Ernest Hemingway com um oficial durante a campanha de Hurtgen, série de batalhas entre americanos e nazistas na área da floresta do mesmo nome, próximo da fronteira da Alemanha contra a Bélgica, nos últimos quatro meses de 1944 (Foto: @Papers of Ernest Hemingway, Photograph Collection, John F. Kennedy Presidential Library)

Trata-se de um livro demolidor de mitos. Alguém acredita que o correspondente de guerra seja um galante bonitão, que dedilha, imperturbável, seu teclado no front, enquanto balas silvam sobre sua cabeça? Pois bem, não é isso. Em compensação, foram correspondentes de guerra até mesmo J. A. Daugherty, do Louisville Journal, e William Furay, da Cincinatti Gazette, que, durante a Guerra Civil americana (1861-1865), sofreram um desastre de trem ao voltar de um combate – e se surpreenderam às apalpadelas no escuro, um tentando roubar as anotações do outro, que julgava morto. Eram também correspondentes de guerra os jornalistas americanos que, na Guerra da Coreia (1950-1953), desinibidamente proclamavam, pistola à cinta, sua gana de “pegar um china”. Felizmente para a classe, foi ainda um colega de profissão – Reginald Thompson, do britânico The Daily Telegraph – quem passou aos leitores barbaridades como essa.

Phillip Knightley, jornalista do Times e do Sunday Times de Londres, lança-se aqui à tão corajosa quanto árdua empreitada de avaliar o trabalho dos jornalistas que cobriram duas dezenas de guerras, desde a da Criméia, que opôs a Grã-Bretanha à Rússia entre 1854 e 1856, até a do Vietnã – passando pelas duas mundiais. O título vem da epígrafe – uma citação feita em 1917 pelo senador americano Hiram W. Johnson, da Califórnia, conhecido isolacionista: “A primeira vítima, quando começa a guerra, é a verdade”.

Para concluir o livro, Knightley realizou um infernal trabalho de pesquisa, que incluiu um mergulho nos 2 milhões de recortes de jornais do departamento de pesquisa do Sunday Times, incontáveis dias de consulta a coleções de revistas e jornais velhos, a leitura de dezenas de livros especializados, entrevistas pessoais com dezenas de ex-correspondentes de guerra e, mesmo, a troca de cartas com diversos deles que não puderam ser contatados pessoalmente, sem contar a digestão de quilômetros de filmes documentários de guerra de todo tipo. O resultado é devastador, em muitos sentidos – e fascinante, em todos.

Lênin assassinado – Talvez seja duro, para um jornalista, encarar o elenco de omissões praticadas pelos correspondentes de guerra no exercício de sua profissão – mas desfiá-las, uma a uma, é com certeza um serviço que Knightley está prestando ao jornalismo e à própria história. Algumas são cômicas, vistas a uma confortável distância no tempo. Em setembro de 1917, por exemplo, Robert Wilton, correspondente do Times na Rússia, achando que nada de grave estava para acontecer, saiu em férias – e a tomada do poder pelos bolcheviques o apanhou em Londres.

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Reed: partidário mas antológico (Foto: @Domínio público)

A Revolução Bolchevique, aliás, foi pródiga em matéria de asneiras de parte da imprensa, em grande medida devido ao wishful thinking do ocidente capitalista. Só entre novembro de 1917 e novembro de 1919, o New York Times noticiou nada menos que 91 vezes que os bolcheviques estavam prestes a cair ou, mesmo, que já tinham caído; por quatro vezes Lênin e Trótski estariam planejando fugir, em três já teriam fugido – e Lênin foi preso três vezes, e assassinado uma, pela imprensa americana.

A imprensa alemã manteve o público tão mal informado sobre o andamento da I Guerra Mundial que, quando finalmente começou a noticiar a verdade – a derrota do Kaiser -, provocou estupefação nacional. Do lado dos Aliados, passaram-se anos depois do final da guerra para que se soubesse, por exemplo, que só na batalha do Somme se perderam 600.000 homens. A imprensa francesa foi espantosamente omissa na divulgação dos massacres praticados pelo Exército na Guerra da Argélia. O que se divulgou sobre os campos de extermínio nazistas durante a II Guerra – só para ficar num aspecto – foi ridículo, em comparação com a imensidão do horror sistemático neles efetivamente praticado pelo III Reich.

Sangue errado – Aqui e ali, na trajetória do trabalho de Knightley, vão desabando personagens-mitos. Para o autor, Ernest Hemingway – talvez o protótipo universalmente aceito do correspondente de guerra – foi medíocre na cobertura da Guerra Civil espanhola (1936-1939), apesar da beleza e pungência de seu estilo e de sua nobreza de sentimentos. Os veneráveis britânicos Rudyard Kipling e H. G. Wells mostraram-se claramente racistas ao escrever sobre os alemães na I Guerra. O melhor que outro ícone britânico, Evelyn Waugh, pôde fazer durante a invasão da Abissínia pela Itália fascista (1935) foi recolher material para seu romance Scoop (“Furo”).

