Sobre o Setti

Minha trajetória como jornalista me proporcionou uma vida muito mais interessante do que eu imaginava que viria a ter.

Conhecer lugares e pessoas incríveis, estar próximo de personalidades marcantes – para o bem ou para o mal -, em alguns casos ver a História se desenrolar diante dos olhos: esse tem sido o saldo de mais de meio século de profissão, iniciada aos 19 anos – um tanto por acaso, como vários jornalistas de minha geração.

Um acaso muito bem-vindo: olhando para trás – e também para frente -, não consigo me imaginar fazendo outra coisa.

O INÍCIO, POR ACASO

1965

POR ACASO

Como muitos jornalistas de minha geração, comecei na carreira por acaso.

Estudava Direito na Universidade de Brasília, estava a dois meses de começar o segundo ano e queria trabalhar. Como sempre gostei imensamente de ler e era considerado alguém que “escrevia bem”, meu Pai sugeriu um estágio em uma sucursal de jornal, das muitas já existentes em Brasília naquele início de 1965. Topei na hora, e um amigo jornalista de seu círculo de relações me conseguiu um lugar na Interpress, uma agência de notícia de grande atividade na época, mas que não existe mais.

Pronto: depois de meu primeiro dia ali, me senti totalmente em casa e, como se diz entre jornalistas, “peguei o vírus” da carreira. Tanto é que, na Universidade, resolvi cursar também disciplinas do curso de  Comunicação.

A tarefa que me atribuiu o diretor da Interpress, Dirceu Maciel Coutinho, foi reler todo o material que os repórteres traziam para checar a correção dos textos ou, se fosse o caso, sugerir alguma modificação aos dois editores, Antonio Gambirasio e Alencar Monteiro.

Outra tarefa era transformar em notas de linguagem sucinta e jornalística os press releases enviados diariamente por diferentes órgãos oficiais que tivessem informações de real interesse público.

Também cabia a mim mudar a feição dos textos de um bom número de repórteres não pertencentes à agência, mas vinculados a jornais e que forneciam à Interpress cópias – em papel carbono! – das matérias do dia. Eu fazia alterações suficientes para que o material da agência não ficasse idêntico ao que seria publicado nos diferentes jornais.

Conhecendo uma esperteza

A existência dessa esperteza pouco recomendável, que os interessados justificavam como necessidade de melhorar o rendimento mensal, seria uma das várias coisas que aprendi durante o estágio. Outra seria, naturalmente, como deveria ser em linhas gerais o texto para jornais: mesmo já tendo boa noção de como deveria ser, porque em minha casa entravam no mínimo três jornais diários, estava cercado de veteranos, e choviam as dicas a respeito.

Também aprendi simplesmente testemunhando o próprio funcionamento da agência: a eterna corrida contra o relógio, a forma como as matérias eram transmitidas – por telex, em fitas picotadas que lentamente iam enviando, letra por letra, as matérias –, quais eram as áreas cobertas pela agência, como matérias eram pautadas e, depois, executadas, as prioridades e as broncas do diretor.

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O estagiário trabalhando entre seus dois primeiros professores: Gambirasio e Alencar © Foto: Arquivo Pessoal

Começando a fazer uma network

Mas a grande utilidade do estágio acabaria sendo conhecer e me relacionar com vários jornalistas experientes e repletos de fontes, o que muitos anos depois receberia o nome de network e me valeria muito no futuro. Até no futuro imediato, porque Alencar Monteiro, um dos editores, ao lado de Antonio Gambirasio, acabou me indicando para um emprego de noticiarista de uma emissora de rádio.

Antes disso, Alencar me orientou com paciência e atenção suficientes para lhe ser grato pelo resto da vida. (Gambirasio, também um precioso orientador, por coincidência foi um dos professores quando cursei matéria de Jornalismo na Universidade de Brasília)

A única surpresa menos agradável do estágio foi quando, terminado o mês, acorri ao caixa para ver quanto me pagariam: zero. O estágio não era remunerado…

Captando noticia alheia para uma rádio 

Em compensação, os dez meses que passei a seguir como redator para a Rádio Planalto me forçaram a um rápido aperfeiçoamento: havia um noticiário de cinco ou seis notas a cada meia hora, e eu precisava me virar com o pouco que tinha.

Havia na rádio um terminal de noticiário internacional da agência UPI, na época a maior do mundo, da qual a rádio era assinante. Eu também atendia a telefonemas de alguns jornalistas que passavam informalmente notícias à rádio, por amizade com o dono. Fora isso, a principal tarefa na captação das notícias era captar notícia alheia – por meio de um grande aparelho de rádio, extremamente potente, no qual eu gravava vários informativos de emissoras do Rio e São Paulo. 

Conhecer os meandros de uma emissora de porte médio, ficar amigo de locutores que também trabalhavam no noticiário oficial A Voz do Brasil e presenciar a fauna que frequentava a rádio – lembro-me, entre muitos outros, da cantora Dóris Monteiro e do pai-de-santo Joãozinho da Goméia – fizeram parte do cardápio.

O bom era que, no final do mês, eu recebia um envelope – e dentro havia um salário, um salário real, em notas e moedas.

JORNAL DA TARDE E VISÃO

1969

UM PORRE DE JUVENTUDE, TALENTO, INTELIGÊNCIA E HUMOR

Foi isso que vivi na Redação do Jornal da Tarde quando cheguei, em maio de 1969, transferido a meu pedido da sucursal do Estadão em Brasília.

O jornal nascido para ser o vespertino do sisudo O Estado de S. Paulo era seu exato oposto. O Estadão durante décadas deu-se o espantoso luxo de só publicar notícias internacionais em sua primeira página – nem o suicídio de Getúlio, em 1954, apareceu ali –, tinha um texto formalíssimo e pomposo, e uma Redação cuja maioria era de jornalistas graves e solenes. A média de idade dos jornalistas deveria ser por volta de 48-50 anos.

Jogando futebol no corredor

Já o JT, como era chamado, publicava histórias atraentes sobre pessoas e acontecimentos, num texto coloquial e do gênero câmera-no-ombro – personagens tinham vida, eram minuciosamente descritos e autorizados a ficar bêbados, tropeçar ou falar gíria, viviam em um ambiente que o jornal também mostrava ao leitor – e na Redação, barulhenta e divertida, a média de idade não chegava a 25 anos, quem não era cabeludo usava barba e, à noite, jogava-se futebol no longo corredor que a separava do Estadão

Ah, fato extraordinário: havia jornalistas mulheres, quase todas jovens e bonitas. Outro fato extraordinário: vários jornalistas eram gays.

O alto coeficiente de inteligência e criatividade dessa turma permitiria, mais tarde, que se tornassem publicitários requisitados, romancistas e teatrólogos de sucesso, personalidades vencedoras na televisão, um alto executivo que chegou a ministro de Estado e até um psicanalista.

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Este é um recorte de uma foto de quase toda a redação fumando cigarro de palha para ilustrar matéria sobre algo em moda na época. Aí estão, da esquerda para a direita, Reinaldo Lobo (mais tarde psicanalista), o diagramador Paulinho “Chevette” (sentado), Fernando Morais, depois escritor de sucesso, eu, com cabeleira crespa e óculos de armação preta, Sérgio Rondino, Antonio Portela e José Eduardo Borgonovi, o “Castor” (Foto: @Jornal da Tarde) © Foto: Jornal da Tarde

O jornal ganhou incontáveis prêmios graças à sua concepção visual arrojada, produto do talento de seu fundador, Mino Carta, e principalmente do jornalista que o substituiria, Murilo Felisberto — grandes fotos “estouradas”, títulos provocativos, utilização do espaço branco, tipografia moderna e preocupação estética da primeira à última página – e à sua receita de conteúdo: tornar-se um diário que entremeava o noticiário com matérias de mais profundidade, como nas revistas. As magníficas reportagens que publicou durante sua fase de ouro completaram o quadro. 

Na primeira edição, um furo espetacular sobre Pelé

Os exemplos são muitos. Já começou arrasando com uma bomba inédita na manchete da primeira edição, a 4 de janeiro de 1966: “Pelé casa no Carnaval”. Publicou reportagens espetaculares e vencedoras sobre casos como o primeiro transplante de coração no Brasil, o incêndio do edifício Joelma, o levantamento detalhado das fronteiras do país e seus problemas, o acompanhamento dos restos mortais do imperador Pedro I vindos de Portugal, várias Copas do Mundo, um minucioso retrato científico mostrando como o físico excepcional de Pelé fora decisivo para torná-lo o maior jogador de futebol da história.  

Tratava-se de um jornal que alugava avião para chegar antes dos concorrentes, fosse onde fosse. Que fazia uma cobertura política ágil, repleta de notícias exclusivas, recheada de descrição de pessoas, comportamentos e detalhes de ambiente, tornando atraentes mesmo temas que em geral ásperos na impensa tradicional, e desnorteando os demais jornais.

