São Paulo – O rosto já mostra os sinais do tempo, que esmaece o perfil clássico dos patrícios da Roma antiga, de quem ele se esmera por demonstrar que descende. Sua silhueta já é pesada, mas não lhe retira a elegância. Sobretudo, a verve de Eugene Luther Vidal Jr. – aliás, Gore Vidal, o eterno enfant terrible da literatura americana e um dos mais famosos escritores do mundo – em nada se mostra afetada pelos 61 anos.
Com suas duas dezenas de romances, seis peças, seis livros de ensaio, mais de cem roteiros para televisão e diversos êxitos no cinema – entre os quais uma parceria em Ben-Hur e o roteiro de De Repente, no Último Verão -, ele se mostra ainda em plena forma, e esfrega as mãos diante do reboliço que pretende causar com seu próximo romance, Empire, sobre a guerra hispano-americana de 1898, a ser lançado em junho deste 1987.
Em São Paulo, para uma série de conferências patrocinadas pelo jornal Folha de S. Paulo, pela editora Companhia das Letras e pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Vidal acha que valeu a pena abandonar sua magnifica villa à beira-mar em Ravello, na costa sul da Itália, para tomar contato com o Brasil. “Este é um dos poucos países do mundo onde noto um interesse renovado por livros”, disparou.
Ele conversou durante uma hora e meia com o JORNAL DO BRASIL, na suíte do Hotel Ca d’Oro em que está hospedado, contígua à de seu inseparável e discretíssimo amigo de há 35 anos, Howard Austen. A conversa prosseguiu durante uma excursão de Vidal, que tem pavor de elevador, por oito andares de escada rumo ao térreo, onde ele falaria rapidamente a uma emissora de TV. Os principais trechos da entrevista:
JORNAL DO BRASIL – Ser uma celebridade o incomoda?
Gore Vidal – Bem, eu diria que eu já sou uma celebridade de terceira geração. Já fui capa da revista Time, meu pai [Eugene Luther Vidal Sr., diretor da aeronáutica civil americana durante o primeiro governo do presidente Franklin D. Roosevelt] já foi capa de Time, meu avô materno [Thomas Pryor Gore, um dos fundadores do estado de Oklahoma e senador durante 30 anos] já foi capa de Time. Assim, sendo uma celebridade de terceira geração, a pessoa de certa forma dá essas coisas de barato. E se, além disso, você está acostumado a ter uma vida pública, e ainda por cima a sua atividade o torna uma pessoa pública, então você se torna mesmo alguém público. A minha atividade me faz e eu sou uma pessoa pública.
JB – Gente famosa como Jacqueline Kennedy Onassis já lhe foram próximas. Que tipo de parentesco você tem com ela?
Vidal – A rigor, nenhum. Nós fomos bons amigos, tivemos um padrasto comum [Hugh Auchinchloss, empresário, membro da elite do estado de Virgínia, que foi o segundo marido da mãe de Vidal, Nina, e que também foi casado com Janet Bouvier, mãe de Jacqueline]. Mas, após minha briga política com Robert Kennedy, muitos anos atrás, nós paramos de nos ver. Eu passei a achar os Kennedy negativos, e ela, como é uma pessoa correta, foi leal a eles, como deveria mesmo ter sido. Minha meia-irmã, que é irmã de criação dela, a vê com freqüência. Nós dois, portanto, acompanhamos um a carreira do outro.
JB – Ainda sobre amizades e celebridades: quais foram, afinal, as causas reais de sua famosa diferença com Norman Mailer?
Vidal – [Com ar de pouco caso] Ah, já nem me lembro agora… De todo modo, nós hoje temos boas relações. Estivemos juntos recentemente em Moscou, durante o Fórum Internacional por um Mundo Livre de Armas Nucleares, promovido pelo líder soviético Mikhail Gorbachev. Mailer, Pierre Trudeau [ex-primeiro-ministro do Canadá] e eu nos sentamos juntos para ouvir Gorbachev. Além disso, já tínhamos conversado no Royal Theater de Nova Iorque, há cerca de um ano, durante uma reunião do Pen Clube Internacional. Hoje, eu participaria até de uma performance com Norman…
JB – Amizades e inimizades à parte: que escritores são capazes de fazê-lo ir até uma livraria e comprar um livro?
Vidal – Não muitos, hoje em dia. [O italiano] Italo Calvino seria meu favorito entre os escritores da última metade do século. Eu, lia Nabokov com prazer – gostava dele, não tanto como ele próprio gostava de si, mas de todo modo gostava. Em geral, em lia Anthony Burgess – ele escreve a meu respeito há 20 anos, e eu nunca escrevi sobre ele, mas acabo de fazer uma resenha de suas Memórias para The New York Review of Books. Resolvi dar uma mãozinha para a carreira de Burgess [risos]… Leio também Emory Golding, James Purdie… Ah, sim! Graham Greene, é claro. É um grande amigo. Ele estava lá em Moscou também, e em grande forma. Espantou os russos no final de uma noite, recitando Thomas Hardy. Eu recitava John Milton. Os russos diziam, embasbacados: “Ah, cultura, cultura…” O que eles não perceberam é que Greene nunca leu Milton, e eu nunca li Hardy [risadas].
JB – Bem, propomos passar a seu trabalho: é o senhor que escolhe seus temas ou, de alguma forma, são eles que o escolhem?