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Edgar Snow com Mao Tsé-tung em 1936: Edgar Snow: documentando o nascimento da China de Mao (Foto: @Edgar Snow Memorial Foundation)

Incansável, Knightley desmascara a adesão de correspondentes à propaganda de governos, o comodismo de muitos, a desonestidade dos que inventaram histórias nunca acontecidas e omitiram fatos relevantes que testemunharam. Esmiúça gente que aceitava subornos de chefes militares ou concordava em espionar para serviços de inteligência. Investe contra as guerras que acabaram sendo “bem cobertas”, como a da Coréia ou a do Vietnã, mas cuja finalidade foi tardiamente questionada pelos correspondentes.

Mas existe, é claro, o outro lado. Pretendendo cumprir seu dever da melhor forma possível, nada menos que 45 correspondentes morreram e dezoito desapareceram no Vietnã. Por ousar ter uma atitude desassombrada sobre o papel da França na guerra contra a Argélia, o francês Jean Daniel, então na revista L’Express, foi alvejado por paraquedistas de seu próprio país, teve metralhada a ambulância que o socorreu e, no hospital onde foi atendido, recebeu uma transfusão com sangue errado – mas sobreviveu.

Já em 1871, tinha havido um jornalista – Archibald Forbes, do Daily News londrino – capaz de arriscar tudo para deixar registrado o final brutal da Comuna de Paris. Outro correspondente do mesmo News, Aloysius MacGahan, em 1877, narrou com tal riqueza o massacre de milhares de búlgaros por tropas turcas que acabou precipitando o início da guerra russo-turca de 1877, desencadeadora da independência da Bulgária. Os relatos do italiano Luigi Barzini sobre a guerra russo-japonesa (1904) são até hoje estudados nas escolas de estado-maior, tamanho seu grau de percepção sobre as modificações qualitativas observadas no conceito de guerra. E como esquecer Dez Dias que Abalaram o Mundo, do americano John Reed – documento jornalístico inigualável sobre a Revolução Russa, apesar do nunca escondido partidarismo do autor? Ou a agudíssima cobertura de Edgar Snow sobre a resistência da China à invasão do Japão e a guerra civil chinesa que terminou com a vitória do Exército Popular de Libertação, em 1949?

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Fidel Castro com Herbert Matthews: o direito de tomar partido (Foto: @The New York Times)

Produzir inquietações – Uma questão fundamental percorre todo o livro: qual é o dever do correspondente de guerra? Seria sua meta a sempre inalcançável “objetividade”? Ou, como quer Herbert Matthews, o grande correspondente do New York Times na Guerra Civil espanhola, seria “optar sempre por preferências honestas, abertas”? Durante a guerra do Vietnã, a maioria dos correspondentes americanos não considerava tarefa sua especular sobre a natureza moral da guerra – enquanto, na Guerra Civil espanhola, a maioria deles considerou ser precisamente este o seu dever.

Como deve, diante de tudo isso, postar-se o correspondente? Quando o livro foi lançado nos EUA, em 1975, houve quem se decepcionasse pelo fato de Knightley não oferecer suas próprias respostas a tais indagações. Mas, além do inigualável levantamento que realizou, talvez esteja aí o melhor de seu trabalho: fazer perguntas, levar à reflexão quem faz jornalismo e história, questionar, produzir inquietações. O que talvez tenha faltado a Knightley – que, ao contrário do que erradamente informa a editora na orelha do livro, nunca foi correspondente de guerra – é serenidade para analisar a imprensa como uma instituição humana tão vulnerável, corruptível e necessária como os parlamentos, os exércitos, os partidos políticos ou os Estados nacionais.

Lamentar-se de que a imprensa britânica da época não tenha percebido que a guerra dos Bôeres (1899-1902) consagrou a guerrilha como tática, por exemplo, não é algo que se possa debitar aos jornalistas como entidade. É um problema que toca a natureza e precariedade do conhecimento humano. E, por sua vez, as deficiências apontadas na abordagem da guerra do Vietnã – para ficar nesta guerra – não impediram que o papel da imprensa tenha sido central, decisivo, insubstituível no sepultamento de uma das páginas mais tristes da história contemporânea. Nada disso, porém, torna o livro menos importante – é o mais completo trabalho sobre as coberturas de guerra que já foi escrito, uma obra que marca época.

Resenha publicada na revista Veja em 8 de novembro de 1978

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