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Chilenos fazem festa para o ex-presidente e candidato à reeleição ao Senado Eduardo Frei, no comício de encerramento da campanha dos democrata-cristãos para as eleições legislativas de março de 1973. Eu, repórter, no meio da massa, com a noite caindo, em 28 de fevereiro de 1973 (Foto: @Arquivo Pessoal) © Foto: Ricardo Setti

Por razões difíceis de detectar, mas que provavelmente têm a ver com insuficiente profissionalização em áreas como marketing e publicidade, o jornal era um sucesso para quem o conhecia, mas não chegava a todo o público a que era destinado. Pior: do ponto de vista comercial, não dava lucro, ao contrário.  

Para aumentar a circulação, o jornal aos poucos abandonou seus princípios originais de jornal-revista feito com esmero, tornando-se mais “popular” e ampliando sua cobertura para temas como o noticiário policial. A venda em bancas na capital chegou a ser superior a todos os demais, inclusive à da Folha de S. Paulo, mas a mudança radical da linha levou a grande novidade lançada em 1966 a uma crescente decadência e ao encerramento de suas atividades, em 2012.

A esta altura eu deixara há muito aquela Redação extraordinária, acompanhando, em outubro de 1974, um grupo de jornalistas que, insatisfeitos com a forma pela qual o JT era conduzido, decidiu se transferir para a prestigiosa revista quinzenal Visão. Originalmente parte de um grupo norte-americano, com uma edição também em espanhol, a revista circulava no Brasil desde 1952, e vinte anos depois, já com a sede transferida do Rio para São Paulo, seria adquirida por seu diretor comercial, o publicitário Said Farhat.

Em 1974, Farhat vendeu Visão para o empresário Henry Maksoud, engenheiro e dono da grande empresa de projetos Hidroservice. Maksoud era um crítico feroz do estatismo, a seu ver grande responsável pelo atraso do país, e incorporou a revista para que se tornasse um bastião do liberalismo na imprensa brasileira. 

A essa altura, Visão, que já fora semanal, há muito tempo trocara sua periodicidade para quinzenal. Era uma publicação mais de análise e reflexão do que de notícias, com boa penetração nos círculos de influência e excelente imagem na área cultural.   

O grupo vindo do Jornal da Tarde, capitaneado pelo grande repórter Ewaldo Dantas Ferreira como diretor de Redação, foi recebido com franca hostilidade por parte da equipe de então. Outros, pelo contrário, mostraram-se amáveis e cooperativos para com os colegas.

Uma campanha contra a aquisição da revista por Maksoud, que teve como principal arauto o jornalista Hélio Fernandes e sua Tribuna da Imprensa, do Rio, respingou fortemente nos profissionais recém-integrados à revista. A tal ponto que um grupo de colegas publicou um anúncio no Estadão defendendo a honradez e a qualidade profissional de nossa turma.

Maksoud atraiu Ewaldo e os demais jornalistas com a garantia de que o diretor de Redação teria a última palavra sobre tudo que se publicasse. Divergências e queixas do proprietário seriam resolvidas com Ewaldo, sem envolver a Redação. 

Na prática, não funcionou. Maksoud, homem de extraordinária inteligência e energia admirável, não conseguia cumprir o prometido. Deixei a revista junto a vários outros colegas quando suas intervenções na área editorial – não raro barulhentas, e às vezes delegadas a pessoas de sua confiança na empresa Hidroservice – tornavam difícil e até penoso o trabalho.

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Reportagem de capa de que participei intensamente em 1974: “Eleições – A descoberta da política”. Foi quando conheci e entrevistei um sociólogo chamado Fernando Henrique Cardoso (Foto: @Divulgação) (Arquivo Pessoal)

Como sempre, tempos turbulentos apresentam também um lado bom: pude atuar numa reportagem de capa sobre as eleições de 1974 – entrevistei várias personalidades, uma delas um sociólogo chamado Fernando Henrique Cardoso – e escrever reportagens no Peru e na Venezuela.

Dali pulei para quase uma década na Veja.

UM DOUTORADO: VEJA

1975 - 1983

A PAULEIRA DA “VEJA” SIGNIFICOU AMADURECIMENTO

Quase uma década na Veja dos melhores tempos equivaleu a um doutorado em jornalismo. Uma Redação fabulosa, na qual, durante esse período, convivi com boa parte dos maiores jornalistas do país – que mais tarde firmariam ainda mais seu nome, se tornariam diretores de publicação, enriqueceriam o jornalismo na TV, viriam a ser escritores de sucesso ou, fora do jornalismo, fariam sucesso em outros caminhos. Uns permaneciam pouco tempo na revista, mas o suficiente para que eu aprendesse deles. Outros tiveram passagens mais longas. De minha parte, como fui ficando, absorvi lições preciosas de profissionais que incrementaram enormemente a bagagem que eu trazia – cada um de seu jeito e a seu modo.

Uma revista que dava furos na TV e nos jornais

Naquela época – meados dos anos 70 a meados dos 80 –, a revista, semanal, não tinha engajamento partidário, buscava os fatos, seu significado e seus possíveis desdobramentos. Na política e em outros terrenos, pautava os jornais e a TV, porque saía na frente: em pleno regime militar, conseguia furos espetaculares sobre o poder, quase sempre para desagrado de seus donos de então, os militares e os tecnocratas que integravam o governo. A busca do exclusivo chegava às raias do inverossímil, mas a estrutura que a Editora Abril proporcionava à revista a tornava possível.

Um só exemplo: material fotográfico exclusivo do exterior chegava por malotes, via Varig ou – heroísmo da época – por gentileza de passageiros. A Abril conseguiu um esquema pelo qual um seu veículo entrava na pista do Aeroporto de Congonhas ou de Viracopos (o aeroporto de São Paulo-Guarulhos só seria inaugurado em 1985, quando eu já deixara Veja) para recolher os envelopes. Não raro, a rodagem da revista inteira ficava à espera de uma única foto, mesmo que fosse para publicar em tamanho pequeno na seção “Datas” – que registrava, entre outras coisas, a morte de pessoas relevantes. Não importava, desde que fosse exclusiva.

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Cobertura nos Estados Unidos: foto do encerramento da convenção do Partido Democrata, no Madison Square Garden, em Nova York, a 14 de agosto de 1980, na qual o presidente Jimmy Carter derrotou o senador Edward Kennedy e se tornou candidato à reeleição em novembro. Trabalhando para a revista, eu estava lá, com os correspondentes em Nova York, Selma Santa Cruz, e em Washington, Roberto Garcia (Foto: @Arquivo Pessoal) © Foto: Claudio Edinger

Uma linha de montagem de alta qualidade

O método de trabalho se constitui em uma novidade para mim, e funcionava com rigor extremo. Uma espécie de linha de montagem. O material original – apurado e escrito à máquina por repórteres da sede em São Paulo e das sucursais no Brasil, ou dos correspondentes no exterior – era encaminhado para um dos editores de área (“Brasil”, “Internacional”, “Economia”, “Artes e Espetáculos” etc.)

Depois de analisado, ia para as mãos de um editor-assistente, que já havia pesquisado intensamente o mesmo tema e juntava as informações num único texto. Pronto o texto, o editor o repassava, cortando, emendando ou acrescentando elementos, e checando se cabia na página previamente diagramada por ele junto com o pessoal da Direção de Arte.

Se tudo estivesse OK, o texto “subia” – conforme o caso, para o redator-chefe, o diretor adjunto de Redação e, em muitos casos, nas matérias mais importantes de qualquer área, para o diretor de Redação, José Roberto Guzzo – que assinava a Carta ao Leitor, no princípio da revista, como J. R. Guzzo. O resultado era uma alta qualidade jornalística.

O privilégio de ter mestres e mentores

Se tentar registrar todos os companheiros de Redação que me tornaram um jornalista melhor do que  era até então, por ação direta ou pelo mero exemplo, faltará espaço. Mas não posso deixar de citar pelo menos cinco deles, todos mestres, mentores e referências para mim, grandes profissionais, perfeccionistas, extremamente dedicados e extremamente exigentes, com quem tive o privilégio de aprender muito: Augusto Nunes, redator-chefe, Dorrit Harazim, minha chefe como editora de Internacional por vários anos, Roberto Pompeu de Toledo, que a sucedeu e do qual eu atuei como subeditor, Elio Gaspari, diretor-adjunto de Redação, e principalmente o diretor de Redação, José Roberto Guzzo. Na época, a opinião política de nenhum deles interferia no trabalho da revista, até onde pude observar e testemunhar.

Calo no dedo de tanto escrever com sua Bic

As muitas virtudes profissionais de Guzzo incluíam um texto de qualidade extraordinária, um enorme faro para o que interessava ao leitor e um brutal volume de conhecimentos. As laudas das matérias de maior peso – várias, em uma edição da revista – passavam pelo seu rigor implacável e por sua caneta Bic, tão manuseada ao longo dos anos que lhe causou um calo no dedo médio da mão direita. (Estávamos, naturalmente, na idade pré-computador). 

