médium curandeiro Zé Arigó, de Minas Gerais. Sua tocante sequência sobre o parto de uma criança para a reportagem Nasceu! levou à apreensão, por ordem de dois juízes de menores nos primeiros anos do regime militar, de boa parte de uma edição da revista, a de janeiro de 1967. Quatro anos mais tarde, ao decidir investigar a misteriosa morte de um padre nos confins do norte do Amazonas,
ela descobriria para o mundo os virtualmente intocados índios ianomâmis, numa história de grande impacto,
A Última Chance dos Últimos Guerreiros. “Os ianomâmis representaram não somente uma virada na minha carreira mas também uma virada para mim, como pessoa”, depõe Cláudia. “Ainda continuo ligada
a eles.” O primor de improvisação de que aqui se trata, porém, ocorreu no ano anterior, para SETENTA, sofisticada revista de moda de curta duração. Cláudia sugeriu elaborar um ensaio de moda “no meio do mato”, numa aldeia dos índios caiapós xicrins, no sudeste
do Pará, onde estivera anteriormente. Ela, a diretora de arte Lu Rodrigues, a produtora Regina Boni e a
modelo Antonietta Starace seguiram para a região num pequeno avião fretado. “Chegamos à aldeia e, como
os índios já me conheciam, fomos bem recebidos”, lembra ela. Um detalhe importante: a equipe não levou consigo nenhuma roupa pronta, e sim muitos metros de diferentes tecidos. A diretora de arte e a produtora, com esse material, inventaram uma série de trajes para a modelo, fotografada sempre dentro do ambiente
e das atividades cotidianas dos índios.
A mesma Floresta Amazônica serviu de cenário para uma das reportagens marcantes de Jean Solari, em dupla com o repórter Octavio Ribeiro, o “Pena Branca”: a caçada de uma onça. Na época, existiam poucas
restrições e nenhuma consequência para o que hoje
seria um grave crime ambiental, e fazendeiros contratavam caçadores profissionais para eliminar felinos
que rondavam suas propriedades e, simultaneamente, vender as valiosas peles. “Passei 28 dias na selva, em condições dificílimas”, relata Solari. A realidade da mata logo deixaria clara a inadequação de parte do equipamento que portava, tais quais pesadas teleobjetivas. “A selva é fechada, havia pouquíssima luz”, diz Solari. Ele e Pena Branca constataram o regime de virtual escravidão em que sobreviviam os caçadores. Obrigados a pagar o transporte em pequenos teco-tecos com base no peso, só levavam, além da roupa do corpo, uma espingarda e munição. De todo o resto se abasteciam nas fazendas, a preços exorbitantes, que depois não conseguiam terminar de quitar com as peles obtidas. O valor das peles, por sua vez, variava de acordo com a maneira pela qual se abatia a onça: com tiro na cabeça obtinha o melhor valor, com tiro no meio do corpo baixava a cotação, dois tiros mais ainda.
O episódio da onça integrou a edição especial de REALIDADE sobre a Amazônia (outubro de 1971), coordenada pelo jornalista Raimundo Rodrigues
Pereira e resultante de um formidável esforço de reportagem “que mobilizou 16 jornalistas em deslocamentos mata adentro e visitas a mais de uma centena de cidades, num percurso maior que o de uma viagem à Lua”, conforme o texto explicativo oficial da comissão julgadora do Prêmio Esso principal, que a revista mereceria em 1972. A equipe trouxe uma montanha de 30 mil fotos, editadas durante vários dias – cada
fotógrafo selecionava o melhor do próprio trabalho – na casa do fotógrafo George Love, autor das fotos aéreas, sob a coordenação de Raimundo e com a participação do pessoal da arte. Tendo visto uma décima parte das centenas de slides resultantes do enxugamento, recorda Solari, Victor Civita, com a concordância de Roberto Civita, decretou: “Não preciso ver mais nada, vocês acertaram em cheio: o material está muito bom”.
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Eles sabem até se
o presidente mudou de perfume
Dez anos à espera de
um segundo — e eis a foto
A Amazônia, ainda ela, seria cenário para reluzir o talento de Luigi Mamprin, que cobriu de tudo um pouco em várias revistas da Abril e é autor de reportagens emblemáticas sobre a vida nas tribos do Alto Xingu e de outras regiões para REALIDADE, bem como, em 1983, sobre os primeiros contatos com os “índios-gigantes”, os kren-akarore, posteriormente conhecidos como panarás. “O Mamprin e eu andamos a pé pelo mato durante praticamente um ano, junto à expedição dos irmãos Orlando e Cláudio Villas-Boas”, conta
Pedrão Martinelli, ele, sim, responsável pela proeza de registrar, na primeira página de O Globo, a primeira imagem dos misteriosos índios, na região de Peixoto de Azevedo, norte de Mato Grosso. Sobre o tema,
por sinal, Pedrão realizaria um notável, pungente trabalho, voltando à tribo 20 anos depois e mostrando para o mesmo jornal o estrago que a civilização
produzira entre os panarás. Os dez anos durante
os quais, já sem vínculos fixos com a Abril, passou largos períodos na Amazônia, morando em barcos e retratando a vida das populações ribeirinhas, Pedrão transformou em preciosos livros e em várias reportagens, a maior parte publicada por VEJA. Em cenários diferentes,
fotografaria outros temas para revistas como PLAYBOY,
CAPRICHO e ARQUITETURA & CONSTRUÇÃO.
