NÃO, A REDAÇÃO NÃO ESTAVA REPLETA DE MULHERES NUAS
Pouco depois que assumi a direção da revista Playboy, em novembro de 1994, um colega da Editora Abril me perguntou, brincando:
— Como é que é, Setti, muita mulher pelada lá Redação?
Ele trabalhava em Exame, revista de economia e negócios da empresa, e minha resposta foi outra pergunta:
— E vocês, lá na Exame: muito dinheiro rolando pelos corredores?
A disseminada lenda de que a redação de Playboy era um jardim das delícias era inteiramente descabida. Antes de mais nada, porque se considerava qualquer relação pessoal com as garotas fotografadas pela revista como antiética, antiprofissional e fora de questão. Se ocorresse algum caso, demissão imediata (não ocorreu).
Neste terreno feminino de curvas e sinuosidades, era na verdade estressante o desafio de ter, a cada mês, uma capa em branco a ser preenchida com a contratação de alguma estrela capaz de atrair suficiente para a revista fazer bonito nas bancas. Sem contar a enorme dificuldade de lidar com seus agentes, advogados, representantes diversos e… mães. Mães de estrelas, me ensinou a experiência, são muito mais complicadas do que as próprias.
Na primeira passagem pela revista, a alegria de um Prêmio Esso de Reportagem
Minha longa carreira até então transcorrerra basicamente na área de hard news, ou seja, um jornalismo de notícias quentes e relevantes, especialmente nas áreas de política e de assuntos internacionais. A trajetória, porém, havia incluído um ano e meio de intenso trabalho na própria Playboy, como redator-chefe e, depois, editor de reportagens especiais, de modo que conhecia a praticara os fundamentos da revista criada por Hugh Hefner em 1953.
Nesta passagem, tive a alegria de vencer o primeiro e único Prêmio Esso de Reportagem da história da revista, com matéria longa e trabalhosa sobre os bastidores da feitura do Plano Cruzado. Entrevistei cerca de 50 fontes, em São Paulo, em Brasília e no Rio. Curiosamente, antes de me tornar diretor de Redação, recebi a incumbência de apurar uma matéria sobre a queda de todo o ministério do presidente Fernando Collor, em 1992. Um pouco distante do dia a dia da reportagem, algo enferrujado, e após duros dias de trabalho em Brasília, consegui trazer a reportagem, “O dia em que o Ministério implodiu”.
“O dia em que Sarney derrubou a inflação” é reportagem com a qual ganhei o Prêmio Esso de Reportagem na primeira passagem pela revista. © Reprodução
Três anos depois desse trabalho, lá estava eu como diretor de Redação de Playboy. E agradeço aos céus que os exatos cinco anos em que permaneci no cargo (1994-1999) deram certo. Com uma equipe fantástica, procurei injetar jornalismo da melhor qualidade na revista, torná-la não apenas agradável e, como dizia seu slogan, “gostosa”, mas substanciosa e relevante.
De um perfil do ministro Pelé ao Exército brasileiro em Angola
Daí a extensa série de reportagens e entrevistas de peso que publicamos: um brasileiro no “corredor da morte” de uma penitenciária na Flórida, EUA; bastidores das viagens internacionais do então presidente Fernando Henrique Cardoso; o terrível baque sofrido pelo cacique político Antonio Carlos Magalhães com a morte prematura do filho predileto; como viviam, se divertiam e conseguiam ter uma vida sexual jovens submetidos à ditadura de Saddam Hussein, no Iraque, e à ditadura dos aiatolás, no Irã; o último forte da lendária Legião Estrangeira nos confins do Djibouti, no Chifre da África; um perfil minucioso de Pelé como ministro do Esporte; a vida do ex-ministro Ciro Gomes como estudante nos Estados Unidos; como era o trabalho que 1.500 homens do Exército do Brasil trabalhavam na perigosíssima tarefa de desarmar milhões de minas enterradas no solo de Angola, na África, ao longo de tenebrosos 27 anos de guerra civil – e por aí vai.
Atrás de outros temas, jornalistas da revista viajaram não apenas para Iraque, Irã, Djibouti ou Angola, mas a lugares tão diferentes como Paris, Veneza, St. Barts, no Caribe, o Zaire (hoje República Democrática do Congo), Maranello, na Itália, sede da fábrica dos míticos Ferrari, Hong Kong, Lisboa, Londres ou Mônaco.