 Recebido o imprimatur do “Ogre”, ou “Mão Peluda”, alguns de seus apelidos, a matéria ainda seguiria para as datilógrafas, que tornavam limpas e impecáveis as laudas rabiscadas e anotadas. Caso o tamanho “estourasse”, convocava-se o editor para fazer cortes, às vezes revistos por Guzzo – e, passo final, o material era submetido ao crivo dos checadores, em nome da exatidão dos fatos, nomes, datas. Só então seguia para a gigantesca gráfica da Abril, então a maior da América Latina.

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Esta é uma foto divertida: eu, o cabeludo à direita, apareço bem perto do ex-presidente Emílio Garrastazu Médici — que encarnou o período mais duro da ditadura militar –, como que olhando feio para ele. Estávamos em outubro de 1975, Médici já deixara a Presidência e visitava a PUC de Campinas, onde havia sido paraninfo de uma turma do curso de Comunicação (Foto: @Sergio Sbragia/Editora Abril). © Foto: Sergio Sbragia, VEJA

Eu sentia uma grande emoção ao ver aquele turbilhão de atividade iniciado na segunda-feira materializar-se na publicação de papel absolutamente organizada e bem-acabada que saía da gráfica nas primeiras horas do sábado.

Na morte de JK, uma edição inteira feita em horas

Em certas ocasiões, o milagre operou-se em questão de algumas horas, como no caso da edição instantânea sobre a morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek. JK morreu num acidente na Via Dutra, que liga São Paulo ao Rio, na madrugada de 22 de agosto de 1976 – um domingo, com a revista da semana já circulando. Na segunda-feira, estava nas bancas uma edição completa sobre a vida, a carreira e o legado do ex-presidente.

Meu período na Veja, inicialmente na área política, depois, até o final, na de Internacional, me permitiu fazer reportagens no exterior – entre outras, sobre a eleição presidencial de 1980 nos Estados Unidos, sobre o tráfico de drogas na América Latina, apurada em Washington, e sobre a Copa do Mundo de 1982, na Espanha, durante a qual chefiei a equipe da revista e cobri a Seleção de Telê Santana – e viagens de estudo muito interessantes, como um giro pelo Oriente Médio para conhecer de perto o problema palestino.

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Entrevistando Zico na concentração da Seleção Brasileira a 6 de julho de 1982, dia seguinte à derrota do Brasil frente à Itália, por 3 a 2, em Barcelona, que eliminou o Brasil da Copa da Espanha. Era disparado a melhor seleção, diga-se (Foto: @J. B. Scalco/Editora Abril) © Foto: J. B. Scalco, Editora Abril

A revista exigia muito de seus jornalistas, tanto quanto à qualidade do jornalismo como ao grau de dedicação, e, claro, trabalhava-se sob um constante stress. Esta cultura de pauleira o tempo todo – certa ou errada – levou a Veja a ter a quarta maior circulação do mundo entre as revistas semanais e a ser uma mina de ouro em faturamento com publicidade. Com altos e baixos, eu convivia bem com a cultura da pressão permanente, e só deixei meu doutorado, muito a contragosto, por um desentendimento a esta altura esquecido e sepultado no tempo.

O saldo positivo ganha, de longe. Além do doutorado em jornalismo, nesse período que amadureci muito como profissional.

PURO PRAZER: O "JORNAL DO BRASIL"

1986 - 1990

GOSTAVA TANTO DO “JORNAL DO BRASIL” QUE ATÉ A CONTA DE LUZ ME PREOCUPAVA

Puro prazer: é o retrato do que senti o tempo todo comandando a grande e estratégica sucursal do Jornal do Brasil em São Paulo. Para dar uma dimensão de sua importância, na crucial eleição presidencial de 1989, dos sete candidatos com chances de chegar ao segundo turno, cinco eram de São Paulo – e a sucursal cobriu boa parte da campanha de todos eles.

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Debate realizado na sucursal de SP do Jornal do Brasil entre o senador mais votado do Brasil nas eleições de 1986 para a Constituinte, Mario Covas, então no PMDB, e o deputado mais votado, Luiz Inácio Lula da Silva, do PT. Na foto, da esquerda para a direita, o repórter Ricardo Kotscho, Covas, Lula, o repórter Aristeu Moreira (em pé) e eu (Foto: @José Carlos Brasil/JB) © Foto: José Carlos Brasil

A mim, como diretor, coube o sufoco de cobrir o candidato mais inacessível e então favorito, Fernando Collor. Mas, mesmo com os desfalques da cobertura eleitoral, os profissionais estabelecidos na Avenida Paulista, em frente à sede da Federação das Indústrias, continuaram a trabalhar em todos as demais áreas – economia, esporte, saúde, meio ambiente, segurança pública, educação, problemas urbanos, artes e espetáculos…

Com o passar do tempo, a sucursal passou a produzir em São Paulo seções inteiras do jornal, como a importante coluna diária Informe Econômico e o caderno Carro & Moto. Chegávamos a enviar perto de mil notas anuais para as diferentes colunas do jornal, inclusive as prestigiosas Informe JB e Zózimo. 

Marcos Sá Corrêa, o diretor da orquestra: inteligência, talento e bom humor

O prazer vinha de várias fontes. Em primeiro lugar, a sensação de estar cumprindo rigorosamente, junto à formidável equipe que tínhamos, a missão de informar bem e da maneira mais isenta possível. Junto a isso, a alegria de trabalhar junto a amigos de longos anos lotados na sede do JB, no Rio de Janeiro – um pessoal que se conheceu e se aproximou durante longos anos na revista Veja, começando por meu chefe imediato, o diretor de Redação Marcos Sá Corrêa.

Jornalista esplêndido, de texto irretocável, inteligência tão aguda e coruscante que não era fácil acompanhá-lo mesmo em um bate-papo, o maestro que conduzia a orquestra do JB um cavalheiro impecável e titular de um indestrutível bom humor, a despeito do enorme pressão que sofria no cargo – a de cumprir a missão de informar o melhor possível ao público, a de comandar centenas de jornalistas, a dos proprietários do jornal por resultados e outras razões, as de várias áreas do governo e dos políticos, refratários a qualquer matéria negativa ou crítica.

Nem levantava a voz

Em anos de convivência com Marcos, antes e durante os cinco anos em que trabalhei junto a ele no JB, jamais o vi protagonizar uma única cena de destempero, nunca sequer o ouvi levantar a voz para um subordinado ou um colega. Aliás, para ninguém. Era uma pessoa tão íntegra, competente e gentil que, a um erro que cometíamos, nem precisava vir bronca, porque ela vinha embutida dentro de cada um: o sentir-se mal diante de um chefe desse quilate. 

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O comando do JB: Roberto Pompeu de Toledo e Flávio Pinheiro (editores executivos), Xico Vargas (secretário de Redação), Ancelmo Gois (Informe JB e caderno Cidades) e Marcos Sá Corrêa, o maestro (Foto: @Jornal do Brasil) © Foto: Jornal do Brasil

O jornal preferido dos jornalistas

Cheguei ao JB pela mão amiga de Augusto Nunes. Ele deixara há algum tempo seu brilhante período de 11anos como redator-chefe da Veja, trabalhara num projeto na Editora Abril que não parecia decolar e aceitou prontamente um convite do nosso amigo comum Marcos Sá Corrêa para tornar-se diretor regional do Jornal do Brasil em São Paulo.

O grande jornal começava a passar, sob o comando de Marcos, por uma reformulação que o faria viver seu derradeiro período glorioso, e precisava revigorar suas maiores sucursais, Brasília e São Paulo. Augusto me chamou para ser seu segundo, ou editor regional. Atirei-me ao trabalho com energia e prazer, até por estar extremamente insatisfeito e infeliz na revista em que então atuava. E, afinal das contas, como se dizia então, o Jornal do Brasil era o jornal preferido pelos jornalistas, um lugar em que todo mundo gostaria de trabalhar e do qual ninguém falava mal.

Mal se passou um ano, e Augusto deixou o JB para dirigir o Estadão. Queria que eu o acompanhasse como redator-chefe, mas preferi continuar vivendo a experiência transformadora no JB, agora como diretor regional.

Meu período mais feliz

Tudo somado, e a despeito de ter tido ótimas passagens por outros veículos, foi o período mais feliz de minha trajetória no jornalismo. Além do afeto e respeito que tinha por meu chefe imediato, Marcos Sá Corrêa, dos profissionais de primeira e amigos queridos como seus lugares-tenentes na sede do jornal, no Rio, eu desfrutava de grande independência. Pude contratar excelentes valores para juntar-se à sucursal. Integrava os quadros de uma empresa extremamente fidalga e, a despeito da responsabilidade de dirigir um time com 40 profissionais, produzi intensamente — artigos, entrevistas e reportagens. 

Se isso tudo não fosse suficiente, jamais trabalhei, antes ou depois, num veículo de imprensa que abrisse tantas portas, e tão facilmente, tal a credibilidade do jornal: não havia ministro, governador, empresário, general ou magistrado que não atendesse a um telefonema vindo do JB

Meu carinho pelo jornal era tanto que, em geral o último a deixar a sucursal, eu antes baixava cuidadosamente cada persiana para evitar o calor do sol da manhã seguinte e apagava, uma a uma, todas as luzes de todas as salas. 