A atração pela Amazônia não excluiu um fotógrafo posteriormente caracterizado pela excelência de seu trabalho sobre, justamente, o panorama urbano brasileiro, também autor, como Pedrão, de livros de refinada arte: Cristiano Mascaro. No início da carreira, em VEJA,
cobriu, entre outros tópicos, a corrida em Rondônia pela cassiterita, o minério do estanho. E pôde constatar, em campo, a incrível aventura daqueles pioneiros, que não tinham como se locomover numa região sem estradas e eram capazes de trazer de longe, em velhos aviõezinhos reciclados, alguns recuperados de acidentes, cargas inacreditáveis como jumentos minuciosamente amarrados ou jipes serrados e desmontados de forma a caberem nos minúsculos, claustrofóbicos teco-tecos. A preocupação marcadamente artística de Mascaro nunca o impediu de cumprir toda espécie de pautas, e são dele trabalhos como o peculiaríssimo retrato de um Caetano Veloso, cabeludo e esquelético, vestindo uma sunga, publicado na revista BRAVO!, ou a reportagem sobre a feitura, trabalhosa, artesanal e única, do chapéu-panamá, no Equador,
em OS CAMINHOS DA TERRA.
Mascaro representa para a arte da foto urbana o que Orlando Brito significa como fotógrafo do poder. Sempre antenado para tudo o que acontece em Brasília – “A gente sabe até quando o presidente da República muda de perfume”, atesta –, Brito parecia fadado
desde o princípio ao que viria a ser: sua primeira foto publicada foi a de um presidente. Como tantos colegas, ele no começo penou carregando bolsa para um fotógrafo em Brasília, no caso o primo Roberto Stuckert, virou office-boy da sucursal da Ultima Hora, passou a laboratorista e, um belo dia, aconteceu: o primeiro presidente do regime militar, marechal Castello Branco, visitava obras num local próximo, não havia fotógrafo à mão e Brito voluntariou-se para a tarefa.
Abria-se ali um caminho que passaria por um
demorado período em O Globo e cuja consolidação aconteceria ao longo de 16 anos em VEJA, com uma interrupção de dois anos, período em que ajudou a
implantar CARAS. Seu jeito de ver o poder em ação partiu de uma constatação: “Eu olhava para aquilo tudo que acontecia na capital e achava que não
era possível, em meio a tantas notícias importantes,
gerarmos fotos tão pobres”. Hoje, com modéstia,
considera ter dado “uma contribuição razoável para a nova estética de fotografia dos políticos”. Na verdade, não poucos indicam Brito como o forjador dessa estética. Teve como permanente inspirador, mentor também de Pedrão Martinelli, o ex-chefe em O Globo Erno Schneider, autor da antológica foto do ex-presidente Jânio Quadros com o corpo retorcido, com cada um dos pés e dos braços parecendo ir em uma direção diferente. Entre milhares de fotos de Brito publicadas, figura neste livro uma de suas preferidas, a famosa capa de VEJA com a silhueta do deputado Ulysses Guimarães minuciosamente recortada em luz. Dez anos antes, Brito fizera o mesmo tipo de foto com o senador Magalhães Pinto, e a partir de então sempre almejou repeti-la com o dr. Ulysses, “que não tinha imagem, tinha efígie”, segundo ele. Aconteceu em questão de instantes, sem pauta e sem assunto: o fotógrafo coincidiu com o dr. Ulysses aguardando um elevador na Câmara dos
Deputados, divisou uma posição de contraluz e capturou a foto. “Costumo dizer que fiquei dez anos à
espera de um segundo”, resume Brito. Por coincidência, o “Senhor Diretas” morreu uma semana depois num acidente de helicóptero, e VEJA tinha a foto perfeita para a capa Por Quem os Sinos Dobram.
