Em recente artigo que uma vez mais abrilhantou este Espaço Aberto, Fernando Pedreira lamentava a falta de elites representativas no Brasil e lembrava uma grave falha histórica do País, que seria, a seu ver, a falta generalizada do sentimento da cidadania. A lacuna teria sua origem básica no fato de que, entre nós, as revoluções e grandes mudanças costumam ser feitas de cima para baixo. E citava dois exemplos. O primeiro, a Independência, vinda pela mão do próprio colonizador, com Dom João VI aconselhando a seu filho Pedro que pusesse a coroa em sua cabeça, antes que algum aventureiro dela lançasse mão.
O segundo estava contido na célebre frase do matreiro político mineiro Antônio Carlos Lafayette de Andrada em 1930, calcada em outras, semelhantes, uma delas da época da Revolução Francesa: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”. Realmente. Não tivemos sequer “ruptura negociada”, genial denominação dos políticos da Espanha para a transição entre a tenebrosa ditadura do generalíssimo Francisco Franco e a exemplar democracia instalada pelo rei Juan Carlos e seu então primeiro-ministro, Adolfo Suárez.
A História do Brasil é uma sucessão de embromações retóricas das elites, de “costuras por dentro”. O filho do rei colonizador foi quem proclamou a Independência. Sessenta e sete anos mais tarde, tiraram um militar monarquista da cama onde, doente, repousava, e o colocaram em cima de um cavalo para declarar que a monarquia acabara, substituída por uma República gerada nos quartéis. Em 1930, foi um ministro do último presidente da República Velha quem deflagrou a Revolução de 1930. Presidente de fato, presidente indireto e depois ditador, Getúlio Vargas acabaria caindo em 1945 – mas no bojo de uma redemocratização que levou o ministro da Guerra da ditadura, general Eurico Gaspar Dutra, à Presidência da República.
Os governos militares que interromperam o ciclo democrático da Constituição de 1946, como se sabe, lançaram mão de muitos políticos do regime anterior – até ex-ministros do deposto presidente João Goulart integraram a Arena, partido político de sustentação à nova ordem. Mas a suprema ironia foi a Nova República, que para acabar com o Colégio Eleitoral dos presidentes militares biônicos usou o próprio Colégio Eleitoral: todos se recordam – e como! – que a morte do presidente eleito Tancredo Neves acabou empoleirando no Palácio do Planalto justamente o homem que, até meses antes, presidia a mesma Arena que apoiava o regime militar, só que enfeitada com os laçarotes de um programa “social” e rebatizada de PDS.
O presidente Fernando Collor surfou na crista de uma onda de repúdio às velhas formas de fazer política, que aumentava de volume na mesma proporção em que o candidato prometia rupturas e mudanças. Mas, à medida que seu nome se consolidava como o favorito na corrida às urnas em 1989, a ele se foi agregando um enxame de oportunistas cujo único objetivo era continuar no poder, entre os quais luzia boa parte do que há de pior na política brasileira hoje.
Está certo que candidato não se pode dar ao luxo de recusar apoios – mesmo porque Collor teve o cuidado de não estabelecer contrapartidas para a maioria desses afoitos. Sabe-se, também, que o presidente, montado enquanto candidato num partido fictício, o PRN, fez esforços para ampliar sua base de apoio. Começou bem, cooptando o ex-relator da nova Constituição, deputado Bernardo Cabral, e o senador tucano José Ignácio, com boa reputação no Congresso por sua atuação na comissão parlamentar de inquérito que investigara casos de corrupção no governo Sarney.
Tentou uma maior aproximação com os tucanos, via quadros técnicos que ajudaram a hoje ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, a montar o programa de governo, mas esbarrou na forte resistência de alguns de seus líderes, sobretudo o senador Mario Covas [PSDB-SP]. Chegou a lançar uma ponte em direção ao deputado César Maia [RJ], respeitado economista do PDT, numa manobra abortada por um vazamento prematuro de informações sobre seu suposto apoio a Collor. No final, porém, Collor teve de se contentar com o que tinha.
Essa foi uma forte contradição do candidato Collor, e continua, com tintas mais dramáticas, a ser uma contradição do presidente Collor: ele se apoia, no Congresso, em forças que são majoritariamente antagônicas ao tipo de mudanças que pretende introduzir. Não é outra a causa da política do “bateu, levou” no Congresso, definida por esse expoente da velha guarda e dos piores hábitos que é o deputado Amaral Netto [PDS-RJ]. Não são outras as causas de derrotas que Collor tem sofrido no Legislativo, como a recente manutenção da marmelada na comercialização do trigo no País. Sair desse canto onde foi encurralado é o grande desafio para o presidente em 1991.
(Artigo de Ricardo Setti publicado no jornal O Estado de S.Paulo em 27 de dezembro de 1990 sob o título original de “O grande desafio para Collor”)