Fiquei no JB de 1986 a 1990. O material contido neste site inclui também colaborações posteriores, de outra fase do jornal.

PILOTANDO O ESTADÃO

1990 - 1992

CHEGANDO AO CUME ONDE COMECEI DO ZERO


Parecia coisa de cinema. Eu tinha começado minha carreira de jornalista para valer sendo um anônimo foca da sucursal de Brasília de O Estado de S. Paulo. Como se a história pessoal tivesse dado um salto, naquele dia eu me via numa grande sala, na sede do jornal, no Bairro do Limão, em São Paulo, sendo apresentado como seu editor-chefe diante de duas dezenas de profissionais sentados ao redor de uma extensa mesa de cantos arredondados.

Até aquela tarde do dia 21 de junho de 1990, duas décadas e meia e seis diferentes empregos haviam passado. E tinha diante de mim uma tarefa enorme.

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Em minha sala no Estadão, com uma parede de vidro que me permitia ver toda a Redação. Era tão grande que não se distinguiam as pessoas no extremo oposto (Foto: @O Estado de S. Paulo) © Foto: Roberto Loffel, VEJA São Paulo

O Estadão de 1990 era um mundo, simbolizado não apenas por sua história mais que centenária, mas até por sua imensa Redação: tão grande que, da sala envidraçada que eu ocupava, em um dos extremos, não enxergava a última fileira da turma que editava o Caderno 2, no outro. Mais de 200 jornalistas na sede e 40 colaboradores eram tecnicamente subordinados a mim – e eu, claro, ao diretor de Redação –, espalhados por uma dezena de editorias e meia dúzia de cadernos especiais semanais, cujos editores se reportavam a cinco editores-executivos.

Essa estrutura, sem dúvida grande e cara, era parte importante do grande projeto de reforma que Augusto conduzia, e que eu, ao chegar, brinquei ambiciosamente batizando de “fazermos o The New York Times brasileiro”. Poderíamos não chegar lá, mas esse era o objetivo ideal, e na busca dele o Estadão daria, pensávamos, um grande salto qualitativo.

Mais vigor no jornalismo

Esse salto qualitativo já vinha ocorrendo no jornalismo praticado – ágil e ousado na cobertura política, sólido em  editorias como a Internacional e a Economia, rico, variado e repleto de excelentes colaboradores na área de cultura, artes e espetáculos, e de amplo espectro nos cadernos especiais – aos tradicionais, como os dedicados ao chamado jornalismo feminino ou a viagens, acrescentaram-se vários outros, como os dedicados ao interior do Estado, à área jurídica e aos estudantes que se preparavam para o vestibular, além de uma revista mensal a cores, cuja periodicidade era limitada pela capacidade da gráfica.

A contratação de Joelmir, Verissimo e Paulo Francis

O projeto incluía, e alcançou, objetivos como lançar o jornal a cores depois de 115 anos e ter o Estadão circulando às segundas-feiras, o que não ocorria desde 1927, por razões nunca claramente explicadas. Augusto obteve, também, contratações de enorme repercussão na época, trazendo Luis Fernando Verissimo da Veja, o articulista de economia Joelmir Betting da Folha e, também da Folha, quem era provavelmente sua maior estrela: Paulo Francis – este ao custo de prolongadas negociações de que participei.

O “roubo” de Paulo Francis pretendeu ser tão secreto que, a pedido dele, nossa primeira reunião no Brasil realizou-se num salão alugado do Hotel Fasano, a portas fechadas. Mesmo depois de firmado o contrato, Francis, para nossa surpresa, relutava em informar à Folha sobre sua mudança de endereço. Na tarefa de convencê-lo, muitas vezes em telefonemas com o tom de um adulto repreendendo uma criança, o então editor executivo da área de Cultura, José Onofre, amigo de Francis, exerceu papel decisivo.

Adrenalina nas pautas

A contratação de outros grandes profissionais para atuar como editores executivos, superpondo-se aos editores das diferentes seções, visava injetar adrenalina e criatividade nas pautas e proporcionar uma interlocução próxima e constante para cada editor sobre os principais problemas de sua editoria – de conteúdo, variedade e riqueza das matérias à qualidade e desempenho de redatores e repórteres.

Os executivos também supervisionavam diretamente as principais matérias de cada editoria. Tornaram-se peça importante na produção de cada texto.

O jornal estava sempre correndo atrás de reportagens exclusivas. Mas, exclusivas ou não, elas deviam percorrer um trajeto até serem consideradas prontas para “descer” – ou seja, seguir eletronicamente para a Gráfica. O repórter da Redação, o correspondente no exterior ou o repórter de uma das sucursais apurava e escrevia, um subeditor ou redator lia e fazia acertos, se necessário, consultando o repórter, dele o texto seguia para o editor da área e, sempre contra o relógio e ante a fatalidade dos prazos industriais, o ideal era que ainda fosse revisto por um dos executivos.  

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Cumprimentando o então presidente Fernando Collor na chegada para um jantar com jornalistas na casa de Carlos Chagas, na época diretor da TV Manchete em Brasília (Foto: @Presidência da República) © Foto: Presidência da República

Depois dessa trajetória, era fisicamente impossível o também o editor-chefe ler tudo (produzíamos mais de 400 matérias por dia, e uma média de 250 eram editadas). Portanto, eu priorizava a leitura das matérias de Política e as mais importantes de outras editoriais – e também as que os executivos queriam que passasse por meu crivo. Introduzia mudanças, pedia mais detalhes, cortava trechos menos relevantes. Sugeria pautas, cobrava resultados, reunia-me rotineiramente com os editores e com o diretor de Redação, despachava em determinados horários com quem então se chamava o “diretor responsável”, no caso Julio de Mesquita Neto, um dos proprietários da empresa. E, além de um artigo semanal na página 2 (uma das duas destinadas à editoria de Opinião – a página 3 continha os editoriais e a opinião do jornal), procurava encontrar tempo para fazer reportagens e entrevistas, viagens a Brasília e uma ou outra para alguma missão no exterior.

“Vítimas entre a população civil”

Era um trabalho gratificante e, claro, exaustivo. E continha uma dose de stress inteiramente desnecessária, mas não rara em um jornal com grande influência na sociedade, mas gerido por uma empresa familiar. Os desentendimentos entre os acionistas acabavam “provocando vítimas entre a população civil” – ou seja, entre os jornalistas, nas palavras de um veterano colega que ocupou altos cargos na empresa.

Esse problema acabou passando dos limites de tolerância de Augusto o que, somado a necessidades de Redação que a empresa relutava em conceder, levaram-no a deixar o Estadão, aceitando um convite para reformular a Zero Hora, do grupo de comunicações RBS do Rio Grande do Sul. Sua saída conduziu ao desmonte da equipe que tocava as mudanças. Como era previsível, os sucessores mudaram quase tudo que se havia, com êxito, introduzido no Estadão.

Para mim, durou perto de dois anos, custou um começo de úlcera – mas me enriqueceu muito, em todos os sentidos, como profissional.

SÓ ENTRE AMIGOS

2002 - 2007

Trabalhar só por gosto, na companhia de amigos, num veículo sem patrão. Quer coisa melhor?

O título www.nominimo.com.br era uma brincadeira de seus idealizadores, Alfredo Ribeiro, o Tutty Vasques, e Xico Vargas, e ironizava a fracassada experiência ambiciosa de empresários que haviam investido no portal NO.com (Notícia e Opinião) mas não tiveram a coragem de continuar bancando seu estupendo conteúdo.

Os executivos financeiros que supervisionavam o NO aporrinhavam os jornalistas o tempo todo com a ladainha de que os custos e a estrutura precisavam ser “mínimos”. Então, quando acabou o NO, Alfredo e Xico criaram o Nomínimo.

Mas antes do fim do NO, consegui produzir para o site, com absoluta liberdade de iniciativa, matérias de repercussão, como um texto com 17 perguntas jamais respondidas sobre o assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel, ou reflexões exclusivas do ex-presidente José Sarney sobre as possibilidades presidenciais da filha, Roseana, então na efêmera situação de líder das pesquisas de intenção de voto para a eleição de 2002. 

Depois de dez anos consecutivos exercendo cargos de direção na Editora Abril, que decidi deixar para melhor desfrutar a vida, era uma sensação esplêndida atuar como franco-atirador, escorado financeiramente, entre outras coisas, pela generosa negociação propiciada pela empresa à minha saída. 

 

Permanente clima de camaradagem

O ambiente no site, com sede no imenso edifício pertencente e vizinho à Academia Brasileira de Letras, no Rio, não poderia ser melhor e mais risonho, com amigos queridos com quem já convivera por anos a fio na Veja e no Jornal do Brasil – começando por seu diretor de Redação, Marcos Sá Corrêa, além de Alfredo e Xico, e de gente do quilate de Zuenir Ventura, Villas-Boas Corrêa, Sérgio Rodrigues, Augusto Nunes, Guilherme Fiúza, Arthur Dapieve e tantos outros. De São Paulo, como ocorria com outros colaboradores, enviava para a sede o material uma vez por semana.