Brito é, essencialmente, um fotojornalista. Assim sendo, entende como indispensável ao fotógrafo não interferir no que chama de o andar dos fatos. “O leitor merece ver o que você está mostrando como a representação mais aproximada daquilo que aconteceu”, afirma. No entanto, acredita firmemente que é possível ao fotógrafo, por meio de outro tipo de foto, uma foto programada, narrar visualmente e de forma eloquente fatos ou acontecimentos. Não se trata de pedir a um personagem que, por exemplo, repita algo que acaba de realizar porque o fotógrafo não conseguiu registrar a cena, algo que ele abomina e condena. Quando não há fatos que possam ser fotografados, “o fotógrafo tem que dar para o leitor uma versão sintetizada do que se diz, de um comentário, de uma impressão, de uma constatação”, assinala. Como exemplo de foto combinada com o personagem, mas que transmite a eloquência de toda uma situação, ele cita mais uma de suas prediletas: a do presidente José Sarney sem paletó, de camisa social, gravata e suspensórios, sentado placidamente lendo um livro sob uma esplêndida árvore nos jardins do Palácio da Alvorada. O retrato ilustrou uma entrevista nas “páginas amarelas” de VEJA em novembro de 1986, em plena vigência do Plano Cruzado e após uma estrondosa vitória nas urnas dos candidatos de alguma maneira ligados a Sarney ou por ele apoiados. “Nós tínhamos uma entrevista, realizada pelo
então diretor de VEJA, José Roberto Guzzo, e seu
adjunto, Elio Gaspari, centrada na ideia de que estava em vigor um plano econômico que conferia tranquilidade financeira à população, e a incumbência que recebi era a de retratar o responsável pelo plano”, explica Brito. “É uma foto que o fotógrafo jamais colherá do dia a dia, do cotidiano. Só que ele precisa cobrir com imagem aquilo que se diz, se comenta e repercute, aquilo que está ocorrendo. Portanto é evidente que cabe,
eu não diria uma montagem, mas uma combinação
visual para tanto. É cabível e perfeitamente aceitável e não há nenhum pecado fazer isso. Ao contrário,
esse tipo de foto é tão verdadeiro quanto o outro.”
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Uma foto montada
pode ser fotojornalismo?
Otto Stupakoff, um
caso de trajetória espetacular
A rica influência
dos fotógrafos estrangeiros
Com Brito concorda totalmente um colega merecedor de amplo respeito e admiração, Walter Firmo. “Existe o conceito de que foto não mente, e de que fotojornalismo não pode fazer literatura visual fotográfica”, assinala ele. “Fotografia seria apenas o factual. Pois bem, isso é uma grande mentira, não existe.” Firmo não teme sequer o verbo “montar”: “Sempre assumi que monto as fotos, sem nenhum pejo, desde o início. Isso é fotojornalismo também”. E explica: “Existe uma forma de o fotógrafo informar às pessoas – já que as verdades são inúmeras, não existe uma verdade única – através de uma alusão alegórica de um acontecimento. É mais ou menos o que fazem os jornalistas que escrevem crônicas. Eles falam da verdade de outra maneira. E, como fotógrafo, o profissional pode trabalhar até em jornal dessa maneira”.
O exemplo é a reportagem Amazônia Inverno e
Verão, publicada em janeiro de 1973 de REALIDADE: na época sem chuvas na Amazônia, o “verão”, uma família de oito pessoas, em roupas domingueiras, posa diante da palafita em que vive à beira do Rio Amazonas, nos confins do Pará, com o pai em primeiro plano ostentando uma imagem do Coração de Jesus. Na página ao lado, em idêntico tamanho, o mesmo grupo retratado no “inverno”, a temporada de chuvas, cada um na mesma posição diante da mesma casa quase inundada pela cheia do rio, parte da família dentro d’água, o pai com água pelo peito.
Firmo, carioca filho de pais paraenses, costumava visitar periodicamente os parentes paternos no interior. Ele conta: “Estava com meu tio, numa palafita pobre, na beira do Amazonas. Chovia sem parar. A água do rio tinha invadido as margens e por vezes vazava pelo assoalho da casa. Naquela casa modestíssima, com um quadro de madeira com a imagem de Jesus na parede, tentando nos proteger com mosquiteiro, comendo às escuras, perguntei a meu tio: ‘Mas por que essa vida?’ Ele respondeu: ‘Deus tarda, mas vem’. Pensei, isto é uma fotografia. Trabalho bastante essa questão alegórica de uma frase se transformar em imagem,
tenho esse dom. E aí pedi a ele se podia fotografar. Deus
tarda, mas vem, e ele empunhando de uma maneira mística o quadro de Jesus Cristo”. A idéia de repetir
a foto na seca meses depois para publicar o contraste de situações em REALIDADE ele atribui a um colega, a quem mostrou o material na volta a São Paulo.
