De distantes capitais como Pequim, Washington ou Pretória, grupos de jornalistas acorreram, no último fim de semana, para um cinzento e austero prédio na Rue des Italiens, no centro de Paris.
Ali estavam também cerca de 200 jornalistas e alguns superiores. Todos juntos viveram, no último sábado, 23 de fevereiro de 1980, um acontecimento inédito: a escolha, por voto direto, secreto e universal, de um dos homens mais importantes da França. O próximo diretor do diário Le Monde – o principal jornal do país e um dos mais respeitados do mundo.
Num setor difícil, habitualmente ocupado por grandes empresas, a sobrevivência e sucesso financeiro de uma cooperativa como o Le Monde foi sempre vista como exceção – mas uma exceção sólida e segura – entre os endividados jornais parisienses. Nunca, antes, o poder dos jornalistas havia se manifestado tão claro: eles dispõem, em uma sociedade, de 40% de participação na empresa, com direito a veto em alguns assuntos importantes.
O primeiro diretor, Hubert Beuve-Méry, foi escolhido por Charles de Gaulle [senhor absoluto dos destinos da França por ter sido chefe da Resistência ao nazismo e, depois, presidente do Governo Provisório da República Francesa] para fundar o jornal , em setembro de 1944 [, com a expulsão dos nazistas da França, utilizando o que restava da sede, os móveis, o maquinário, os estoques de papel e os jornalistas da Redação que não haviam atado durante o regime colaboraciosta e traidor de Vichy, cujo presidente, o Marechal Pétain, foi fuzilado]; ao sair, em 1969, Beuve-Méry escolheu o atual diretor, Jacques Fauvet, e a redação o aceitou. Desta vez, a situação mudou: Fauvet deve sair em 1982 e quatro candidatos se apresentaram tornando necessária essa inédita votação.
Meia democracia – Até o fim da tarde do sábado, 23 de fevereiro, quando as urnas foram recolhida, era impossível saber quem venceria. O redator-chefe André Fontaine, 58 anos, o mais velho e moderado, era visto como leve favorito.

Seu adjunto Jacques Decornoy e o editor internacional Jacques Amalric se apresentavam como “solução mais jovem” (41 e 43 anos, respectivamente). E Claude Julien, 54 anos, editor-chefe do Le Monde Diplomatique, edição mensal separada, era a opção mais à esquerda.
Nenhum deles, nos vários contatos com a redação, propôs alguma mudança importante na carrancuda linha gráfica do jornal, sem fotografias ou qualquer atrativo visual, nem em sua linha editorial opinativa, algo à esquerda. Tampouco surgiu proposta para tornar menos desconfortável a reunião diária das 8 da manhã, em que os editores discutem durante meia hora – de pé – as notícias do dia.
Essa democratização de poder, contudo, esgota-se na votação. Uma vez eleito, o sucessor de Fauvet disporá, como ele, de poderes para atuar sem qualquer consulta às bases. E as condições para exercer a função, sem dúvida, são excelentes: enquanto o France-Soir e o Figaro estão perdendo leitores e o L’Aurore só não fechou por ter sido incorporado ao Figaro, a cooperativa do Le Monde vem obtendo lucros constantes.
A tiragem do jornal chega hoje perto dos 800.000 exemplares, 100.000 dos quais vendidos fora da França. E o prestígio do Le Monde continua sólido: ele é, hoje, a fonte que o próprio governo francês consulta, com freqüência, para formular sua política exterior.
ATUALIZAÇÃO
[Nenhum dos candidatos mencionados no texto acima foi eleito. A surpresa foi a escolha de André Laurens, 64 anos, veterano repórter e analista político do jornal. Permaneceu muito pouco tempo no posto — um ano –, devido a desentendmentos internos sobre a gestão e o conteúdo editorial do jornal.

No ano seguinte, 1981, seria escolhido André Fontaine, 57, até então editor-chefe e principal editorialista de Le Monde, que dirigiu o jornal até 1989. O Monde não é brincadeira: Fontaine não era apenas jornalista, mas um respeitado historiador e especialista em relações internacionais, com foco principal na Guerra Fria. Trabalhava no jornal desde os anos 50 e era visto como uma figura de intelectual profundo mas acessível e, ao mesmo tempo, alguém que transmitia a ideia de estabilidade.]
(Reportagem de Ricardo Setti, de São Paulo, publicada originalmente na revista VEJA a 27 de fevereiro de 1980)