19 setembro 1970
Salvador Allende anunciou que seu governo, embora não deva ser marxista, pretende “iniciar a construção do socialismo” no Chile. O que significa isto, e que profundidade terão as medidas econômicas do novo governo? A resposta a essa pergunta talvez seja facilitada por um exame do programa econômico da Unidade Popular, a coligação de esquerda que apoiou Allende, sobre o qual, no Brasil, muito se tem falado e, aparentemente, pouco se conhece.
[Para colocar seu programa em ação, Allende, vencedor da eleição de 4 de setembro passado, mas sem maioria absoluta, precisa tê-la confirmado pelo Congresso, conforme dita a Constituição. Confirmado, o novo presidente será empossado a 3 de novembro deste 1970.]
A Unidade Popular – que tem entre seus cinco grupos três não marxistas – tem o objetivo, claro e cansativamente anunciado, de substituir a atual estrutura econômica do Chile, “terminando com o poder do capital monopolista nacional e estrangeiro e do latifúndio”, segundo anunciam os assessores de Allende e da Unidade Popular. Na “nova economia”, o planejamento terá um papel importante. Os organismos planejadores estarão no mais alto nível administrativo e suas decisões, “geradas democraticamente”, segundo a Unidade Popular, terão caráter executivo.
O processo de transformação da economia chilena, pretendido pela Unidade Popular, deverá se iniciar com uma política destinada a “constituir uma área estatal dominante”. Esta seria formada pelas empresas que o Estado chileno atualmente possui, e mais empresas a serem expropriadas. Como primeira medida, a Unidade Popular pretende nacionalizar as riquezas básicas do Chile, como a exploração do cobre, do ferro e do salitre, “que estão em poder de capitais estrangeiros e de monopólios internos”. Segundo os planos do governo Allende, deverão ser nacionalizadas as seguintes atividades:
1) A atividade extrativa do cobre, salitre, iodo, ferro e carvão mineral (o cobre representa 75% das exportações chilenas, cujo nível atual supera um pouco a casa de um bilhão de dólares. Embora o governo do presidente democrata-cristão Eduardo Frei, agora em final de mandato, por meio do que chamou de “chilenização”, tenha adquirido 51% dos interesses das companhias de mineração, o volume de investimentos norte-americanos no setor chega a 275 milhões de dólares, consideradas apenas as 3 maiores companhias. Quanto ao ferro, que representa 7% das exportações chilenas, a maior jazida do país é explorada pela empresa norte-americana Bethlehem Steel, que possui direitos totais sobre a mineração na região norte do Chile;
2) o sistema financeiro do país, em especial os bancos particulares e companhias de seguro;
3) o comércio exterior;
4) grandes empresas e monopólios de distribuição;
5) os monopólios industriais considerados “estratégicos”;
6) as atividades “em geral”, que condicionam o desenvolvimento econômico e social do pais – produção e distribuição de energia elétrica, transporte ferroviário, aéreo e marítimo, comunicações, produção, refino e distribuição do petróleo e seus derivados (inclusive o gás liquefeito) a siderurgia, a indústria do cimento, a petroquímica (uma grande petroquímica está sendo instalada no Chile com capitais norte-americanos), a química pesada, a indústria da celulose e papel (a maior do Chile tem como principal acionista o ex-presidente conservador Jorge Alessandri). A Unidade Popular assegura que todas essas expropriações se farão sempre “com pleno resguardo dos interesses do pequeno acionista”.
O programa da Unidade Popular prevê também a existência de uma área “em que permanece vigente a propriedade privada dos meios de produção” na economia chilena, compreendendo setores da indústria, da mineração, da agricultura e dos serviços
A Unidade Popular garante que essas empresas, em número apenas, serão a maioria. Seus integrantes sustentam que, em 1967, por exemplo, das 30.500 Indústrias do Chile (incluindo a artesanal), “somente cento e cinquenta controlavam, monopolisticamente, todos os mercados, concentrando a ajuda do Estado, o crédito bancário e explorando o resto dos empresários industriais do país, vendendo-lhes a matéria-prima cara e comprando seus produtos por preços baixos”.