Brasileiríssimo, Firmo no entanto diz dever “tudo” como profissional a um americano, o fotógrafo David Drew Zingg. “Eu adorava o David. Ao ver aqueles ensaios dele na Manchete eu enxergava o Brasil luxuriante cantado por Ary Barroso, com muita cor, muito calor humano e uma sofisticadíssima maneira de olhar. Eu queria fazer isso e, quando vim do Rio para a
REALIDADE, encontrei os princípios básicos para, principalmente na questão cromática, tentar ser um David.” Não é de estranhar a influência de Zingg
sobre Firmo – ele estenderia seu carisma, sua arte e seu calor humano a dezenas de fotógrafos. Personagem
riquíssimo, Zingg fora redator e editor da prestigiosa
revista americana Look. Boêmio, divertido, servira na Força Aérea americana durante a II Guerra Mundial, era amigo da família Kennedy e namorou na juventude a filha do grande dramaturgo Eugene O’Neill, Oona, que um dia lhe apresentou um senhor grisalho com quem iria se casar: tratava-se de Charles Chaplin.
Escritor de prosa deliciosa, conhecia fotografia, e lá pelas tantas decidiu trocar de ofício. Tornou-se freelancer e, como consultor editorial da extinta revista Show, passou pelo Brasil em 1962 para uma reportagem sobre artes e espetáculos na América do Sul. No idílico Rio daquela época, conheceu Tom Jobim, João Gilberto e
Vinicius de Moraes, apaixonou-se pelo país e, em 1964,
mudou-se de vez para cá, fixando-se inicialmente no Rio e, a partir de 1978, em São Paulo, onde morreria em 2000, aos 77 anos. Uma de suas proezas, consequência de ter feito amizade com Tom, João e Vinicius, seria a de idealizar o famoso show do Carnegie Hall, a 12 de novembro daquele 1962, que lançou a bossa nova para o mundo.
Por convite de Roberto Civita, David Zingg trocou Manchete por REALIDADE em 1965 e, ao longo das décadas seguintes, esteve presente em uma dezena de revistas da Abril, de QUATRO RODAS a PLAYBOY. Ele integra o grupo de fotógrafos estrangeiros, americanos e europeus que exerceria forte influência na qualidade visual das revistas da editora. Diferentemente do que muitos pensam, a presença dos estrangeiros na Abril não obedeceu a nenhum plano. Vários deles, além de David Zingg, já viviam no Brasil, como o italiano Luigi Mamprin, que, cansado da guerra – obrigado
a alistar-se no Exército fascista de Mussolini, desertou e passou a lutar contra os nazistas como guerrilheiro entre os partisans iugoslavos do futuro marechal
Josip Broz Tito –, aqui aportou em 1949. O francês Jean Solari emigrara em 1950, a húngara nascida
na Suíça Cláudia Andujar tinha chegado em 1955 e a inglesa Maureen Bisilliat em 1957. George Love igualmente vivia no Brasil, casado com Cláudia Andujar, quando recebeu de Roberto Civita o convite para integrar a equipe de REALIDADE.
Por uma espécie de convergência natural, espontânea, fotógrafos estrangeiros em São Paulo tinham como ponto de encontro o estúdio na Rua Frei Caneca do jovem talento Otto Stupakoff, fotógrafo brasileiro que estudou em Los Angeles e o grande nome da publicidade nacional no começo dos anos 60. “O Otto era uma referência”, diz Thomaz Souto Corrêa, vice-presidente do Conselho Editorial da Abril e, das diversas posições de mando que ocupou desde 1963, associado à criação da maioria das revistas da empresa. ”Ele era jovem e extremamente talentoso. Tinha um olhar, uma exigência e uma criatividade naquele momento sem igual em São Paulo, e termos conseguido trazê-lo para nossas revistas foi muito importante”. Stupakoff deixaria
o país para, a duras penas, principiar em Nova York o que viria a ser uma espetacular trajetória internacional que duraria meio século, passaria por Paris e associaria seu nome às bíblias mundiais da moda – das americanas Vogue e Harper’s Bazaar às francesas Marie Claire e Elle. Ele faleceu em 2008, em São Paulo.
