Eugênio Bucci é autor do melhor livro sobre ética na imprensa já publicado no Brasil — Sobre Ética e Imprensa (Companhia das Letras, 2000, 245 páginas). Professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) de São Paulo, com mestrado e doutorado, é de longe um dos melhores jornalistas que conheço.
Além disso, é intelectual titulado, de peso, sério e profundo — e nem por isso menos acessível. Por essas e outras, recomendo enfaticamente este seu artigo, publicado na rica seção de Opinião do Estadão, sob o título “A globalização da ética de imprensa”:
O fechamento do tabloide inglês The News of the World, que vendia 2,6 milhões de exemplares, deu a largada para a principal discussão sobre ética de imprensa no mundo globalizado. A partir de agora está claríssimo: a conduta dos órgãos encarregados de informar a sociedade é uma pauta supranacional.

Não é apenas o capital que viaja em segundos de um continente para outro. Não são apenas as massas trabalhadoras que migram clandestinamente para disputar empregos em terras estrangeiras. Não é apenas a indústria da diversão que alcança simultaneamente os olhares de povos distantes entre si. Agora ficou evidente: a credibilidade dos órgãos jornalísticos não é meramente um assunto doméstico, ela floresce e sucumbe na arena global.
Já veremos por quê. Antes façamos uma recapitulação sumária do que se passou.
Esse jornal, The News of the World, tinha 168 anos de idade. Desde 1969 pertencia à News Corporation, o megaconglomerado internacional, com faturamento na casa dos 3 bilhões de dólares ao ano, controlado pelo australiano Rupert Murdoch. Vivia de bisbilhotagem, luxúria e algum sangue. Vivia muito bem, apesar do lento declínio em circulação, que vinha de décadas. Sua fórmula editorial ia dos aposentos da família real em Londres às estripulias transoceânicas dos astros do show business, passando por bestialidades a granel.
Há poucos anos, seus métodos “jornalísticos” passaram a ser contestados. No site da Press Complaints Commission – instituição encarregada da autorregulamentação da imprensa britânica – há queixas de escutas clandestinas contra ele. Na esfera policial também houve investigações. Um jornalista do News of the World, Clive Goodman, chegou a ser preso em 2007.
Tudo isso não é novo, portanto. Mas até então se acreditava que os crimes registrados eram desvios individuais, casos isolados, como se diz. Agora se viu que não. Os crimes são mais sérios e muito mais numerosos. Segundo apontam as investigações, seriam mais de 4 mil os telefones grampeados pelo jornal. Estamos falando, portanto, da industrialização do grampo. Gerenciar milhares de escutas clandestinas é uma operação de monta: requer equipes treinadas, orçamentos bem planejados, estruturas próprias. Os inquéritos vão dando conta de que o News não era uma redação jornalística – era uma agência de arapongas assalariados.
Descobriu-se mais. Além de grampear celebridades – o que já constitui uma ilegalidade inaceitável, que se situa fora do campo do jornalismo -, o jornal teria invadido celulares de pessoas comuns, que não dependem do estrelato para inflar seus cachês. Grampeou parentes de soldados mortos. Grampeou até a adolescente Milly Dowler. A garota estava desaparecida – soube-se depois que já tinha sido assassinada – quando detetives contratados pelo News apagaram mensagens de seu celular, o que causou nos familiares a impressão de que ela ainda estava viva. Com isso o caso ganhou uma sobrevida – e, em consequência, a cobertura do caso, liderada pelo News of the World, também ganhou sobrevida. Lucrativa.
Essas revelações estarreceram a Inglaterra. O tabloide era um serial killer da privacidade de gente comum. Anunciantes caíram fora. Os protestos se generalizaram. Murdoch fechou o semanário, na tentativa de estancar a sangria de reputação e de salvar um objetivo maior: ele queria comprar a totalidade da BSkyB, um poderoso grupo de canais a cabo do qual já é sócio. A tentativa não deu certo.
O quadro só se complicou. Andy Coulson, ex-diretor do News of the World e porta-voz de David Cameron, o primeiro-ministro britânico do Partido Conservador, até janeiro de 2011, foi preso na sexta-feira passada. Só foi liberado sob fiança. O ex-primeiro ministro trabalhista Gordon Brown diz que também foi grampeado. A crise do tabloide virou uma crise no Parlamento. Políticos de correntes várias passaram a contestar em público as pretensões do dono da News Corp., a tal ponto que, ontem mesmo, Murdoch anunciou que desistiu da compra da [gigante de TV por assinatura] BSkyB. Ele está acuado. Na Inglaterra e no mundo.
Aí é que entram as razões da internacionalização desse debate. O escândalo dos grampos virou notícia no mundo todo porque o conglomerado de Murdoch está no mundo todo – e se ele faz por aí o que parece ter feito em Londres, isso diz respeito a todos nós.