Quase todos os que vinham sendo companheiros de rota pela carreira afora terminaram migrando para o Nominimo, mesmo nos casos em que foram pescados por O Globo e outros veículos. Ali, num permanente clima de camaradagem, respeito e amizade, escrevi de 2002 a 2007 uma coluna semanal de informações e comentários, sobretudo políticos, que depois se tornaria um blog, “Política & Cia”. Escrevi a respeito de grande variedade de temas, desde o Foro de São Paulo até um retrato detalhado do único presídio de segurança máxima digno deste nome no Brasil, o de Presidente Bernardes (SP).

Era bom demais para durar, e acabou em junho de 2007, por sufocação financeira.

 

MUDANÇA TOTAL: PLAYBOY

1994 - 1999

NÃO, A REDAÇÃO NÃO ESTAVA REPLETA DE MULHERES NUAS

Pouco depois que assumi a direção da revista Playboy, em novembro de 1994, um colega da Editora Abril me perguntou, brincando:

— Como é que é, Setti, muita mulher pelada lá Redação?

Ele trabalhava em Exame, revista de economia e negócios da empresa, e minha resposta foi outra pergunta:

— E vocês, lá na Exame: muito dinheiro rolando pelos corredores?

A disseminada lenda de que a redação de Playboy era um jardim das delícias era inteiramente descabida. Antes de mais nada, porque se considerava qualquer relação pessoal com as garotas fotografadas pela revista como antiética, antiprofissional e fora de questão. Se ocorresse algum caso, demissão imediata (não ocorreu). 

Neste terreno feminino de curvas e sinuosidades, era na verdade estressante o desafio de ter, a cada mês, uma capa em branco a ser preenchida com a contratação de alguma estrela capaz de atrair suficiente para a revista fazer bonito nas bancas. Sem contar a enorme dificuldade de lidar com seus agentes, advogados, representantes diversos e… mães. Mães de estrelas, me ensinou a experiência, são muito mais complicadas do que as próprias.

 Na primeira passagem pela revista, a alegria de um Prêmio Esso de Reportagem

Minha longa carreira até então transcorrerra basicamente na área de hard news, ou seja, um jornalismo de notícias quentes e relevantes, especialmente nas áreas de política e de assuntos internacionais. A trajetória, porém, havia incluído um ano e meio de intenso trabalho na própria Playboy, como redator-chefe e, depois, editor de reportagens especiais, de modo que conhecia a praticara os fundamentos da revista criada por Hugh Hefner em 1953. 

Nesta passagem, tive a alegria de vencer o primeiro e único Prêmio Esso de Reportagem da história da revista, com matéria longa e trabalhosa sobre os bastidores da feitura do Plano Cruzado. Entrevistei cerca de 50 fontes, em São Paulo, em Brasília e no Rio. Curiosamente, antes de me tornar diretor de Redação, recebi a incumbência de apurar uma matéria sobre a queda de todo o ministério do presidente Fernando Collor, em 1992. Um pouco distante do dia a dia da reportagem, algo enferrujado, e após duros dias de trabalho em Brasília, consegui trazer a reportagem, “O dia em que o Ministério implodiu”. 

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“O dia em que Sarney derrubou a inflação” é reportagem com a qual ganhei o Prêmio Esso de Reportagem na primeira passagem pela revista. © Reprodução

Três anos depois desse trabalho, lá estava eu como diretor de Redação de Playboy. E agradeço aos céus que os exatos cinco anos em que permaneci no cargo (1994-1999) deram certo. Com uma equipe fantástica, procurei injetar jornalismo da melhor qualidade na revista, torná-la não apenas agradável e, como dizia seu slogan, “gostosa”, mas substanciosa e relevante. 

De um perfil do ministro Pelé ao Exército brasileiro em Angola

Daí a extensa série de reportagens e entrevistas de peso que publicamos: um brasileiro no “corredor da morte” de uma penitenciária na Flórida, EUA; bastidores das viagens internacionais do então presidente Fernando Henrique Cardoso; o terrível baque sofrido pelo cacique político Antonio Carlos Magalhães com a morte prematura do filho predileto; como viviam, se divertiam e conseguiam ter uma vida sexual jovens submetidos à ditadura de Saddam Hussein, no Iraque, e à ditadura dos aiatolás, no Irã; o último forte da lendária Legião Estrangeira nos confins do Djibouti, no Chifre da África; um perfil minucioso de Pelé como ministro do Esporte; a vida do ex-ministro Ciro Gomes como estudante nos Estados Unidos; como era o trabalho que 1.500 homens do Exército do Brasil trabalhavam na perigosíssima tarefa de desarmar milhões de minas enterradas no solo de Angola, na África, ao longo de tenebrosos 27 anos de guerra civil – e por aí vai.

Atrás de outros temas, jornalistas da revista viajaram não apenas para Iraque, Irã, Djibouti ou Angola, mas a lugares tão diferentes como Paris, Veneza, St. Barts, no Caribe, o Zaire (hoje República Democrática do Congo), Maranello, na Itália, sede da fábrica dos míticos Ferrari, Hong Kong, Lisboa, Londres ou Mônaco.

De minha parte, viajei para várias conferências das edições internacionais da revista, para as quais a sede da revista, em Chicago, enviava uma minuciosa pauta de trabalhos. Nem sempre os colegas estrangeiros a levavam a sério, mas eu procurava fazer com empenho a lição de casa. Houve encontros desse tipo sempre em locais agradáveis – Acapulco, no México, Saint Martin, ilha francesa no Caribe, Rovinj, no litoral da Croácia, e Barcelona.

Revelações nas entrevistas, grandes nomes entre os colaboradores

Nas entrevistas de Playboy Brasil, buscávamos ir aos últimos detalhes de personagens conhecidos de todas as áreas. Foi assim, por exemplo, que o ex-ministro da Fazenda Mailson da Nóbrega revelou que no governo Sarney tinha ordem de priorizar a TV Globo na divulgação em primeira mão de importantes medidas econômicas. Ou que a apresentadora Xuxa contou, pela primeira vez, como foi sexualmente assediada por um importante general durante a ditadura militar, ou que o ídolo Emerson Fittipaldi admitiu ter praticado violência contra a própria mulher. 

Procuramos também agregar grandes nomes do jornalismo como colaboradores. Assim, por exemplo, a Roberto Pompeu de Toledo coube entrevistar o grande economista Celso Furtado. Fernando Morais foi à Espanha trazer um perfil do juiz Baltazar Garzón, mundialmente famoso por ter expedido ordem internacional de captura contra o ex-ditador chileno Augusto Pinochet, por crimes como terrorismo internacional, tortura e genocídio. Carlos Alberto Sardenberg entrevistou Mailson. Ruy Castro, de há muito ligado à revista, continuou seu ótimo trabalho em todo tipo de matérias. Escrevera para a revista outros nomes de destaque, como Ivan Angelo, Joaquim Ferreira dos Santos, Lúcia Guimarães e Luiz Maklouf Carvalho.

A revista e o Prêmio Nobel de Saramago

Numa publicação mensal, fazíamos mais de uma reunião de pauta por mês, e pequenas reuniões a cada dois ou três dias para ver o andamento das coisas. No item estrelas, as reuniões eram com a editora de Fotografia, Ariani Carneiro, responsável por quase todas as negociações e contratações incansável, além de produtora dos principais ensaios. Volta e meia eu pedia a presença do diretor de Arte, Carlos Grassetti, no posto desde o lançamento da revista e cujo talento incluía admirável senso estético e um agudo olho clínico.   

Planejávamos a revista tanto quanto possível, e isso rendia resultados excelentes. Entrevistamos o grande escritor português José Saramago em seu retiro em Lanzarote, uma das Ilhas Canárias, Espanha. Na entrevista, o editor especial Humberto Werneck perguntou sobre o Prêmio Nobel de Literatura, e o tema percorreria outras perguntas. Pois bem, o Nobel seria anunciado num dia 8 de outubro, uma quinta-feira. Programamos a entrevista para que saísse na edição de outubro que, como sempre, circulava às terças-feiras. Anunciado o prêmio, a revista já trazia demoradas considerações do escritor sobre o Nobel. 

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Nesta foto apareço numa reunião com a presidente da Playboy americana, Christie Hefner, mostrando a ela mudanças que tínhamos feito na revista. Ela não precisava aprovar, era só para ver (Foto: @Cacalo Kfouri/Editora Abril) © Foto: Cacalo Kfouri

Uma referência: o Ranking das Melhores Faculdades

Tínhamos grande atenção e cuidado com os diferentes serviços que prestávamos ao leitor. Um deles era o Ranking Playboy das Melhores Faculdades do país, produto de um minucioso questionário enviado pelo editor Ricardo Castilho a dezenas de milhares de professores universitários de todo o país. O Ranking se tornou uma grande referência para milhares de vestibulandos de todo o país, e era tão respeitado que o à época ministro da Educação, Paulo Renato, citou-o em entrevistas como o melhor sistema de avaliação do ensino superior que havia no país até o chamado Provão, que seu Ministério instituiu.