Entre os estrangeiros que acorreram ao Brasil, passando ou não pelo estúdio de Stupakoff, figura o inglês Roger Bester. Trabalhando como fotógrafo de navio, visitou o Rio como turista, gostou e no ano seguinte, 1964, vendeu o que tinha e decidiu tentar a sorte no Brasil. Chegou à Abril após enviar uma carta à empresa e ser entrevistado por Roberto Civita e Luis Carta. Deu os primeiros passos, enquanto aguardava a regularização de seus papéis, como freelancer no Estúdio Abril, sob as ordens do americano Lew Parrella, com rica folha de serviços em seu país natal, que incluía a direção de revistas e a publicação de livros sobre
fotografia. Tendo iniciado na Abril como contratado de QUATRO RODAS, Parrella percorreria fértil trajetória na editora. Acabou em REALIDADE, então em fase de gestação na redação de QUATRO RODAS. Sem falar português, enfrentou logo de cara uma matéria sobre o garimpo de diamantes em Mato Grosso. Não se limitou a REALIDADE, porém. Esteve presente em especiais de CLAUDIA inteiramente feitos no exterior, fotografou moda para MANEQUIM… Logo abriria um estúdio particular, o que não o impediu de prosseguir produzindo para a Abril.
A experiência de Bester de enfiar-se em lugares como Mato Grosso era algo extremamente familiar
a Maureen Bisilliat. Seu primeiro ensaio na Abril – o roteiro visual do universo do escritor Guimarães Rosa, obra originalmente destinada a um documentário no âmbito da Universidade de São Paulo (USP) – levou-a a embrenhar-se no sertão de Minas Gerais, com o
privilégio único de receber orientação precisa do próprio Rosa, diplomata de carreira, encarregado da Divisão de Fronteiras do Itamaraty. O Grande Sertão de Guimarães Rosa sairia em 1969, em QUATRO RODAS, por iniciativa do repórter Audálio Dantas. Maureen deixaria uma profunda marca de qualidade na Abril. Suas reportagens vão desde a narrativa
da vida das catadoras de caranguejo em Livramento, no interior da Paraíba, para REALIDADE, em 1970, até, quando estava desvinculada da empresa, em 1982, uma pioneira, dificílima reportagem na então fechada China comunista, para QUATRO RODAS.
A lista de estrangeiros não se limita aos mencionados. Tiveram papel a destacar e espalharam seu know-how, especialmente nos anos 60 e 70, profissionais como o paparazzo italiano Ezio Vitale ou o renomado fotógrafo de moda americano Bill King – este, sim, convidado a colaborar com SETENTA. Igualmente se destacou o também americano George Love, fotógrafo de sólidos fundamentos – estudou matemática, filosofia e economia –, de forte atuação em REALIDADE mas presente numa gama de publicações que vai de PLAYBOY
a VEJA SÃO PAULO. Autor de livros em que técnica e refinamento se aliam, exerceu intensa atividade cultural, inclusive como editor de revistas especializadas
e diretor da área de fotografia do Museu de Arte de São Paulo (Masp). “O brasileiro era acostumado a ver
as coisas e não enxergava o que a gente conseguia enxergar” é a singela, e provavelmente exata, explicação de Jean Solari para a importância dessa turma. Os estrangeiros, pois, colaboraram em grau considerável para a qualidade da fotografia e dos fotógrafos na Abril, mas o local em que o aperfeiçoamento e a formação de fotógrafos mais se deu tem nome e passou por diferentes endereços: o Estúdio Abril.
Ah, o Estúdio Abril – legendário centro formador de gerações de fotógrafos, que um dia viria a ser
o maior do Hemisfério Sul. Começou quase como um milagre. Numa sala de escritório que não chegava
a 6 metros quadrados de área, no oitavo andar do edifício onde se apertava a Editora Abril dos primeiros tempos – na Rua João Adolfo, centro de São Paulo –, o chefe de fotografia, Oswaldo Palermo, improvisou em 1962 um estúdio. “Com fundo infinito e tudo”, lembra Thomaz Souto Corrêa. “É inacreditável o que se fazia lá, porque a improvisação e a falta de recursos acabam gerando criatividade.” O miniestúdio perpetrava proezas como fotografar, num cantinho da sala, peças de automóvel espalhadas sobre uma mesa e com um fundo infinito de cartolina. Eram trabalhos para QUATRO RODAS, lançada dois anos antes, em agosto de 1960, e a primeira revista da Abril a contar com um grande número de fotos próprias, e não compradas de terceiros, como ocorria com as fotonovelas, trazidas em filme da Itália. Daí, o miniestúdio passou a produzir fotos de moda e still life (objetos e decoração) para atender à revista CLAUDIA, que iria para
as bancas em outubro de 1963.
Quando a sede da Abril transferiu-se para instalações próprias na Marginal do Tietê, em 1968, montou-se um bem equipado laboratório e um
pequeno estúdio destinados a atender à grande aposta da empresa, a VEJA, de setembro daquele ano. Simultaneamente, passou a ser erguido um estúdio de grandes proporções do lado oposto do Rio
Tietê, na Rua do Curtume, na Lapa. No ano
seguinte, uma vez que o novo estúdio ainda não
reunia condições necessárias, a empresa alugou o estúdio do fotógrafo Francisco Albuquerque, “Chico”, na Avenida Rebouças, em Pinheiros, cujo espaço e infraestrutura seriam intensamente utilizados mesmo com o do Curtume já em atividade, até 1972.
