As urnas continuam a fazer jorrar lições e material para reflexão e, em meio a essa torrente, a tragédia do PSDB certamente não é o tema principal a ser debatido. Nem por isso ele deve ser deixado de lado, pelo que contém de significativo para os usos e costumes brasileiros.
Os tucanos, como se sabe, saem [deste 3 de outubro de 1990] com queimaduras graves na plumagem. Pelos cálculos ainda provisórios de sua própria direção, vai perder nada menos que 23 deputados federais em sua bancada de 60, e um senador de um contingente de dez. Seu desempenho nas eleições para governador foi um desastre: dos sete candidatos próprios do partido, apenas um emplacou — Ciro Gomes, do Ceará, assim mesmo um tucano atípico, por ser cria pessoal do governador Tasso Jereissati, que aliás é uma solitária voz no PSDB a apoiar o presidente Fernando Collor. O PSDB tem alguma chance de chegar ao segundo turno em um Estado, o Piauí, com Wall Ferraz, já que no outro em que isso é matematicamente possível – Minas Gerais – tudo indica que só um empurrão pessoal de Deus possa garantir a continuação de Pimenta da Veiga na luta.
A enxurrada de problemas dos tucanos acabou arrastando, assim, suas três mais importantes lideranças nacionais – o senador Mário Covas, campeão brasileiro de votos em eleições estaduais, lançado num apagado terceiro lugar na disputa pelo governo de São Paulo, seu companheiro de Senado José Richa, em situação semelhante no Paraná, e o ex-prefeito de Belo Horizonte Pimenta da Veiga. De quebra, o presidente nacional do partido, ex-governador Franco Montoro, de longa e densa carreira política, foi massacrado na disputa pelo Senado em São Paulo, não chegando a 10% dos votos.
Não faltam diagnósticos perfeitamente coerentes e lógicos para explicar a atuação dos tucanos. Em São Paulo, por exemplo, Covas comportou-se durante todo o tempo como alguém que cumpria uma obrigação ao candidatar-se. Além disso, mostrou-se sempre refratário a uma assessoria política e de marketing profissional e moderna. Um só episódio é suficiente para ilustrar essa atitude. A horas tantas da campanha, o senador recebeu uma pesquisa de opinião que mostrava, sem sombra de dúvidas, que os poucos eleitores que assistiam ao horário eleitoral gratuito pela televisão não estavam prestando atenção ao conteúdo da fala dos políticos. Seriam atingidos mais por mensagens emocionais, por clips de campanha. “Sou um político, não um produto”, vociferou o candidato, encerrando o assunto e mantendo sua linha de didatismo político na tela. Factualmente, não seria difícil descobrir situações semelhantes em outras candidaturas tucanas derrotadas.
Quem ficou em cima do muro e nem revelou voto no segundo turno de 1989 foi Quércia
Tais questões, em maior ou menor grau, já foram expostas pelos próprios tucanos e pela mídia. Há, porém, um aspecto do drama tucano que não encontrou espaço para discussão. É que, além das razões especificamente eleitorais dos resultados das urnas, pairaram sempre sobre o PSDB durante a campanha – mas também desde muito antes dela – as exigências do velho maniqueísmo brasileiro.
Esse traço cultural primitivo não permita que se aceitem, em nossa latitude, o matiz, os meios-tons, a sutileza, a atitude política complexa. As escolhas, por aqui, ainda precisam ser entre o bem e o mal — não existem os territórios intermediários. O “Ame-o ou deixe-o”, de triste memória, não deixou de ser uma criação que levou em conta esse traço de alma.
A campanha presidencial do ano passado [1989], levou a extremos a tendência. Curiosamente, os tucanos acabaram carregando o rótulo de “indecisos” por algo que foi, para todos os efeitos, uma decisão, e uma decisão que, como se vê agora, custou caríssimo – a de apoiar, no segundo turno da eleição presidencial de 1989, o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva. Para o senador Covas, é uma ironia adicional ser tido como indeciso, já que ao longo de toda a sua carreira ele sempre pagou um preço, justamente, por sua tendência a concentrar decisões e tomá-las indo até os mínimos detalhes, como ocorreu, por exemplo, durante sua passagem pela Prefeitura de São Paulo, de 1983 a 1986.
A complementação da ironia fica por conta do fato de que, em São Paulo, quem mais bateu na tecla da “firmeza” de seu candidato e quem mais insistiu na “indecisão” de Covas foi o governador Orestes Quércia, que este sim — permaneceu, se analisado do ponto de vista maniqueísta, solidamente postado em cima do muro no segundo turno de 1989, não só não apoiando Collor nem Lula como também jamais revelando em público, até hoje, em quem votou. [ATUALIZAÇÃO: anos depois deste artigo, num programa de televisão em que era entrevistado como candidato do PMDB à Presidência, ele, em resposta a pergunta minha, admitiu que votou em Collor.]
No ano passado, os tucanos acabaram apoiando Lula por temor da patrulha ideológica. Havia condições de não se optar por Lula nem Collor do ponto de vista partidário. Bastaria – só por hipótese – explicar à opinião pública que os programas de governo de ambos não se coadunavam com o do PSDB, que o PSDB tinha restrições tanto a um quanto a outro, que iria para a oposição no caso de um governo Collor por causa de tais e quais pontos de seu programa, e também ficaria vigiando um eventual governo do PT por não gostar dos aspectos x e y de suas propostas.
De todo modo, faria uma oposição seletiva, aprovando as medidas que, conforme a plataforma do partido, beneficiassem o País. A decisão sobre se votar e em quem votar ficaria, então, a cargo do eleitorado dos tucanos, que – diria a direção partidária – o PSDB considerava suficientemente maduro para decidir por si, sem indicações da cúpula.
Algo nessa linha seria perfeitamente razoável, ocorre nos países civilizados e acabaria encontrando eco nos eleitores. Faltou ao PSDB coragem e discurso político para enfrentar a questão em 1989.