De minha parte, viajei para várias conferências das edições internacionais da revista, para as quais a sede da revista, em Chicago, enviava uma minuciosa pauta de trabalhos. Nem sempre os colegas estrangeiros a levavam a sério, mas eu procurava fazer com empenho a lição de casa. Houve encontros desse tipo sempre em locais agradáveis – Acapulco, no México, Saint Martin, ilha francesa no Caribe, Rovinj, no litoral da Croácia, e Barcelona.
Revelações nas entrevistas, grandes nomes entre os colaboradores
Nas entrevistas de Playboy Brasil, buscávamos ir aos últimos detalhes de personagens conhecidos de todas as áreas. Foi assim, por exemplo, que o ex-ministro da Fazenda Mailson da Nóbrega revelou que no governo Sarney tinha ordem de priorizar a TV Globo na divulgação em primeira mão de importantes medidas econômicas. Ou que a apresentadora Xuxa contou, pela primeira vez, como foi sexualmente assediada por um importante general durante a ditadura militar, ou que o ídolo Emerson Fittipaldi admitiu ter praticado violência contra a própria mulher.
Procuramos também agregar grandes nomes do jornalismo como colaboradores. Assim, por exemplo, a Roberto Pompeu de Toledo coube entrevistar o grande economista Celso Furtado. Fernando Morais foi à Espanha trazer um perfil do juiz Baltazar Garzón, mundialmente famoso por ter expedido ordem internacional de captura contra o ex-ditador chileno Augusto Pinochet, por crimes como terrorismo internacional, tortura e genocídio. Carlos Alberto Sardenberg entrevistou Mailson. Ruy Castro, de há muito ligado à revista, continuou seu ótimo trabalho em todo tipo de matérias. Escrevera para a revista outros nomes de destaque, como Ivan Angelo, Joaquim Ferreira dos Santos, Lúcia Guimarães e Luiz Maklouf Carvalho.
A revista e o Prêmio Nobel de Saramago
Numa publicação mensal, fazíamos mais de uma reunião de pauta por mês, e pequenas reuniões a cada dois ou três dias para ver o andamento das coisas. No item estrelas, as reuniões eram com a editora de Fotografia, Ariani Carneiro, responsável por quase todas as negociações e contratações incansável, além de produtora dos principais ensaios. Volta e meia eu pedia a presença do diretor de Arte, Carlos Grassetti, no posto desde o lançamento da revista e cujo talento incluía admirável senso estético e um agudo olho clínico.
Planejávamos a revista tanto quanto possível, e isso rendia resultados excelentes. Entrevistamos o grande escritor português José Saramago em seu retiro em Lanzarote, uma das Ilhas Canárias, Espanha. Na entrevista, o editor especial Humberto Werneck perguntou sobre o Prêmio Nobel de Literatura, e o tema percorreria outras perguntas. Pois bem, o Nobel seria anunciado num dia 8 de outubro, uma quinta-feira. Programamos a entrevista para que saísse na edição de outubro que, como sempre, circulava às terças-feiras. Anunciado o prêmio, a revista já trazia demoradas considerações do escritor sobre o Nobel.
Nesta foto apareço numa reunião com a presidente da Playboy americana, Christie Hefner, mostrando a ela mudanças que tínhamos feito na revista. Ela não precisava aprovar, era só para ver (Foto: @Cacalo Kfouri/Editora Abril) © Foto: Cacalo Kfouri
Uma referência: o Ranking das Melhores Faculdades
Tínhamos grande atenção e cuidado com os diferentes serviços que prestávamos ao leitor. Um deles era o Ranking Playboy das Melhores Faculdades do país, produto de um minucioso questionário enviado pelo editor Ricardo Castilho a dezenas de milhares de professores universitários de todo o país. O Ranking se tornou uma grande referência para milhares de vestibulandos de todo o país, e era tão respeitado que o à época ministro da Educação, Paulo Renato, citou-o em entrevistas como o melhor sistema de avaliação do ensino superior que havia no país até o chamado Provão, que seu Ministério instituiu.
Seguíamos a cartilha de Hefner, que mantinha a nudez feminina como principal baluarte da revista, mas fixava a seu redor vários outros pilares – excelente jornalismo, serviço de primeira ao leitor, ilustrações de grandes artistas (até Salvador Dali atendeu a encomendas da revista americana), fotos dos melhores fotógrafos, humor, ficção (lançou ou ajudou a firmar gigantes da literatura dos EUA, como Norman Mailer ou Saul Bellow).