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E o elefante posou
como fotógrafo à natiga
Chico Albuquerque,
mêstre “perto da perfeição”
A presença de Chico Albuquerque – um fotógrafo que tecnicamente chegava “perto da perfeição”, segundo vários depoimentos de colegas – acabaria sendo fundamental para a qualidade das revistas da Abril.
Um dos mais renomados fotógrafos de publicidade de São Paulo, se não o mais, “era conhecido por duas
características técnicas”, relata Thomaz Souto Corrêa. “Uma, a iluminação, que ele dominava magistralmente, e outra, o perfeccionismo, a tal ponto que brincavam que, quando ele fosse fotografar um prato com ervilhas, escolheria grão por grão para que ficassem
do mesmo tamanho.” Hoje reconhecido como grande artista, cuja obra está em livros e se vê enaltecida por especialistas, sua colaboração na Abril deu-se principalmente no plano técnico. “Seu aspecto de artista acabou sendo pouco utilizado nas revistas”, lamenta Thomaz. “Em compensação, ele foi um professor de técnica extraordinário para nossos fotógrafos.” Sérgio Jorge, que trabalhou com Chico na Rebouças e
depois seria indicado por ele para dirigir o estúdio do Curtume, conta que, minucioso, detalhista e paciente, Albuquerque ensinava como operar cada equipamento, como adequar a objetiva ao trabalho encomendado ao fotógrafo, o cuidado com a fotometragem e até como enrolar um filme. “O Chico me ensinou muitas coisas, e sempre me baseei na sua linha de qualidade”, atesta German Lorca, para acrescentar, modesto: “Não
cheguei à qualidade dele, mas procurei me aproximar ao máximo”. Lorca não é qualquer um: fotógrafo competente e experiente, foram dele as imagens da primeira publicação na história da Abril com fotos não compradas, o tabloide REVISTA DO IV CENTENÁRIO,
lançada por Victor Civita em setembro de 1954, em
comemoração aos 400 anos da cidade de São Paulo.
É de Lorca a foto do prédio em construção da Oca – um dos centros de exposições do Parque do Ibirapuera – em que aparece uma senhora dando a mão a um menino. Vivia-se a época pré-modelos profissionais – profissão que, no Brasil, foi praticamente criada, nos moldes atuais, pelo publicitário Lívio Rangan, a serviço da área têxtil da multinacional Rhodia, e pela Editora Abril. A senhora da foto, pois, era sua avó paterna, Belia Lorca Moreno, espanhola de quase 90 anos,
e o garoto seu filho Frederico German Ferreira Lorca, “hoje com 59 anos e perto de 2 metros de altura.”
Sergio Sade, quando estudante em Curitiba, em 1963, fez uma visita à Abril e passou um dia vendo como
funcionava o estúdio de Chico. “Foi uma experiência fundamental para decidir minha carreira”, conta.
No estúdio de Albuquerque Luiz Tripolli realizaria trabalho que considera “um divisor de águas” em sua carreira: um ensaio de moda para o primeiro número de Claudia Moda, lançada em abril de 1971. “Foi muito engraçado”, recorda-se Tripolli. “Como eu usava a luz de um jeito completamente diferente, trabalhava com música no último volume, tomava vinho, gritava com as mulheres, usava vento, ele achou que não ia sair nada. O pessoal do estúdio abria a cortina que separava nosso cenário, olhava e não entendia nada, como eu usava o flash daquele jeito, como é que conseguia me comunicar com as modelos daquela maneira e extrair delas expressões e atitudes. Acredito que partir desse ensaio é que veio todo o meu sucesso, porque isso virou uma marca registrada minha”. O ensaio
terminaria sendo inesquecível inclusive no plano
pessoal: uma das modelos com quem Tripolli trabalhou, Ully, se tornaria posteriormente sua mulher e lhe daria uma filha, que em 2010 tinha 36 anos.*
* Nota dos editores: por não concordar com os critérios de seleção de imagens deste livro, Tripolli não autorizou a publicação de nenhuma de suas fotos.
Albuquerque deixaria a Abril nos primeiros meses de 1972, algum tempo depois de o estúdio do Curtume estar finalmente pronto. Para esse projeto, Sérgio
Jorge, por encomenda de Richard Civita, o diretor-geral da Gráfica e responsável pelas construções
do Grupo Abril, visitara previamente alguns dos
similares mais importantes do gênero no mundo,
em várias empresas dos Estados Unidos, os da Editora Mondadori, na Itália, e os da revista de moda Burda, na Alemanha. O Curtume ficou uma beleza: 900 metros quadrados de área, divididos em quatro estúdios: um batizado de estúdio A, destinado a vários tipos de trabalho, o de cozinha, o de moda e o de still life.
