Homem de convicções e coragem, de correção pessoal reconhecida até pelos adversários mais ferrenhos, o presidente da CUT, Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, viu-se nos últimos dias diante de uma maré de insinuações, ataques diretos e acusações, inclusive no plano pessoal, que surpreenderam tanto pela virulência quanto pela origem, já que vieram, todos, justamente da faixa do espectro político a que ele próprio se filia: a esquerda.

Existem várias explicações para o assédio patrulheiro que desabou sobre a cabeça de Vicentinho em razão da atitude que, em nome da central sindical, adotou nas negociações com o governo sobre a reforma da Previdência. 

Constatou-se, é claro, a ciumeira do PT por ver mudar de tom alguém que se acostumou a ter como aliado virtualmente incondicional — e ainda por cima no debate de uma questão em que o partido se julga dono da verdade. Existem os interesses corporativos do funcionalismo, que fica de pêlo eriçado ante a mera possibilidade de discussão de seus privilégios de aposentadoria (que, aliás, o projeto do governo vai em boa parte manter, às custas de toda a sociedade).

Não se pode esquecer, ainda, o exército de dirigentes sindicais que se recusa a abandonar velhas e demagógicas bandeiras que rendem votos, embora condenem o sistema previdenciário brasileiro à inviabilidade. E qualquer análise do episódio ficaria capenga se deixasse de lado o infernal cipoal de correntes ideológicas, tendências políticas, grupelhos sindicais e ambições eleitoreiras que pululam no seio da CUT, entredevorando-se em disputa de espaço.

Tudo isso já estaria de bom tamanho para infernizar a vida do bom Vicentinho e vem sendo suficientemente debatido nos últimos dias. Mas há um aspecto da questão que foi minimizado e que talvez se sobreponha aos demais. Ele não se refere às pequenas concessões que Vicentinho, em nome do mais elementar bom senso, acabou fazendo. A principal delas foi a aceitação do tempo de contribuição à Previdência como critério básico para a aposentadoria dos trabalhadores da iniciativa privada, substituindo o conceito vigente de “tempo de serviço”, haja o trabalhador contribuído ou não. (O que é muito bonito como justiça social, mas não deixa as contas fecharem no fim do ano). 

Houve outras, como a pequena, pequeníssima poda que se acordou em princípio aplicar sobre as mordomias dos funcionários públicos federais, que poderão perder, por exemplo, o direito, único no planeta, de passar a ganhar mais ao vestir o pijama do que embolsam na ativa. (É por essas e outras que o valor médio da aposentadoria do funcionário federal é de 1.800 reais, enquanto o dos trabalhadores da iniciativa privada, esmagadora maioria dos aposentados, mal chega a 125. A conta do funcionalismo, naturalmente, é engordada pelo gasto com a obscena aposentadoria dos marajás, inclusive magistrados e os próprios parlamentares, que, mesmo com a reforma da Previdência, continuará exatamente como está. É por essas e outras, também, que os gastos do governo pularam de menos de 19 para mais de 40 bilhões de reais por ano do período Collor para cá. Com apenas metade da diferença aplicada em programas sociais, o Brasil passaria por uma revolução em três anos). 

As pequenas concessões de Vicentinho esquentaram o caldo, mas grave, mesmo, aos olhos da patrulha, foi o crime político que ele cometeu. Vicentinho, na verdade, passou de destemido herói sindical a Grande Satã porque negociou com ministros do governo, foi ao Palácio do Planalto e — suprema e terrível ousadia — não apenas apertou a mão do presidente Fernando Henrique Cardoso como ainda, de certa forma, fez o que se poderia chamar de troca pública de confidências com FCH, ao queixar-se com bom humor, em sua fala diante de um grupo de ministros, burocratas e sindicalistas, mas olhando para o presidente, do espancamento político a que foi submetido: “Apanhei como cavalo bravo”. O problema de Vicentinho, em suma, é que ele concedeu o reconhecimento diplomático ao governo FHC.

Não se trata de exagero de retórica. Aceitar plenamente as regras do jogo democrático e praticá-las ainda é algo que não foi suficientemente incorporado a nossos usos e costumes. Basta recordar eventos de nossa história recente. Não vamos falar do vexame que foi em 1985 o general João Figueiredo sair pelas portas dos fundos do Palácio do Planalto para não dar posse ao presidente José Sarney. 

Lembremos casos do país redemocratizado, como o episódio, familiar sobretudo ao (e)leitor carioca do Rio, envolvendo, em 1987, o então governador Leonel Brizola. Como se sabe, sempre que pode, Brizola ostenta suas ligações com a civilizadíssima e européia Internacional Socialista e os laços pessoais e políticos que teve ou tem com personalidades do calibre dos ex-presidentes da França, François Mitterrand, e de Portugal, Mário Soares, do ex-chanceler alemão Willy Brandt, do ex-primeiro-ministro sueco Olof Palme ou do premier espanhol, Felipe González.

Mas tais modelos só servem quando convêm. Quando se trata, por exemplo, de coexistência educada de contrários, Brizola escolhe outros caminhos. Mitterrand digeriu, galhardamente, cinco anos de “coabitação política” (como se diz na França) com um primeiro-ministro conservador, o hoje presidente Jacques Chirac. Soares viveu a mesma situação com o então primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva durante longos dez anos. 

Brizola preferiu uma versão de polidez à “socialismo moreno”, não passando em 1987 o cargo de governador do Rio a Wellington Moreira Franco, seu sucessor legitimamente eleito, e por sonoríssima margem que superou a casa do milhão de votos. (Esqueçamos o desastre que foi o governo Moreira e a triste figura política em que ele se transformou — hoje o deputado relator da reforma administrativa que inventa alternativas delirantes e demagógicas em vez de encarar de frente um dos problemas cruciais do país. Ele  ganhou limpamente aquela eleição). 

Na eleição presidencial de 1989, encerrada a apuração do segundo turno, o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, homem de inegável afabilidade pessoal e, concorde-se ou não com suas idéias, uma das vigas mestras da redemocratização do Brasil após o regime militar, não reconheceu a vitória de Fernando Collor. Limitou-se a dizer que, “do ponto de vista numérico”, Collor tinha sido o ganhador. Não importa o que viria depois — as roubalheiras do caso PC, os escândalos, o impeachment do presidente. O fato é que Collor, goste-se dele ou não, teve em 1989 mais votos que Lula e ganhou, sem fraudes ou trambiques eleitorais. 

  O presidente Fernando Henrique, que venceu em 1994 de forma arrasadora e espetacular ainda no primeiro turno, tinha razão quando, há algumas semanas, reclamou dos setores que ainda se recusavam a aceitar os resultados da eleição. Sem querer, estava dando a chave de interpretação para o foguetório ideológico que ocorreria com o episódio Vicentinho.

Entre os dirigentes da CUT, que é uma das cinco ou seis maiores centrais sindicais do mundo, e mesmo dentro de alguns dos partidos políticos de oposição, há um considerável contingente de quadros que não têm compromissos com a “democracia burguesa” brasileira, que a desprezam e que trabalham contra ela — embora eles próprios liderem forças políticas aptas a fazerem convenções em espaços não maiores do que um apartamento quarto-e-sala. São dirigentes sem-voto, que ostentam mais força política do que seguidores. 

Muitos dos patrulheiros ideológicos que dirigem seus lança-chamas ao presidente da CUT escondem, sob argumentos sindicais, esta verdade límpida e cristalina: eles não aceitam o presidente e o governo saído das urnas.

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