Em meio à geléia geral de problemas que infernizam o quotidiano dos brasileiros e dos paulistanos em particular, mal foi percebido, e a essa altura foi certamente processado pelo metabolismo da cidade, o pequeno incidente registrado dias atrás no Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera.
Ali, em um dos símbolos mais imponentes da São Paulo moderna – esculpido em pedra por Victor Brecheret e inaugurado em 25 de janeiro de 1953, exatamente um ano antes do quarto centenário de São Paulo –, um energúmeno, ou um conjunto deles, escreveu com tinta spray algumas bobagens incompreensíveis. “Rachi 80 e 8”, diz uma das inscrições. “Russo 80 e 8”, proclama a segunda. Essas imbecilidades, que não significam rigorosamente nada para ninguém, exceto para o ego distorcido de quem pichou, estão custando Cz$ 10 milhões para serem removidas.
Não é a primeira vez que o Monumento às Bandeiras é atacado por vândalos. Há três meses, igualmente a um alto custo, uma empresa especializada já tinha dado duro para remover outra pichação e, há um ano, a mesma companhia realizara uma faxina geral destinada a livrar a obra de Brecheret de outro conjunto de idiotices. O fato de que a Prefeitura de São Paulo não precisará desembolsar nenhum dos cruzados a serem gastos na limpeza – a empresa vai utilizar a Lei Sarney de incentivo à cultura para financiar o trabalho, cujo valor será deduzido de seu imposto de renda – não muda em nada a essência do que aconteceu: um absurdo intolerável.
É claro que se trata de uma gota infinitesimal no oceano de absurdos maiores em que o país do vale-tudo está engolfado. Nem por isso episódios como o do Monumento às Bandeiras devem ser esquecidos, principalmente porque são mero sintoma de um fenômeno que toma corpo dia a dia em todos os pontos do país: como se não bastasse o descaso a que estão relegadas a maioria das cidades brasileiras, as más condições de habitação da população, os transportes deficientes, a segurança precária, a educação e a saúde públicas em frangalhos, existem batalhões de vândalos vigorosamente empenhados em emporcalhar o visual urbano brasileiro.
Não se trata, naturalmente de criticar os criativos grafiteiros que enfeitam com sua arte uma parte de paredes e muros em cidades como São Paulo – como os reunidos no grupo Tupi Não Dá e os continuadores do trabalho do falecido artista plástico Alex Vallauri. Em pontos da capital, como na passagem subterrânea no complexo viário Paulista- Rebouças-Consolação, há alguns exemplos de murais com humor e impacto visual. O problema é que esses são uma ínfima minoria.
Os grafiteiros de hoje, em geral, nada têm a ver com tais artistas, nem são herdeiros dos irreverentes pichadores dos anos 70 – aqueles que partiram para uma poesia literalmente concreta, fazendo de paredes, muros e colunas de viadutos a vitrine para hai-kais irresistíveis: “Hendrix, Mandrake, Mandrix” dizia um que ficou célebre. Outro que marcou época, na mesma linha de celebração alucinógena: “Eternamente/ é ter na mente/ éter na mente”. Quem picha, hoje, quer destruir, enfear, e mais nada.
Em São Paulo, onde já não existem, virtualmente, paredes sem spray, há alguns meses, todo um quilômetro da avenida Nove de Julho – justamente no trecho em que ainda se mantêm antigas mansões das décadas de 50 e 60 – apareceu pichado de um dia para o outro, excetuada, é claro, a mansão branca que abriga a sede do 7º Distrito Naval, permanentemente vigiada por sentinelas.
No Rio, onde a fúria do spray não poupa literalmente nada e onde poucas estátuas públicas ainda são distinguíveis em meio aos esguichos de tinta, recentemente um “comando” de pichadores deu entrevista à imprensa exprimindo seu grande sonho: escalar o Cristo Redentor, no Corcovado, e pichar a cabeça da mais famosa estátua brasileira. Em Brasília, a selvageria disseminou-se por toda parte – a Estação Rodoviária, edifícios comerciais, os mármores do poder e grande parte das placas de sinalização de trânsito da cidade, inclusive no campus da Universidade.
Não é preciso ser sociólogo de porta de botequim para diagnosticar, nessa praga, parte do desencanto geral que assola o país, com a consequente falta de vinculação entre as pessoas e as formas de vida coletiva que as envolvem desde as instituições até as cidades, que antes de constituírem um conjunto de equipamentos pertencentes a todos, passaram a ser consideradas como sendo coisa de ninguém.
Nem é preciso muito esforço para aproximar a agressividade dos pichadores à falta geral de solidariedade e preocupação com o próximo que cada cidadão pode identificar, a todo momento, em seu quotidiano. Sem levar em conta as mazelas maiores e mais dolorosas, só para ficar num único e secundário aspecto – o trânsito –, o fenômeno se espraia, indo desde o generalizado desrespeito à lei, com os consequentes recordes mundiais de acidentes e de impunidade, até a distorção das mais elementares normas de convivência social.
Esta inclui tanto os membros da classe média abastada que, em São Paulo, buzinam furiosamente nos túneis da Rodovia dos Imigrantes a bordo de seus Monzas, Escorts e Santanas, por uma espécie de sadomasoquismo auditivo, como os motociclistas que trafegam com os escapamentos propositadamente abertos – um único deles andando à noite, se fizer um trajeto que vá do Alto de Santana até os limites do Jabaquara, passando pelo centro, é perfeitamente capaz de incomodar, sozinho, 1 milhão de pessoas.
É lógico que esses sintomas do esgarçamento do tecido social no país não se resolvem da noite para o dia. É preciso, todos sabemos, um enorme esforço em educação, todo um empenho na criação de uma consciência cívica e, sobretudo, prática democrática. Mas é preciso, em nosso caso, começar por alguma coisa.
Que tal, no caso dos pichadores – pessoas que investem seu próprio dinheiro na compra de material com o objetivo de vandalizar a cidade – pura e simplesmente aplicar a lei?
(Artigo de Ricardo Setti publicado na extinta Folha da Tarde de 20 de dezembro de 1998_