Ontem [quarta-feira, 13] pela manhã a Rádio CBN noticiou em primeira mão no Brasil que o senador democrata Jay Rockefeller pretende investigar o grupo de Murdoch nos Estados Unidos. Um dos jornais que mais se destacaram na cobertura dos bueiros da News Corp. – depois do diário inglês The Guardian – é o americano The New York Times, que vem sofrendo uma concorrência frontal do Wall Street Journal, comprado, em 2007, por ninguém menos que Murdoch.
Na Newsweek desta semana, o jornalista Carl Bernstein – celebrado autor, ao lado de Bob Woodward, da série de reportagens sobre o escândalo de Watergate, publicadas no Washington Post, que levaram a renúncia de Richard Nixon, em 1974 – lança a pergunta que só ele pode fazer: será que esse escândalo não é o Watergate de Murdoch?
O sentimento geral foi bem sintetizado pela revista The Economist de quinta passada: “Se ficar provado que os diretores da News Corporation agiram contra a lei, eles não deveriam mais comandar nenhum jornal ou estação de TV. Deveriam estar na cadeia”. Isso vale para qualquer país. No mundo de hoje, as práticas dos tabloides ingleses viraram tema do interesse público internacional.
Sim, isso mesmo. Existe um interesse público internacional, ainda que difuso, rarefeito, pouco institucionalizado. Não são apenas o capitalismo selvagem e a especulação financeira que rasgam fronteiras. As preocupações humanitárias em geral e a ética jornalística em particular também se globalizam como valores universais. É a isso que Murdoch terá de prestar contas. E com isso ele talvez não contasse.
(Post de Ricardo Setti, de São Paulo, publicado originalmente a 15 de de julho de 2011 no blog que o autor manteve no site da revista VEJA entre 2010 e 2015)
9 Comentários
Ricardo, eu não escrevi críticas direcionadas a um veículo de Mídia específico. - Citei Jornais, outras revistas semanais, telejornais, e até um programa de variedades, que usaram de forma absurda e irresponsável o exercício da livre expressão. - Realmente reconheço que vc está certo em não postar críticas a seus colegas colunistas da Veja, uma vez que eles tem seus blogs. Quando citei episódios envolvendo a Veja, não o fiz em desafio às regras desse espaço. Mencionei por que achei importante e construtivo visualizar erros cometidos aqui também. - Quanto ao colaborador de Veja, cuja postura critiquei, não inventei coisas. Não invento histórias, não falo mentiras. O que eu disse é baseado nas informações que ele mesmo expõe nos artigos, inclusive sobre sua vida pessoal. Qualquer leitor atento que o tenha lido durante os últimos anos, saberia também. - Quanto ao respeito e a civilidade, nunca faltei com eles aqui. Mesmo quando discordo, nunca recorro a palavrões e xingamentos. - Voltando ao cerne do que postei, reafirmo que não devíamos nos alarmar tanto com Murdoch. - Devemos sim, é prestar atenção aos "murdochs" daqui. Eles exitem, são influentes, e os leitores estão vendo. - É incomodo aceitar isso ? - Mais incomodo ainda é ver veículos de Mídia que a gente ama e respeita, se prestando a papéis cada vez mais esquisitos. - Temos sim na imprensa brasileira, muitos episódios que fariam Muyrdoch corar de vergonha.
Assunto complexo, polêmico, diria que um divisor de águas, a invasão de privacidade através de meios escusos é um crime pavoroso, ninguém tem o direito de "bisbilhotar" a vida de ninguém dessa forma, principalmente, para fins comerciais, o grande pecado foi que concederam aos processos juridicos êsse poder, que foi transferido para o privado, resultando nessa metamorfose medieval. A sociedade precisa de regras, claras, que não deixe dúvidas, atravessou a linha, precisamos punir, invalidar os efeitos gerados e ressarcir os danos causados. É hora de um basta nisso, hoje em dia até os confessionaários dos padres estão grampeados. A Imprensa em geral e o Jornalista no particular, não precisam de regulamentação de conteúdo, necessitam sim de punição, para os casos de abusos, leviandades, injúrias, calúnias, mentiras, armações, que os INSTRUMENTOS sejam acionados, com forte PREJUIZO PECUNIAR, ai o processo se normaliza, pois a pior dor é aquela que sangra no bolso, com a perda de dinheiro e patrimônio. Maquiavel deveria ter sido preso, São Fracisco de Assis foi desvirtuado, é hora de tolerância zero na questão de invasão de privacidade, só uma pessoa tem o direito de conhecer o nosso intimo, mesmo os pensamentos fora dos padrões, pois a êle foi dado o direito de julgar com perfeição.