Seguíamos a cartilha de Hefner, que mantinha a nudez feminina como principal baluarte da revista, mas fixava a seu redor vários outros pilares – excelente jornalismo, serviço de primeira ao leitor, ilustrações de grandes artistas (até Salvador Dali atendeu a encomendas da revista americana), fotos dos melhores fotógrafos, humor, ficção (lançou ou ajudou a firmar gigantes da literatura dos EUA, como Norman Mailer ou Saul Bellow).

Procurávamos exibir na revista brasileira todos esses pilares, e, no setor ficção, criamos o Concurso Playboy de Contos (não necessariamente eróticos). Conferia um prêmio único, ao vencedor: um automóvel zero km. Um dos júris de nossos concursos seria presidido por Nélida Piñon, à época presidente da Academia Brasileira de Letras.

Nove entre as dez edições mais vendidas 

No pilar principal, as estrelas, o trabalho duro e persistente e a sorte nos ajudaram muito. Graças a elas, nos cinco anos em que minha equipe e eu estivemos em Playboy, alcançamos nove das dez maiores vendas em bancas da história da revista.

Tínhamos olheiros em diferentes partes do país – todos voluntários. A Redação era muito antenada e sempre levava às reuniões nomes de garotas com potencial para explodir. A editora de Fotografia, Ariani Carneiro, embora jovem, já ostentava longa carreira na revista, era respeitada e benquista por agentes, empresários e advogados de estrelas, e entre atrizes da TV e do cinema e nomes de destaque em outras áreas, como as passarelas. Essa rede de relacionamentos se revelou um tesouro para a revista.

Quem batia o martelo sobre cada contratação era o diretor de Redação. Conforme o tamanho do cachê, eu precisava realizar consultas com o diretor de negócios do grupo de Revistas Masculinas. Além de acompanhar de perto tudo o que se relacionasse com contratações, eu próprio me envolvi em várias negociações.

De Adriane Galisteu a Débora, militante do MST

Como na de Adriane Galisteu, a grande estrela do 20º aniversário da revista (agosto de 1995), com os bons ofícios do magnífico jornalista Nirlando Beirão, editor especial da revista e amigo da ex-namorada de Ayrton Senna, para a qual redigira o livro com a história do romance entre os dois. Contratei também Marisa Orth, na época no auge da popularidade com a boazuda e não muito inteligente personagem Magda, do semanal de comédia Sai de Baixo, da TV Globo.

E descobri Débora Rodrigues, a então militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, ao ler uma edição do Estadão de domingo, na praia, em meu refúgio no litoral paulista. Ela aparecia numa foto e a reportagem dizia, erroneamente, que Débora trabalhava na prefeitura da cidade de Teodoro Sampaio. Na verdade, ela sustentava os dois filhos dando duro na cooperativa do MST. A edição com Débora na capa alcançou um enorme sucesso e, para minha alegria, transformou para melhor a vida dela.

Que estrela, afinal, mais ganhou dinheiro por posar?

Jamais revelei nem vou revelar os cachês das estrelas, sempre exagerados por alguns jornais e programas de TV e, não poucas vezes, pelas próprias. Mas vou contar qual estrela ganhou mais dinheiro com seu ensaio de capa: devido a um item contratual prevendo participação nas vendas, foi a atriz Marisa Orth.

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A capa com Marisa Orth, estrela dos 22 anos da revista, agosto de 1997: resultados excelentes (Foto: @Reprodução) (Arquivo Pessoal)

O primeiro contato com Marisa foi em seu amplo apartamento no Alto de Pinheiros, não distante da sede da Abril na época. Depois disso, em outras duas reuniões que incluíram também sua advogada, conseguimos concordar em um cachê fixo menos vultoso do que ela imaginava mas, inteligente, a atriz viu que a participação nas vendas lhe poderia ser – como foi – muito vantajosa.

Marisa Orth deu trabalho, mas compensou

A forte personalidade de Marisa Orth nos deu trabalho. Ela escolheu um fotógrafo com quem nunca tínhamos trabalhado, em quem confiava por ser seu amigo, e também, na mesma situação, o produtor visual. Quis planejar a linha do ensaio, e não tratou como deveria os profissionais da revista durante o trabalho.

De todo modo, percebemos que suas escolhas e seus planos para o ensaio eram bons, e resolvi arriscar. O resultado não decepcionaria de forma alguma, tanto esteticamente quanto em matéria de resultado de vendas. Somando bancas e assinaturas, passou folgado dos 700 mil exemplares e conquistou o quinto lugar entre as edições mais vendidas em todos os tempos.

Mas muita coisa ainda aconteceria antes de eu deixar a revista, dois anos e meio depois.

Missão cumprida em Playboy, em novembro de 1999 a empresa me convocaria para outra função: executivo editorial. A história está em outro item deste SOBRE.

 

VIDA DE EXECUTIVO

N/A

SURPRESA NA REUNIÃO DA DIRETORIA: UMA GUERRA DE BOLINHAS DE PAPEL

Reunião de diretoria de uma grande empresa – a maior do gênero da América Latina.

Como que caído de paraquedas, eu estou ali.

Há uma dezena de senhores debatendo problemas e soluções, cada um com um notebook e uma pilha de papel à frente, dispostos ao redor de uma comprida mesa de cantos ovalados. Um fala, outro comenta, outro acrescenta. , E de repente, antes de um intervalo para o café… começa uma guerra de bolinhas de papel entre os diretores.

Meninos, eu vi. Ocorreu na Editora Abril, num período em que a empresa era dirigida por uma Equipe Central que, à maneira dos diretores do Bradesco, trabalhava num grande salão sem divisórias e, nas reuniões, os diferentes diretores deslocavam-se alguns metros até essa grande mesa. 

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Na foto apareço com um personagem importante em minha carreira e minha vida, Thomaz Souto Corrêa, vice-presidente e diretor editorial da Abril (Foto: @Dedoc/Editora Abril) © Foto: Editora Abril

Sob o comando de um fabuloso executivo editorial, o Vice-Presidente e Diretor Editorial Thomaz Souto Corrêa, a quem muitos se referem como TSC, não era raro que ocorressem cenas assim. Thomaz, entre suas inúmeras virtudes, ostenta a de um bom humor que resiste aos mais insistentes azedumes. Um perfeito cavalheiro, sempre vestido nos trinques, com um dos inevitáveis suspensórios de sua vasta coleção, foi e é o maior, mais criativo e mais fecundo editor de revistas do país. Nada mais natural, pois, que ele tenha se tornado o primeiro presidente latino-americano do Conselho Diretor da Fédération Internationale de la Presse Périodique (FIPP), entidade criada em 1925, na França, que congrega publishers, proprietários e criadores de conteúdo de 700 empresas de mídia de todos os continentes.

Pai de um sem-número de revistas

Cidadão do mundo, que viajava a trabalho um dia para Nova York, outro para Singapura, Paris ou Tóquio, poliglota – inglês, francês, espanhol, italiano, no mínimo –, titular de uma rede de contatos com grandes jornalistas, diretores de Arte e executivos editoriais das maiores empresas do planeta, Thomaz percorreu rapidamente os escalões da profissão depois de ingressar na Abril até tornar-se o responsável pela supervisão da qualidade de dezenas de revistas, o “pai” de um sem-número de novas revistas e o eterno braço direito do dono da empresa, Roberto Civita. 

Explodiu como o diretor que levou Claudia a ser a mais importante e influente revista feminina do país. Tinha sacadas geniais. Por exemplo: contratou como colunista a psicanalista Carmen da Silva – que, em sua coluna “A Arte de Ser Mulher”, publicada ao longo de 22 anos, até sua morte –, viria a ser pioneira do feminismo e defensora, inteligente, delicada e sensível, dos direitos da mulher. No Brasil careta dos anos 60, Carmen discutia questões como a sexualidade feminina, o aborto, o uso de anticoncepcionais, a necessidade de haver divórcio.

As matérias de moda eram fotografadas mundo afora, e as edições, apimentadas por deliciosas reportagens sobre o país em questão. Fez história levando um time de modelos lindíssimas, fotógrafos de primeira e ótimos jornalistas para uma edição especial na… União Soviética. Isso nos anos 60, quando até para a poderosa imprensa americana o feito seria uma proeza difícil. Em uma das reportagens, o jornalista brasileiro localizou, lá pelas tantas, não distante da Praça Vermelha, em Moscou, um cidadão russo que era torcedor do Flamengo.

Com formação de arquiteto – daí sua constante preocupação com o visual das revistas, sempre a serviço, diz ele, da clareza e legibilidade das matérias –, Thomaz tivera passagens pela revista Visão e pela seção Internacional do Estadão.  E, detalhe importante em sua formação, havia colaborado com uma figura notável da mídia brasileira, o médico de formação, jornalista, teatrólogo, ator e diretor Silveira Sampaio, protagonista, em 1957, do primeiro talk show da TV brasileira, que levou ao ar com grande sucesso até sua morte, em 1963. 