Procurávamos exibir na revista brasileira todos esses pilares, e, no setor ficção, criamos o Concurso Playboy de Contos (não necessariamente eróticos). Conferia um prêmio único, ao vencedor: um automóvel zero km. Um dos júris de nossos concursos seria presidido por Nélida Piñon, à época presidente da Academia Brasileira de Letras.
Nove entre as dez edições mais vendidas
No pilar principal, as estrelas, o trabalho duro e persistente e a sorte nos ajudaram muito. Graças a elas, nos cinco anos em que minha equipe e eu estivemos em Playboy, alcançamos nove das dez maiores vendas em bancas da história da revista.
Tínhamos olheiros em diferentes partes do país – todos voluntários. A Redação era muito antenada e sempre levava às reuniões nomes de garotas com potencial para explodir. A editora de Fotografia, Ariani Carneiro, embora jovem, já ostentava longa carreira na revista, era respeitada e benquista por agentes, empresários e advogados de estrelas, e entre atrizes da TV e do cinema e nomes de destaque em outras áreas, como as passarelas. Essa rede de relacionamentos se revelou um tesouro para a revista.
Quem batia o martelo sobre cada contratação era o diretor de Redação. Conforme o tamanho do cachê, eu precisava realizar consultas com o diretor de negócios do grupo de Revistas Masculinas. Além de acompanhar de perto tudo o que se relacionasse com contratações, eu próprio me envolvi em várias negociações.
De Adriane Galisteu a Débora, militante do MST
Como na de Adriane Galisteu, a grande estrela do 20º aniversário da revista (agosto de 1995), com os bons ofícios do magnífico jornalista Nirlando Beirão, editor especial da revista e amigo da ex-namorada de Ayrton Senna, para a qual redigira o livro com a história do romance entre os dois. Contratei também Marisa Orth, na época no auge da popularidade com a boazuda e não muito inteligente personagem Magda, do semanal de comédia Sai de Baixo, da TV Globo.
E descobri Débora Rodrigues, a então militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, ao ler uma edição do Estadão de domingo, na praia, em meu refúgio no litoral paulista. Ela aparecia numa foto e a reportagem dizia, erroneamente, que Débora trabalhava na prefeitura da cidade de Teodoro Sampaio. Na verdade, ela sustentava os dois filhos dando duro na cooperativa do MST. A edição com Débora na capa alcançou um enorme sucesso e, para minha alegria, transformou para melhor a vida dela.
Que estrela, afinal, mais ganhou dinheiro por posar?
Jamais revelei nem vou revelar os cachês das estrelas, sempre exagerados por alguns jornais e programas de TV e, não poucas vezes, pelas próprias. Mas vou contar qual estrela ganhou mais dinheiro com seu ensaio de capa: devido a um item contratual prevendo participação nas vendas, foi a atriz Marisa Orth.
A capa com Marisa Orth, estrela dos 22 anos da revista, agosto de 1997: resultados excelentes (Foto: @Reprodução) (Arquivo Pessoal)
O primeiro contato com Marisa foi em seu amplo apartamento no Alto de Pinheiros, não distante da sede da Abril na época. Depois disso, em outras duas reuniões que incluíram também sua advogada, conseguimos concordar em um cachê fixo menos vultoso do que ela imaginava mas, inteligente, a atriz viu que a participação nas vendas lhe poderia ser – como foi – muito vantajosa.
Marisa Orth deu trabalho, mas compensou
A forte personalidade de Marisa Orth nos deu trabalho. Ela escolheu um fotógrafo com quem nunca tínhamos trabalhado, em quem confiava por ser seu amigo, e também, na mesma situação, o produtor visual. Quis planejar a linha do ensaio, e não tratou como deveria os profissionais da revista durante o trabalho.
De todo modo, percebemos que suas escolhas e seus planos para o ensaio eram bons, e resolvi arriscar. O resultado não decepcionaria de forma alguma, tanto esteticamente quanto em matéria de resultado de vendas. Somando bancas e assinaturas, passou folgado dos 700 mil exemplares e conquistou o quinto lugar entre as edições mais vendidas em todos os tempos.
Mas muita coisa ainda aconteceria antes de eu deixar a revista, dois anos e meio depois.
Missão cumprida em Playboy, em novembro de 1999 a empresa me convocaria para outra função: executivo editorial. A história está em outro item deste SOBRE.