Chegou à Câmara [dos Deputados], finalmente, o pedido de licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves [MDB-GB]. Menos de uma hora depois de a rainha Elizabeth II da Inglaterra ter deixado Brasília [rumo a São Paulo, dando curso a sua visita oficial ao país], chegava ao gabinete do presidente José Bonifácio [Arena-MG] o ofício do ministro Luís Galotti, presidente do Supremo Tribunal Federal, juntamente com as peças do processo já divulgadas pela imprensa.
[A foto de abertura deste post mostra a rainha Elizabeth iniciando sua visita ao Congresso, no dia anterior ao em que escrevi este texto. Um toque pessoal: a Rainha entrou no plenário da Câmara dos Deputados por sua porta principal, não havia seguranças e eu, postado ali entre duas pequenas fileiras de pessoas, vi-a bem de perto, a meio metro de de distância, a inevitável bolsa dependurada em um dos braços e os chispantes olhos azuis de alguém então com 42 anos de idade].
O ofício do ministro Galotti é simples, formal. Diz que, dando cumprimento ao despacho proferido pelo ministro relator [Aliomar Baleeiro] nos autos da representação do procurador-geral da República [Décio Miranda], vem solicitar, “por intermédio de Vossa Excelência, o pronunciamento dessa Câmara sobre se concede licença para que o deputado Márcio Moreira Alves responda ao processo de que trata o art. 151 da Constituição e seu parágrafo único”.
Junto com o ofício, o ministro remeteu tudo o que há contra Márcio: a representação dos ministros militares ao presidente da República, o estudo do ministro da Justiça a respeito das imunidades parlamentares, a formulação da denúncia do procurador-geral da República e o aditamento que o procurador fez chegar aos autos depois da adaptação do regimento interno do Supremo ao artigo 151 da Constituição.
Logo que o ofício chegou com os documentos, o presidente José Bonifácio [Arena-MG] mandou fazer três cópias: enviou uma para o líder do governo, Geraldo Freire [Arena-MG, substituindo o titular Ernâni Sátyro, em licença para tratamento de saúde], outra ao da oposição, Mario Covas [MDB-SP], e outra ao principal interessado, Márcio Moreira Alves. O original foi enviado ao presidente da Comissão de Justiça. Como o deputado Djalma Marinho [Arena-RN] estava ausente de Brasília, ficou encarregado de designar o relator [para o caso] o vice-presidente da Comissão, Lauro Leitão [RS], que também é da Arena.
O deputado Celestino Filho [GO], do MDB, é o outro vice-presidente da Comissão e, diante do temporário sumiço do deputado Lauro Leitão na tarde de ontem, pensou-se na hipótese de ele próprio designar relator. Acontece que, pela praxe, Celestino é uma espécie de segundo vice-presidente. Assim, se designasse o relator, estando Lauro Leitão em Brasília, o MDB acabaria violando as regras do jogo, o que, a esta altura, absolutamente não lhe interessa.
Com a chegada do tão esperado ofício e sua remessa à Comissão de Justiça, começaram a surgir os problemas de interpretação jurídica. O principal deles é o referente ao chamado “prazo fatal” para apreciação do pedido de licença. O líder do governo, Geraldo Freire, é de opinião que se aplica ao caso Márcio o artigo 34, parágrafo 2º.
Este dispositivo considera o pedido como aprovado se não ocorrer deliberação no prazo de 90 dias e, depois disso, o pedido constar da ordem do dia durante 15 sessões consecutivas [sem qualquer manifestação da Comissão]. Geraldo Freire diz que o dispositivo é genérico e se aplica a todos os casos de pedido de licença para processar parlamentares, seja ou não por crime comum.

O MDB entende de maneira diversa. Acham os oposicionistas que o parágrafo 2º do artigo 34 só se refere aos casos de crime comum. Na hipótese do artigo 151, parágrafo único – em que Márcio Moreira Alves foi enquadrado – não há qualquer prazo, pois nem o artigo nem o parágrafo fazem remissão a qualquer outra norma da Constituição que se refira a prazos.
Este é, também, o entendimento do presidente da Câmara, José Bonifácio. Assim, se o problema for objeto de questão de ordem, quando da votação em plenário do pedido de licença, é provável que a tese do MDB seja acolhida pela Mesa da Câmara.
Por outro lado, ficou afastada ontem a possibilidade de o governo convocar o Congresso [de forma extraordinária] durante o mês de dezembro, conforme se chegou a anunciar, para apreciar o pedido do STF. Pelo menos, é o que me disse uma fonte das mais responsáveis do Congresso, acrescentando que, para haver convocação no próximo mês, a iniciativa terá de ser do MDB.
O caso Márcio continua presente nas preocupações dos políticos, como se vê. Mas há também políticos preocupados com os 90 por certo do “iceberg” a que se refere o deputado [e ex-governador] Virgílio Távora [Arena-CE], ou seja, com a parte submersa e maior da crise. Nesse sentido, surgiram indicações de gestões “do mais alto nível” que estariam sendo realizadas, incluindo parlamentares, membros do Executivo e homens públicos apartidários.
Tais gestões partiriam do pressuposto de que o país não pode mais suportar um regime de crise em tempo integral e de que é preciso uma ação contra o imobilismo. Argumenta-se que “o que não é possível é não se fazer nada”, e que não se devem atacar as erupções da crise, mas sim o seu conjunto, suas raízes primeiras e mais profundas.
É fluido, é vago, é nebuloso, mas tem toda a aparência de ser concreto. Mais não se sabe, por enquanto.
(Artigo de Ricardo Setti, de Brasília, publicado a 7 de novembro de 1968 no Jornal da Tarde, de São Paulo, sob o título original e super-sucinto de “O início do processo”]