Já começou com 16 fotógrafos chamados “de estúdio” e outros cinco distribuídos pelas redações, num total de 43 funcionários – incluindo produtoras, carpinteiros, pintores, motoristas, pessoal de laboratório e auxiliares que cuidavam dos equipamentos. Um de seus objetivos, afirma Sérgio Jorge, era formar novos profissionais “de alto nível, que foi o que ocorreu”.
O Curtume seria palco de incontáveis aventuras profissionais, uma delas protagonizada pelo próprio Sérgio: fotografar nada menos que um elefante para uma campanha institucional para os 25 anos da Abril, idealizada pelo publicitário Neil Ferreira, da DPZ. O briefing de Neil para Olga Krell, diretora de produção visual do estúdio, não era para qualquer um: “Preciso que o elefante seja jovem, saudável, gordo, de unhas bem feitas, manso e bastante simpático”. Pois conseguiram um, num circo. Ao parar
à porta do estúdio o enorme caminhão que conduzia o bicho, começava um dia histórico. O elefante não passava pela porta, e teve que entrar pelas dependências da vizinha Distribuidora, com seu enorme pé-direito. No mais, ele revelou-se tal como solicitara Neil, com uma característica adicional: ele não entendia português, razão pela qual o treinador só se comunicava com ele em inglês e francês. Revelou-se tão dócil que chegou a posar como um fotógrafo
à antiga, com um grande pano preto cobrindo a
cabeça, uma câmera de lambe-lambe à frente e uma das patas apoiada num banquinho. O pessoal do
estúdio só entendeu a presença de um funcionário
do circo com um carrinho de mão quando o elefante, sem maiores constrangimentos, depositou no chão do estúdio um considerável volume da fase final
de sua digestão.
Emoções de todo tipo seriam vividas no estúdio que sucedeu o Curtume, o gigantesco conjunto de dois galpões de mil metros quadrados cada um,
na Rua José Leite e Oiticica, no bairro do Brooklin Paulista, inaugurado ainda incompleto em 1982. Além de quatro estúdios semelhantes, mas maiores, do que os do Curtume, construiu-se um enorme, denominado “Jumbo”, com 300 metros quadrados – que, em caso de necessidade, podia subdividir-se em vários outros. O complexo também compreendia vastas áreas livres passíveis de utilização em grandes produções. Até pequenos aviões seriam fotografados em suas dependências.
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O Estúdio Abril,
“faculdade de fotografia”
“Eu adorava o Estúdio Abril, era uma coisa absolutamente fantástica”, entusiasma-se a fotógrafa
Bia Parreiras. “Passaram por ele todos os grandes
fotógrafos do país, e muitos de fora.” Ela descreve algumas memórias do trabalho no estúdio: “Ali entravam
carro, caminhão, havia cenógrafos para montar cenários, fotografava-se comida e cenários de decoração. Cada fotógrafo podia equalizar sua própria luz,
trabalhar de sua própria maneira. Você tinha todos os aparatos e equipamentos possíveis. Andava por suas instalações e PLAYBOY fazia um ensaio de um lado, de outro clicavam uma matéria de decoração, comida de um terceiro, havia cachorros passando, modelos se vestindo… A gente se sentia entrando num espaço de cinema, como os estúdios da Cinecittà,
em Roma. Formou-se um acúmulo incrível de experiência num único lugar”. Esse ambiente facilitava,
em vários sentidos, o trabalho dos fotógrafos da Abril. “Certa vez levei ao estúdio para um retrato
o presidente do Conselho de Administração do Bradesco, Lázaro Brandão, e ele, um homem ocupadíssimo, esqueceu da vida ao ver aquele mundo todo, ficou todo o tempo necessário.”
O estúdio representaria, como mencionado,
um grande centro de aprendizado. “Minha escola, minha faculdade, pós-graduação e mestrado”, atesta Maurício Nahas, forjado desde os verdes anos na
Oiticica. “Eu teria passado os mesmos nove anos
estudando medicina, que abandonei, somando-se
a faculdade e o período de residência.” Segundo Sérgio Berezovsky, “o Estúdio Abril durante um bom
período foi o meu sonho profissional, uma referência.