Eu conhecia Thomaz de obas e olás pelos corredores da Abril, mas vim realmente a privar com ele depois de minha primeira passagem por Playboy (1985-1986), revista que ele acompanhava de perto e a cujos eventos invariavelmente comparecia. Acredito ter ganho sua confiança quando resolveu, ele mesmo, entrevistar para a revista o grande amigo Jô Soares. As entrevistas de Playboy tinham a reputação de serem completas, e sua feitura exigia uma exaustiva pesquisa prévia e de duas a quatro sessões de conversas gravadas. Thomaz começou com Jô, com um estilo muito próprio de perguntar, mas, sem tempo, passou a incumbência a mim. Depois de sessões com o multiartista num estúdio de gravação de comerciais, em São Paulo, no Teatro Fênix da TV Globo, no Rio, e na confortável casa que ele então mantinha em São Paulo, concluí a entrevista – e Thomaz gostou.

Pois bem, quando deixei a função de editor-chefe do Estadão, no começo de 1992, recebi diferentes convites – da Veja, da TV Cultura e do jornal O Globo. Já prestes a bater o martelo, recebo um telefonema de Thomaz:

– Rapaz, só agora fiquei sabendo direito de sua saída do Estadão. Quero que você venha pra cá [Editora Abril] trabalhar comigo. Nem sei como nem em quê, mas venha!

Minha resposta, simples e curta:

– Topo! Não precisa nem dizer o salário.

Acabei sendo designado diretor editorial adjunto – Thomaz, além de vice-presidente executivo do Grupo Abril, vestia também o uniforme de Diretor Editorial. Significaria, portanto, que trabalharia próximo a ele. O salário era melhor do que o anterior e Thomaz se esqueceu de mencionar benefícios, a começar por um carro e suas despesas e a possibilidade de ganhar bônus anuais.

Seguiram-se dois anos e meio de minuciosa construção de uma espécie de central de controle e divulgação de qualidade editorial, sob a égide de Thomaz e tendo como parceiro o secretário editorial, Celso Nucci, jornalista experiente, talentoso, de grande bagagem e uma ética de aço. Eu participava das reuniões de pauta das revistas, fazia relatórios sobre a qualidade editorial de cada edição, entregue aos diretores de Redação e também a Thomaz e Celso, após o que havia uma reunião de nós três com o staff da revista. 

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Julgamento dos trabalhos de direção de Arte do Prêmio Abril de Jornalismo de 2000: da esquerda para a direita, eu, Roberto Civita, presidente da empresa, a diretora de Arte Eliane Stephan, Celso Nucci e Thomaz Souto Corrêa (Foto: @Dedoc/Editora Abril) © Foto: Cacalo Kfouri

Realizávamos seminários sobre ética profissional, qualidade de texto e técnicas de reportagem. Publicávamos uma newsletter destinada a todos os jornalistas da Abril. Trabalhamos duro na feitura de regras sobre conflitos de interesse e um código de conduta para os jornalistas. Conduzíamos um sistema de permanentes pesquisas qualitativas com leitores, feitas por profissionais especializados e que ajudavam a orientar os diretores de Redação.

Esse período fértil incluiu organizar cursos e palestras de visitantes estrangeiros, como os mestres do design Jan White – um gênio e uma criatura adorável, que espalhava seu saber mundo afora e era tão solicitado que seu cartão de milhagem ostentava milhões de milhas voadas – e Roger Black (autor, entre outros, dos logotipos das revistas Time e Rolling Stone), fotógrafos da esplêndida revista National Geographic, dos EUA, e consultores respeitados Universidade de Pamplona, na Espanha. 

Sendo adjunto de Thomaz, ele me carregava também para as reuniões de negócios, como a da guerra de bolinhas de papel. Mais como um ouvinte, só tentando contribuir aqui e ali com algum palpite, mergulhei num mundo que pouco conhecia: circulação, marketing, publicidade, inovação tecnológica, logística.

Durante um período, eu substituía Thomaz em contatos em Buenos Aires com os diretores de diferentes revistas que a Abril lançara na Argentina. Certa vez, precisei rumar para lá numa antevéspera de Natal. Nessas viagens travei contato com o proprietário da Editora Perfil, Jorge Fontevecchia, que entre outras revistas lançara em seu país com grande sucesso Caras, inspirada na célebre espanhola de celebridades Hola! 

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Com a equipe de CARAS: ajudei os argentinos da editora Perfil a montar a redação da revista que iria ser lançada no Brasil. Estou na segunda fileira, atrás de um cara de bigodinho negro que era o dono da Perfil. O barbudo à direita era o jornalista Nirlando Beirão (Foto: @Revista Caras) © Foto: Caras

Daí a ser designado por Thomaz para auxiliar os argentinos a montar a equipe da Caras brasileira foi um passo. Do diretor de Redação, o grande jornalista Nirlando Beirão, ao pessoal de Arte e alguns fotógrafos, 90% da equipe foram indicações minhas que passaram pelo crivo dos argentinos, sobretudo do publisher Edgardo Martolio. Beirão não demoraria a deixar a revista por não se adaptar ao modo de trabalhar do pessoal da Perfil, empresa que detinha meio a meio do capital do negócio Caras com a Abril mas decidia sem parceria a gestão do lado editorial.

Minha experiência como diretor editorial adjunto acabaria sendo interrompida pelo desafio, proposto por Thomaz, de eu assumir a direção de Redação de Playboy, então a cargo de Juca Kfouri. Juca acumulava a função de que realmente gostava, diretor da revista de esportes Placar, prestes a entrar em uma nova fase com grande investimento da empresa – formato grande, lançamento de brindes, promoção de concursos e campeonatos, cobertura esportiva mais ampla e ambiciosa. Para tanto, Juca considerava que deveria dedicar-se com exclusividade à revista nessa fase de mudança radical, e Thomaz concordou.

Depois de meus cinco anos como diretor de Playboy, de novo o chefe interrompeu a experiência para me convocar a outra função: diretor editorial da divisão de Revistas Femininas – um vasto universo com 300 funcionários, mais de vinte revistas de todo tipo, de segmentadas de luxo a populares, de semanais a mensais. 

Compartilharia o comando com um diretor gerente, João Luís Damato, experiente executivo capturado no mercado anos antes e que já era responsável pelo negócio Femininas.

Os dois felizmente trabalhamos em grande harmonia, sem um interferir na área do outro, mas compartilhando opiniões e informações todo o tempo, e fazendo reuniões conjuntas tanto com as diretoras de Redação (eram todas mulheres) como com cada uma individualmente. 

A tarefa que me cabia era inviável, na prática: cuidar da qualidade editorial de quase três dezenas revistas, cada uma com uma periodicidade e um público diferentes. Todos os envolvidos sabiam disso. Na vida real, optei por prioridades: iria acompanhar mais de perto as revistas mais importantes, as que estavam em dificuldades e as que passavam por reformas. E, naturalmente, os lançamentos.

O problema de funções como essa é que os resultados demoram a aparecer – “qualidade editorial” é um conceito fluido, que envolve dezenas de variáveis e não pode ser medido cientificamente. Acredito, porém, haver colaborado para o que TSC fixou como missão para minha gestão: levar as revistas a fazer mais jornalismo do que ser apenas um guia de orientação e cooperação para a vida das mulheres de diferentes classes sociais.

Mas a vida é dura. Mal assumi a função, a Abril entrou em um de seus períodos de austeridade para melhorar os resultados. Na prática, significou amarrar as mãos dos diretores das diferentes áreas em setores vitais como autorização de despesas e, principalmente, contratações e dispensas onerosas de pessoal. Perdemos essa autonomia e tínhamos que subir de instância para “brigar” por certas medidas.

E o dia a dia não era fácil. Em certas posições em grandes empresas, raro é o subordinado que entra em sua sala com boas notícias. A rotina é uma de duas coisas, ou ambas: ouvir queixas sobre carências ou pedidos difíceis de atender. 

Admito que o desgaste de estar numa função de mãos atadas e na qual o desfrute era desproporcional ao desgaste me fez ver com mais atenção meu plano de deixar a empresa assim que fosse possível obter a aposentadoria pelo fundo de previdência privada do Grupo Abril, para o qual contribuí durante anos com metade de meu salário líquido mensal.

A aposentadoria, pelas regras do fundo, ocorreria com o funcionário atingindo no mínimo 55 anos. Quase um ano antes do 55º aniversário, pedi uma reunião com TSC e, com pena e emoção, contei de meus planos. Como esperava, obtive compreensão e apoio. 

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Palestra sobre jornalismo político Curso Abril, em janeiro de 1993 (Foto: Dedoc/Editora Abril) © Foto: Editora Abril

Apesar de continuar colaborando eventualmente com a Abril e frequentando muitos de seus eventos – fazer palestra no Curso Abril de Jornalismo em Revistas, por exemplo –, seria com dor no coração que deixaria uma empresa que tanta importância teve na minha vida profissional e também pessoal. Dias depois da data, as diretoras de Redação, acompanhadas do parceiro João Damato, me ofereceram um jantar de despedida, acompanhado de um presente que uso até hoje, valioso material e afetivamente: uma caneta de alto luxo.

 Muitos anos depois, eu voltaria à Abril e à Veja, como pessoa jurídica, para manter um blog, como conto em outro ponto deste SOBRE.

