O 3 de outubro já se foi há mês e meio, o 25 de novembro está prestes a completar um mês e a perplexidade continua: o que foi que deu no eleitorado brasileiro para eleger, em primeiro e segundo turno, tantas figuras carimbadas da velha política para os governos dos Estados? O presidente Fernando Collor não é nenhum sociólogo, mas tem ele próprio, em conversa com pessoas próximas, arriscado a opinião de que, após um ano como 1989, em que o eleitorado se dividiu entre duas opções radicalmente diferentes, e novas, na disputa pela Presidência – ele mesmo e o deputado Luiz Inácio Lula da Silva, do PT -, teria chegado a vez da volta do pêndulo e, com isso, veio o voto em políticos conhecidos.
É uma explicação, entre tantas — que vão da desilusão de fatias “participantes” do eleitorado à utilização às vezes obscena das máquinas dos governos estaduais. De todo modo, um ingrediente ainda não suficientemente colocado no caldeirão das discussões é o fato de que a política brasileira tem sido desde sempre um jogo de poucas surpresas. A diferença de agora para velhos tempos é que antes se impedia o eleitor de ter surpresas. Em 1990, foi o eleitor quem tomou a iniciativa.
Como ilustração, vale uma rápida relembrada em alguns dados da História recente: das 23 escolhas presidenciais ocorridas até agora na República – entre eleições diretas e indiretas, excluídos golpes e quarteladas -, a de 1989 foi a segunda em que, rigorosamente, não se sabia quem iria ganhar até a reta final. Tal fenômeno extraordinário só ocorrera uma vez em 101 anos: foi em 1955, quando havia um considerável equilíbrio entre o na época governador de Minas, Juscelino Kubitschek, do PSD, e o ex-tenente de 1922 e então general Juarez Távora, candidato de uma coligação de tinturas udenistas. Em todas as demais escolhas, até as pedras das calçadas de Copacabana, na então capital da República, sabiam já na véspera quem venceria.
Infelizmente, os livros de História não registram os números reais das eleições orquestradas pela República Velha – tempos do coronelismo, do curral eleitoral, do voto de cabresto e a bico de pena. Esses números só são encontráveis nos arquivos do Tribunal Superior Eleitoral, em Brasília. Se pulassem para os bancos escolares, ficaria ainda mais fácil mostrar a farsa que eram as eleições – de fazer inveja ao mais primitivo país da África, desses de partido único e votações de 99,99% para o ditador de plantão —, graças à inacreditável, quase risível diferença de votos que invariavelmente separava os presidentes eleitos de seus concorrentes mais próximos.
O fato de que figuras respeitabilíssimas e patriotas de escol tenham saído das urnas na época não muda a evidência de que não eram disputas para valer. Nosso primeiro presidente civil, Prudente de Morais, por exemplo, derrotou em 1894 seu concorrente mais próximo (o futuro presidente Afonso Pena) por 276.583 votos contra apenas 38.291. Campos Sales, seu sucessor quatro anos mais tarde, massacrou Lauro Sodré por 420.286 votos contra 38.929 – mais de dez vezes a votação do principal adversário, portanto.
Os números são sempre semelhantes na República Velha, embora nada supere a vitória de Washington Luiz contra Assis Brasil, em 1926: 688 mil votos para o “paulista de Macaé” e miseráveis 1.116 para seu oponente. Getúlio Vargas acabaria liderando uma revolta contra o sucessor de Washington Luiz, Júlio Prestes, exatamente baseado em acusações de fraude, exerceu por quatro anos um poder de fato e ninguém teve a mais remota surpresa quando ele próprio foi “eleito” indiretamente pelo Congresso, em 1934, pouco depois de proclamada a Constituição daquele ano. Mesmo na redemocratização, em 1945, nenhum brasileiro minimamente informado poderia dizer, hoje, que havia dúvidas quanto à vitória do marechal Eurico Dutra [ministro da Guerra e candidato óbvio de Getúlio] contra o brigadeiro Eduardo Gomes, cenário que se repetiria em 1950 na disputa do então ex-ditador Getúlio contra o brigadeiro, e na de Jânio Quadros com o marechal Henrique Teixeira Lott, em 1960.
Com o movimento de 1964, a dúvida quanto ao presidente seguinte passou a residir apenas em quem os generais iriam nomear para a ridicularia humilhante do Colégio Eleitoral. E mesmo a vitória de Tancredo Neves contra Paulo Maluf no Colégio como forma de restaurar a democracia foi acertada, peça por peça, muito antes da eleição de fevereiro de 1985: quando o PhD em habilidade política Tancredo deixou o governo de Minas para ser candidato, em agosto de 1984, nem freiras em clausura ignoravam que a parada estava decidida.
Só as eleições de 1989 viriam restaurar a saudável incerteza que a democracia encerra. A campanha já durava virtualmente um ano quando Collor se tornou o favorito, e mesmo assim não se sabia quem iria com ele para o segundo turno. Neste, o cabeça-a-cabeça durou até as horas finais. Vai ver que o eleitorado resolveu, em 1990, descansar do suspense de 1989.
(Artigo de Ricardo Setti publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 20 de dezembro de 1990 sob o título “O eleitor não quis suspense)