A Unidade Popular assegura, também, que as empresas que integrarão o setor privado serão beneficiadas com o planejamento geral da economia chilena.
O Estado, segundo a Unidade Popular, procurará a assistência financeira e técnica necessárias às empresas desta área, “para que possam cumprir a importante função que desempenham na economia nacional, levando em conta o número de pessoas que trabalham nelas e o volume de sua produção”, diz um economista que assessora Allende.
A Unidade Popular, à qual não interessa agora uma hostilidade completa dos empresários, continua o elenco de promessas, garantindo que serão simplificados os sistemas de patentes e despachos aduaneiros, de contribuições e impostos para a indústria do setor privado, às quais será assegurada, também, uma “adequada e justa” comercialização de seus produtos
Allende adverte, contudo, que nessas empresas deverão ser garantidos os direitos dos operários e empregados, a salários e condições de trabalho justas, e que “o respeito desses direitos será vigiado pelo Estado e pelos trabalhadores da empresa respectiva.
Além do setor estatal, que englobará a maioria das atividades económicas do país, e do privado, o programa de Allende prevê a criação de uma área mista na economia chilena. “O setor misto” seria composto por empresas que combinem capitais do Estado e dos particulares. A julgar por documentos que informam o programa de governo, tudo indica que o sistema tenderá a ampliar-se e a investir sobre a atual área privada, porque a Unidade Popular pretende que os empréstimos ou créditos concedidos pelos órgãos de fomento às empresas da área mista poderão sê-lo de forma a que o Estado seja “sócio e não credor”.
O mesmo será válido para os casos em que essas empresas tenham créditos com aval, ou garantia do Estado, ou de uma de suas instituições.
Reforma agrária
Dentro do programa econômico genérico da Unidade Popular, destaca-se a reforma agrária “concebida como um processo simultâneo e complementar das transformações gerais que se deseja promover na estrutura social do país, de maneira que sua realização é inseparável do resto da política geral”. A Unidade Popular considera que a experiência existente de reforma no Chile – a elogiada reforma empreendida pelo governo Frei – e “os vazios e consequências que dela se depreendem” levarão à reformulação na política de distribuição e organização da propriedade da terra”, segundo as seguintes normas gerais:
1) “A aceleração no processo da reforma agrária, com a expropriação das áreas que excedam a medida máxima (não especificada), que será estabelecida segundo as condições das diferentes zonas. Serão expropriadas inclusive as áreas de cultivo de frutas, de produção vitivinícola e de reservas florestais, sem que o dono tenha direito preferencial a indicar a parte a ser separada de seu patrimônio. A expropriação poderá, se for o objetivo do governo, incluir parte ou a totalidade do patrimônio ativo incorporado das áreas expropriadas (como maquinaria, ferramentas, animais, benfeitorias várias, etc…);
2) a incorporação imediata ao cultivo agrícola das terras abandonadas e mal exploradas (segundo os critérios do governo) de propriedade estatal;
3) os terrenos desapropriados serão organizados, de preferência em forma de cooperativas de propriedade. Os lavradores terão o título de propriedade que asseguram seu domínio sobre a casa e o terreno que lhes for designado e sobre os direitos correspondentes a sua parte ideal da cooperativa. Quando “as condições aconselharem”, se concederão terras em caráter de propriedade pessoal aos lavradores, impulsionando “a organização do trabalho e da comercialização sobre bases de “cooperação mútua”. Serão, também, destinadas terras para criar empresas agrícolas estatais, espécies de fazendas coletivas, como na URSS, “com tecnologia moderna”.