Não tinha nem teve no Brasil nada que se comparasse, e sempre o imaginei como algo parecido com a escola da Time Life, no apuro técnico, no rigor, nas condições, nas instalações”. Para Berezovsky, o estúdio constituiu peça-chave no que ele chama de Escola Abril de Fotografia. “A Abril tem uma importância enorme na formação dos fotógrafos brasileiros, pois em nenhuma outra empresa houve por tanto tempo um trabalho tão interessante e tão diversificado nas revistas, no
estúdio, no laboratório, somado à preocupação em ter equipamento atualizado e de primeira linha.” Desde a época de assistente, e antes que ingressasse na Abril via Curso Abril de Jornalismo em Revistas, Germano
Lüders confessa: “Eu volta e meia frequentava o
estúdio, e sempre quis fazer parte daquilo – admirava a Abril pela técnica, pela qualidade das fotos em suas revistas, e considerava que o excelente padrão fotográfico da Abril em boa parte se devia ao estúdio”. Para Nana Moraes, tratou-se de “uma faculdade de fotografia, que formou e lançou fotógrafos importantíssimos”. Luis Crispino, ex-assistente no estúdio, acrescenta: “Não existiu nada tão bom quanto o
Estúdio Abril, era um estúdio de locação maravilhoso, tudo o que você necessitava havia lá. Aprendi lá, trabalhei lá como fotógrafo e depois, como empresa, utilizava muito o estúdio”.
Com Crispino, o estúdio foi cenário para uma produção de grandes proporções montada para
um ensaio de PLAYBOY em 1988 com Isadora
Ribeiro, então famosa por protagonizar, na Rede Globo, uma mulher emergindo da água na abertura do programa Fantástico. “A capa deveria parecer
o Fantástico, com toda aquela pirotecnia, maquiagem e tudo o mais, só que com Isadora nua”,
conta Crispino. “A gente montou uma piscina
gigantesca no Jumbo, e tinha que ser elevada porque
ela precisava permanecer meio enfiada na água, até a altura das coxas. Como o espelho-d’água era raso, colocamos Isadora numa espécie de trincheira mais profunda, com tudo recoberto de plástico preto para espelhar o azul do fundo. Ficou perfeito, tão bom quanto o cenário do Fantástico. Em função das
características do estúdio, essas coisas superambiciosas eram possíveis, faziam parte da rotina.”
Tais realizações estavam a anos-luz do que imaginava um diretor de redação amigo de Pedro Martinelli que comentou, algo sarcasticamente, quando de sua escolha para o comando do estúdio, em 1983:
– O Pedrão agora vai fotografar panela.
Na verdade, Pedrão provocou um choque cultural positivo no estúdio, graças à larga experiência de fotojornalista somada à de profissionais que, segundo ele, tinham mais ênfase na ilustração de matérias. “Esse encontro do sistema de trabalhar de que eu gosto e em que fui formado – jogo rápido, direto, sem rodeios – com o ritmo e a experiência que ali existiam deu um bom resultado e fez com que o
Estúdio Abril virasse uma nova referência no mercado”, registra Pedrão. Em seu auge, fazia de 180 a 200 locações (ou 2 mil horas) por mês, consumindo 5 mil rolos de filme. Por sua estrutura, começou a ser crescentemente utilizado para trabalhos de publicidade de grandes fotógrafos, passou de dois para 12 fotógrafos contratados, sem contar os freelancers, e chegou a abrigar 35 assistentes. Pedro Rubens, que por sua formação técnica Pedrão encarregou de acompanhar as feiras internacionais de equipamentos, lembra-se de que chegava a haver fila de 40, 50 fotógrafos querendo um lugar de assistente no estúdio. E ajudava Pedrão a selecioná-los, seguindo os exigentes padrões do chefe, rigoroso acima de tudo consigo mesmo, a ponto de, ao longo de sua carreira, a cada equipamento novo que comprava, treinava como trocar as lentes e desmontá-lo num quarto escuro, para enfrentar eventuais emergências.
“O fotógrafo de estúdio tem não somente de entender
do ofício, mas também tem que saber marcenaria, tem que saber raspar, tem que saber pintar, tem que saber varrer, tem que saber fazer limpeza, o fotógrafo tem que saber tudo”, diz Pedrão. “Os fotógrafos que passaram pelo Estúdio Abril e estão hoje no mercado são capazes de enfrentar qualquer parada.”
Por razões de custo/benefício, a Abril desativou o estúdio em 2000. Boa parte daquelas instalações, hoje, constitui o estúdio que um de seus melhores e mais bem-sucedidos alunos, Maurício Nahas, compartilha com três sócios. A sala de Nahas fica exatamente no local onde, nos primeiros e heroicos tempos de seus nove anos de Abril, ele aprendeu a enrolar filmes.
O lugar em que funcionou a grande usina formadora de fotógrafos no Brasil não poderia, pois, estar em melhores mãos.
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