Você quer criticar VEJA, mesmo que não cite nominalmente a revista (e precisaria?)? Escreva para seu diretor de Redação, veja@abril.com.br Você quer criticar blogueiro de VEJA, mesmo que evite citar seu nome? Poste seu comentário em seu respectivo blog. Você sabe que não é ético nem correto, de minha parte, abrigar aqui críticas a colegas que têm seus próprios blogs. Você quer inventar histórias sobre um colaborador de VEJA a respeito de cuja vida não tem a menor ideia? Vá escrever em outro lugar. Você quer criticar a mim, a minhas ideias, a meu blog -- escreva à vontade aqui, desde que não use ofensas, palavrões ou desqualificações pessoais. Seu comentário foi suprimido tendo em vista as regras de civilidade do blog. Veja o link http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/tema-livre/amigos-depois-de-mais-de-8-meses-de-blog-e-40-mil-comentarios-nao-havera-mais-asteriscos-comentarios-com-linguagem-inconveniente-serao-deletados-vejam-minhas-razoes-e-as-regras-para-comentarios/
Por favor, corrigindo: Ricardo, o artigo é importante, e analisa de forma crua e fiel o escândalo que vem abalando a reputação.... Bom fim de semana
Ricardo, o artigo é importante, e analisa de forma crua e fiel ao escândalo que vem abalando a reputação dos jornais de Murdock em todo o mundo. Sim, pois os métodos não podem ser compartilhados por outros jornais de sua propriedade? É uma pena que aventureiros como ele, mais interessados no resultado financeiro do que na nobre missão de bem informar e comentar, tenham se espalhado pelo mundo da mídia. Com meus cabelos brancos e muito tempo dedicado a leitura de jornais e revistas reconheço de longe essa gente. Costumo ler o que respeito, por isso venho sempre a esse blog onde mesmo discordando de você em muitas ocasiões, sempre encontrando seriedade, bom jornalismo e, mais importante, atenção democrática à todas as opiniões. Infelizmente essa não é a regra. Um abraço
Amigo Ricardo, Não tive nenhuma intenção de atacar o caráter do autor. Só estou apontando uma derrapada muito infeliz, que poderia ter sido evitada praticamente sem esforço. Ouvir a caixa de mensagem alheia é uma operação realizada facilmente por um homem só, não exige nenhum aparato criminoso, nenhuma quadrilha. O autor só precisava ter ido além da manchete.
Amigo Ricardo! O artigo peca (muito!) pela desinformação. O autor leu as manchetes e já saiu concluindo tudo antes de ler qualquer reportagem. Os telefones não foram grampeados, não houve monitoramento de conversas e, portanto, não havia gerenciameto de milhares de escutas clandestinas, operação de monta, equipes treinadas, orçamentos bem planejados nem estruturas próprias. Os jornalistas ouviam as caixas de mensagem. Não deixa de ser banditismo em momento algum, mas não chega perto de ser uma operação de grampos. Um pulo no site da BBC já esclarece tudo: http://www.bbc.co.uk/news/uk-11195407 . Amigo Ed, o autor NÃO é de fazer isso, é um jornalista seríssimo e responsável.
Ao Ricardo Setti, Repassamos para vocês, caros amigos: A questão é muito mais séria do que pensamos.Esses fatos da conjuntura nacional de plenos escândalos, são tudo fichinha. Não se esqueçam de que nós temos 60% do território da Amazônia. E que esta é a reserva extratégica em termos globais, isto é de interesse internacional, com particularidade das nações hegemônicas. A ONU, como se pressupõe, faz parte do trabalho sorrateiro, desse papel ridículo contra nós brasileiros. Quando, por trás da Nova Ordem Mundial, há um Lobby Internacional, o grupo dos Illuminatis, com fortes interesses na Amazônia, daí as reservas para índios. Estando o Brasil sobre o controle desse grupo, com o projeto de nos impor uma Sociedade Ditatorial e Anti-Cristã, com a liberação do Direito de Aborto, do Casamento Gay, etc. O Brasil é a bola da vez. Quando será uma nação em ebulição e de quinta categoria, sob comando dos PTralhas. E, como tudo indica, que o Lula e a Dilma Rousseff cumprem órdens do referido grupo, dos Illuminatis. Att. Madeiro
Olá, Setti, Não demorou muito e este assunto virou o álibi para a turma do PT falar novamente sobre regulamentação da "mídia". O artigo de José Dirceu no seu blog usa o assunto para defender revisões na nossa política de atuação jornalística. Acredito que nossas leis seriam suficientes para punir os crimes cometidos pelo "News of the World". Imagino que também sejam igualmente adequadas as do Reino Unido. Seria interessante conhecer a opinião de Bucci a respeito desta obsessão de Zé Dirceu em regular nossa imprensa. Tomara que, neste assunto, seu lado ético e profissional fale mais alto que o seu lado militante. E que tenha sido este o espírito que norteou este seu texto. Caro Luiz, já há tempos o Eugênio não é mais militante de partido político, e seu lado ético sempre prevaleceu -- hoje mais do que nunca. Até onde eu sei, porque somos amigos, ele é a favor da autorregulação da mídia, sem interferência alguma de qualquer poder público. Abração