NA MATURIDADE, A WEB

2010

COMEÇANDO DE NOVO, AGORA NA INTERNET

Na fase madura da carreira, após ter exercido todo tipo de funções, vem o desafio irresistível: criar um blog no site da VEJA, tratando dos assuntos que quisesse, da forma que quisesse.

Por convite de Eurípedes Alcântara, diretor da revista, lá fui eu: já sessentão, vi-me em 2010 voltando de alguma forma ao veículo que deixara há quase 30 anos e alçado à total contemporaneidade na profissão, atuando exclusivamente na internet. Ritmo intenso, resposta imediata dos leitores, um recomeço revigorante e divertido – e todo um aprendizado.

Como trabalhar com a ferramenta de edição, que tipo de texto seria mais adequado para um blog, busca de uma linguagem mais informal e de textos sucintos que dessem o devido recado: o julgamento e o número d visitantes do blog é que iriam me mostrar erros e acertos.

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A garota de ouro sem a qual o blog não ficaria em pé – Domitila Becker, minha mão direita (Foto: @Branca Nunes) © Foto: Branca Nunes

Minha mão direita: Domitila Becker, a Domi

Tinha liberdade total de escolha de tema, podia postar material quando quisesse (mas postava todo santo dia), podia trabalhar fisicamente onde fosse melhor (mas gostava muito do ambiente da Redação: ocupava uma estação de trabalho dentro da equipe do site da Veja e a metros da própria – e imensa – Redação da revista).

Não teria me saído bem, contudo, se não fosse pela jovem e talentosa jornalista Domitila Becker, a Domi, minha mão direita: enquanto me ensinava com paciência as diferentes funções e possibilidades da ferramenta de edição, mostrava ter uma memória incrível e grande criatividade, estar muito bem informada sobre a história contemporânea e a política a despeito da pouca idade, escrever bem e rapidamente, e, sempre bem humorada e comunicativa, ainda volta e meia criava ilustrações para os posts e bombardeava o tempo todo links sobre o material no Twitter.

Mais tarde ela começaria uma bela carreira na televisão, passando com brilho por um duríssimo teste de seleção no SporTv e daí seguindo uma carreira de sucesso.

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A Redação do site da Veja vista da minha estação de trabalho (Foto: @Arquivo Pessoal) © Foto: Ricardo Setti

Foram quase cinco anos extraordinários, mais de 10 mil posts publicados, 50 milhões de acessos, 300 mil comentários. 

Uma seleção desse trabalho você encontra neste site.

E AINDA...

N/A

UM PERÍODO FÉRTIL E DIVERTIDO: POR MINHA CONTA 

Ao deixar a posição de diretor da Editora Abril no final de maio de 2001, fiz de tudo um pouco. Como free-lancer, mantive por mais de dois anos uma coluna na quinzenal Exame, então revista de economia e negócios da própria Abril e uma publicação que eu admirava pela correção e o excelente jornalismo.

Tive uma experiência muito rica no começo do efervescente ano eleitoral de 2002, em que Lula despontava como favorito para chegar à Presidência: ser comentarista político e entrevistador do noticiário pela web mantido pelo portal Terra.

Ali conheci ou revi dezenas de políticos de todas as tendências e convivi com colegas de primeira linha como Maria Lins – excelente apresentadora ex-RBS, ex-Band e ex-TV Cultura –, Jaime Spitzcovski, ex-correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e Pequim, José Roberto de Toledo, então jornalista político da Folha e um craque na leitura de pesquisas de opinião, e jovens como a faz-tudo Carolina Vasone, que posteriormente incursionaria com êxito no jornalismo de moda.

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A capa do livro cujo texto é de minha autoria, “Fotografia em Revista” (Foto: @Reprodução)

Aventuras de fotógrafos

Nesse mesmo período sem vínculos com grandes empresas atuei nos sites NO e Nominimo, como está narrado no item “Só entre amigos” deste SOBRE. Escrevi o texto para um magnífico livro, Fotografia em Revista – As melhores fotos em 60 Anos da Editora Abril, sabendo de antemão que pouquíssima gente o leria: ninguém lê texto em livro de fotos, ainda mais com a qualidade das centenas de belas e fortes imagens selecionadas por Thomaz Souto Corrêa, diretor editorial e Vice-Presidente da Editora Abril, um mestre com quem aprendi uma enormidade, e pelo também mestre diretor de Arte Carlos Grassetti.

Uma pena, porque o texto contém uma quantidade cinematográfica de aventuras e desventuras vividas por dezenas de fotógrafos, desde o que clicou para seu primeiro trabalho como modelo uma adolescente chamada Gisele Bündchen até o colega que correu risco de vida sendo metralhado por aviões na Nicarágua, sem contar o profissional que, muito jovem, começou como office-boy no Estúdio Abril e, muitos anos depois, já consagrado, alugaria o mesmo imóvel para ali montar seu próprio estúdio. O texto está preservado também neste site, na área de Livros, Artes e Espetáculos.

Trabalhando com FHC em suas memórias políticas

O ponto alto desse período, contudo, seria trabalhar nas memórias políticas do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, durante seis meses, contratado, com anuência do autor, pela Editora Civilização Brasileira, que lançaria o livro, cujo título seria A Arte da Política – A História que Vivi (Editora Civilização Brasileira, 2006, 699 páginas).

FHC havia escrito uma espécie de grande rascunho sem correções durante suas viagens internacionais, e comecei o trabalho alinhando vários temas e passagens que ele não tratara mas que eu julgava de grande interesse para os leitores: detalhes e histórias de sua campanha eleitoral, como se dera sua instalação, com a mulher, professora Ruth Cardoso, no Palácio do Alvorada, como transcorreu a reunião com os então ministros militares quando decidiu criar o Ministério da Defesa, a cargo de um civil, de que forma se chegou à emenda autorizando sua reeleição, as conversas suspeitas havidas durante o processo de privatização das companhias telefônicas – e por aí vai. 

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Capa do livro “A Arte da Política – A História que Vivi”: as memórias de FHC renderam 700 páginas e venderam 100 mil exemplares

“Oi, Sarney! Você tá bom?”

FHC começou por acrescentar detalhes à mão no material do rascunho impresso em papel, mas aceitou minha proposta de gravarmos perguntas e respostas sobre todos os temas que precisavam constar do livro, e assim foi feito. Sempre em seu amplo apartamento num edifício antigo do bairro paulistano de Higienópolis, com a exceção de um único dia em que trabalhamos na Fundação FHC, no Centro da cidade, gravamos cerca de 14 horas de conversas com material riquíssimo.

Muito discreta e atenciosa, Dona Ruth trazia a cada tarde uma bandeja com dois cafezinhos ao escritório do apartamento. (Mais tarde, o próprio FHC recolhia as xícaras para a cozinha). De vez em quando ele pedia para interrompermos para atender a um telefonema, por exemplo:

–  Oi, Sarney! Você tá bom?

FHC, cavalheiro, não me pedia para deixar o escritório do apartamento durante a conversa, e me reteve quando fiz menção de sair. Assim ocorreu com algumas outras ligações, como as oriundas do senador Antonio Carlos Magalhães.

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Com FHC, no lançamento para livreiros de seu livro de memórias políticas, em março de 2006 (Foto: @Editora Record) © Foto: Grupo Editorial Record

 

Uma ponte entre o presidente da China e Bill Clinton

Uma parte especialmente atraente das gravações: o detalhamento de seus encontros com governantes dos EUA, da Rússia, da China, do Reino Unido e com personalidades como a rainha da Inglaterra e o rei da Espanha.

Um trecho com revelações inéditas é o relato da visita do presidente chinês, Jiang Zemin, a FHC. Dias antes, dois caças chineses haviam interceptado um avião espião dos EUA que, danificado, precisou aterrissar, com seus 22 tripulantes, em território chinês. Os efeitos do incidente prosseguiam nas relações entre as duas potências nucleares e FHC fez para Jemin uma ponte telefônica com o presidente americano Bill Clinton, com quem tinha boa relação. 

“O Kremlin é muito feio”

Fora das questões de política externa, pedi ao ex-presidente que descrevesse os palácios e residências oficiais que frequentara nas visitas – como o de Buckingham, da rainha da Inglaterra, o Kremlin, em Moscou (“é muito feio”), o de La Zarzuela, do rei da Espanha (“é simples, parece um casarão de fazenda”), a casa de campo dos presidentes americanos em Camp David, Maryland (onde esteve com Bill Clinton) e dos primeiros-ministros britânicos, em Chequers (onde se hospedou a convite de Tony Blair).

Minhas tarefas neste empreendimento compreendiam também reescrever boa parte do texto de FHC, de forma a torná-lo mais acessível jornalístico, mas procurando manter seu estilo. Para minha satisfação, FHC não mexeu em uma vírgula, nem nesse material reescrito nem no texto oriundo das gravações e inserido ao longo da estrutura da obra.

Só pediu para cortar uma única palavra – um palavrão extremamente comum, que aparecia em um diálogo na boca de outro político.

O livro, de 700 páginas, vendeu perto de 100 mil cópias.