4) em “casos especiais” se concederão terras aos pequenos agricultores arrendatários, meeiros, e empregados agrícolas, “capacitados para o trabalho agropecuário”;
5) a reorganização da propriedade mini fundiária, “através de formas progressivamente cooperativas de trabalho agrícola”;
6) a incorporação dos pequenos e médios proprietários agrícolas às vantagens e serviços das cooperativas que operem em sua área geográfica;
7) defesa da integridade e “direção democrática” das comunidades indígenas “ameaçadas pela usurpação”. A Unidade Popular pretende assegurar ao povo Mapuche, e aos demais indígenas, terras suficientes e assistência técnica e creditícia “apropriadas” (neste, como em outros itens, a Unidade Popular se exime de indicar, por que meios seus objetivos seriam atingidos).
A política de desenvolvimento
A política econômica do Estado, segundo a UP, deverá ser levada adiante por meio do sistema nacional de planejamento econômico e dos mecanismos de controle, orientação, crédito à produção, assistência técnica, política tributária de comercio exterior bem como pela própria gestão do setor estatal da economia. Os objetivos anunciados por Allende são:
1) “Resolver os problemas imediatos das grandes maiorias”. Para isso, pretende transferir a capacidade produtiva do país” dos artigos supérfluos e caros destinados a satisfazer os setores de alta renda “para a produção de artigos de consumo popular “baratos e de boa qualidade”;
2) “garantir a ocupação a todos os chilenos em idade de trabalhar com um nível de remuneração adequado”. Isto, segundo os assessores de Allende, “significará traçar uma política que gere um grande volume de empregos, propondo-se o uso adequado dos recursos do país e a adaptação da tecnologia às exigências do desenvolvimento nacional”;
3) “livrar o Chile da subordinação do capital estrangeiro”. Isto levará o governo a expropriar o “capital imperialista”, a realizar uma política de “crescente autofinanciamento das atividades chilenas, fixar as condições em que opera o capital estrangeiro que não seja expropriado, a buscar uma independência maior na tecnologia, no transporte de mercadorias para o exterior” etc;
4) assegurar um crescimento econômico “rápido e descentralizado”, que tenda a desenvolver ao máximo as forças produtivas, procurando um aproveitamento ótimo dos recursos humanos, naturais, financeiros e técnicos disponíveis, a fim de “incrementar a produtividade do trabalho e de satisfazer tanto as exigências do desenvolvimento independente da economia, como as necessidades e as aspirações da população trabalhadora, compatíveis como uma vida digna e humana”;
5) “executar uma política de comércio exterior visando a diversificar as exportações chilenas, abrir novos mercados, atingir uma crescente independência tecnológica e financeira e “evitar as escandalosas desvalorizações da moeda chilena”;
6) “tomar todas as medidas que conduzam à estabilidade da moeda”; a luta contra a inflação, segundo a UP, se decidirá essencialmente com as mudanças estruturais que o governo Allende pretende fazer. Deverá, além disso incluir medidas que ajustem o fluxo circulante às reais necessidades do mercado, controlem e redistribuam o crédito e “evitem a usura no comércio do dinheiro”; a UP quer racionalizar a distribuição e o comércio; estabilizar os preços; impedir que “a estrutura de demanda proveniente de alto rendimentos” incentive a alta dos preços.
A Unidade Popular diz que a garantia do cumprimento de seus objetivos reside “no controle, pelo povo organizado, do poder político e econômico, expressado na área estatal e na planificação geral da economia”.
Em cada caso concreto, o extraordinariamente ambicioso programa de governo de Allende se limita a indicar diretrizes e soluções gerais, apontando caminhos mas não identificando recursos, nem de onde eles virão. Como forma de dirimir dúvidas e facilitar explicações, um dos principais documentos sobre o programa da UP genericamente afirma que “es éste poder popular el que assegura el cumplimiento de las tareas señaladas”.
Aí estão, pois, alguns dos pontos do chamado “caminho do Chile para o socialismo”. O tempo dirá se este caminho poderá ser executado dentro das “regras do jogo” ou, em caso contrário, se no meio dele, como diz o poemaa, vai haver uma pedra.
Reportagem publicada no Jornal da Tarde, de São Paulo, em 19 de setembro de 1970
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