Vidal – Eu produzo dois tipos de livros: reflexões e invenções. Prefiro as invenções, porque são minhas. E eu ouço suas vozes. A voz de Myra Breckinridge (1968) eu nunca tinha ouvido antes de escrever o livro, ou a de Duluth (1983), que talvez seja a minha invenção favorita. Não sou meu próprio assunto, não escrevo sobre mim mesmo, não sou autobiográfico, o que me faz muito diferente da maioria dos escritores contemporâneos. Já as reflexões são, de alguma forma, escolhidas por mim, como ocorre com minha tentativa de recuperar a história da república americana. Mas eu comecei com Washington, D.C. (1967), que é a última parte da história, e depois voltei a Burr (1972), que é o começo. Acabo terminando as coisas que faço sem saber qual era o caminho original que queria. Dessa forma, para mim, um escritor esquemático é uma contradição em termos.
JB – Falando de romances históricos, por que você, um ateu declarado, foi se interessar pela história do cristianismo como aparece em Juliano (1964)?
Vidal – Não gosto do cristianismo, mas sou originário de uma tradição cristã – meio protestante, meio católica, conheço bem o cristianismo e pude então chegar a Juliano, a Apóstata, durante cuja vida o cristianismo foi inventado. O cristianismo como o conhecemos não tem nada a ver [faz ar de desprezo] com o Velho Testamento ou o Novo Testamento, mas foi o resultado de um certo número de encontros fechados entre um certo número de bispos. Quando eles chegaram à Santíssima Trindade – que é uma obra-prima capaz de acomodar todo mundo, como as frentes de partidos políticos na Itália [risadas] -, disseram a São João Crisóstomo: “Mas como é possível um deus que é uno ser três pessoas?” E ele respondeu: “Oh, é um mistério tão grande! Não ousemos discuti-lo” [risadas]. Isso foi o máximo que eles fizeram em matéria de discussão teológica.
JB – E Duluth (1983), ainda não traduzido no Brasil?
Vidal – Duluth é uma cidade imaginária – não é a Duluth que efetivamente existe nos EUA [em Minnesota; no norte do país] – sobre a qual existe um disco voador permanentemente estacionado, cuja porta nunca se abre. Com o tempo, ninguém mais se importa com ele. Nessa minha Duluth, quando uma pessoa morre, não vai para o céu ou o inferno, mas para uma série de TV chamada Duluth. Acho que a fonte desse romance foi a presidência de Ronald Reagan. Quando o sujeito fica vendo televisão até tarde da noite, vê esse rapaz bem apessoado em filmes adocicados da Warner Brothers de 1940. Na manhã seguinte, o mesmo cara o vê, já um homem maduro, trabalhar no seriado Death Valley Days, e então, no noticiário da noite, o camarada finalmente o vê, já um sujeito muito velho, e ele é o presidente dos Estados Unidos. Qual deles é real? Esse país é surrealista.
JB – Pelo jeito, o senhor mantém plenamente sua opinião de que a democracia americana é “hipócrita e de faz-de-conta”. Mas é mesmo?
Vidal – Sim, porque temos eleições, mas não temos política. E não a temos por que não possuímos partidos políticos. Temos um só partido com duas alas: uma é chamada de democrata, a outra de republicana. Se uma faz bobagens demais, então é a vez da outra. Mas são sempre as mesmas pessoas e empresas que financiam indiretamente ambas. Como resultado disso, 50% do nosso povo não votam nas eleições, e não é por apatia, é por raiva. Eles sabem que não faz a menor diferença. Parece eleição no México, só que sem o charme do México [risos].
JB – Como se classifica politicamente? O senhor já se disse socialista, mais tarde um “radical-liberal”, seja isso o que for.
Vidal – Essas palavras não significam nada. Especificamente, eu sou antiimpério americano – por sinal, meu próximo livro é intitulado Empire. Nós não temos capacidade para isso, cometemos um grande erro após 1945, tornando-nos um Estado Gendarme. Isto destruiu nossa economia, destruiu nossa vida política. Eu gostaria de restaurar a república americana, esmagar o império americano e arremessá-lo pela janela.
JB – O senhor costuma dizer que EUA e URSS são muito parecidos. Com a glasnost da era Gorbachev, o conjunto de mudanças para liberalizar o regime soviético, acha que essa aproximação tende a se acentuar?
Vidal – URSS e EUA poderão no futuro fazer um casamento, como o Japão e a China já estão fazendo, excetuando-se algum acidente nuclear. Veja só: somos países contíguos [o Alasca faz fronteira com a URSS] e, embora racialmente heterodoxos, somos, cada um, dominados pela raça branca, que é minoritária e odiada por todo mundo. Assim, é melhor que nos unamos contra a raiva de um bilhão de asiáticos que estão agora fabricando todos os automóveis, aparelhos Sony e assim por diante. Os russos entendem isso, mas os americanos não. Os russos têm uma educação melhor que a nossa.
JB – Nesse quadro, existe alguma esperança para o futuro?
Vidal – [Resfolegando enquanto sobe a escada do hotel] Sim. Acho que o colapso do sistema monetário internacional vai tornar a guerra impossível.
JB – O senhor está com 61 anos. Tem medo da morte?
Vidal – [Enfático] Não! Não se tem medo da morte! Acho que nenhuma das minhas circunvoluções cerebrais jamais teve medo da morte. Do que se tem medo é de morrer aos poucos. É muito desagradável. Há, naturalmente, o medo da dor física. Mas maior ainda é o medo de ficar gagá. De todo jeito, a morte nada mais é do que a continuação do que ocorria antes do nascimento.
JB – Pergunta final: com sua experiência, seu talento, sua famosa ironia diante do mundo, existe algo capaz de fazê-lo chorar?
Vidal – [Pensativo durante alguns segundos] Ah… Ronald Reagan lendo seu discurso anual ao Congresso sobre o Estado da União [risos]. Isso tem a capacidade de me reduzir a soluços histéricos [risos].
(Entrevista feita por Ricardo Setti, de São Paulo, publicada no Jornal do Brasil em 25 de março de 1987)