Eles são os campeões da Constituinte: ninguém, entre os 12 mil candidatos que disputaram a preferência do povo no dia 15 de novembro passado, conseguiu êxito tão espetacular.
O deputado Mário Covas, 56 anos, engenheiro, ex-cassado e ex-prefeito de São Paulo, abocanhou 8 milhões de votos em sua corrida rumo ao Senado pelo PMDB, tornando-se o político mais votado da história do país até hoje.
Luís Inácio Lula da Silva, 41 anos, metalúrgico, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e presidente nacional do PT, passou a barreira dos 600 mil votos em sua corrida para a Câmara praticamente sem gastar dinheiro e sem aparecer no horário gratuito da televisão – e ainda assim foi o deputado mais votado do Brasil nestas eleições.
O JORNAL DO BRASIL reuniu esses dois grandes vencedores na sucursal de São Paulo para antecipar um pouco do que serão os debates na futura Assembléia Constituinte, e verificou que, embora pertençam a partidos diferentes, eles concordam sobre muitas questões nacionais.
Lula, fumando muito, de camisa esporte, calça jeans e tênis sem meias, e Covas, um inveterado mascador de cigarros apagados desde que sofreu um enfarte há quatro meses, de camisa preta Yves Saint-Laurent sem gravata e blazer branco nas costas da cadeira, por causa do calor, criticaram a reforma do Plano Cruzado.
Os dois também consideram lento o ritmo da reforma agrária da Nova República, defendem um mandato de quatro anos para o presidente José Sarney e, entre outros pontos de contato, não acreditam na hipótese de um retrocesso institucional. O debate:
JB – Que papel um imagina que o outro terá na Assembléia Nacional Constituinte?
Covas – Respaldado por uma votação enorme, caracterizada do ponto de vista político, o Lula traduzirá na Constituinte, significativamente, os sentimentos de setores sindicais, setores trabalhadores, tendo em vista toda a sua história e todos os seus antecedentes. De forma que eu acho que ele será um excepcional contraponto a certos setores da Constituinte, que chegaram lá por caminhos completamente opostos.
Lula – Eu acho que o Mário Covas sabe muito bem que os 8 milhões de brasileiros que se levantaram num determinado dia de novembro lembrando do nome dele vão obviamente fazer uma cobrança maior durante o processo de discussão da Constituinte. Digo de coração aberto que o Mário é uma das pessoas com quem a gente conta para fazer a Constituição mais progressista possível, que não retrate os anseios de uma classe, mas de toda a sociedade. Eu acho que o Mário tem consciência de que ele será uma ponte inevitável entre os setores mais progressistas e os mais conservadores. Ele vai se cansar de ser procurado (riso), não apenas por mim, mas por outras forças partidárias, e sabe que vai pesar nos ombros dele a responsabilidade de brigar muito interna e externamente para se fazer a constituição mais democrática possível.
JB – Com essa votação que tiveram, os senhores conseguem dormir direito?
Lula – A responsabilidade não me incomoda. Tenho certeza de que não vou trair nenhum dos objetivos pelos quais fui eleito. Vou cumprir aquilo que me foi determinado pelos companheiros de partido e pelos que me elegeram. Só uma noite eu perdi o sono, foi no sábado da eleição. Por mais que você tenha certeza de que vai ser votado, fica sempre a incógnita da abertura da primeira urna. Quando abriu a primeira urna, e eu tive 165 votos, aí eu falei: estou tranqüilo, vou pra casa.
Covas – Me perdoem a expressão retórica, mas na realidade se dissesse que não perdi o sono com o peso dessa responsabilidade eu estaria mentindo. Pesa, e muito. E não é porque eu duvide que vá ser fiel aos compromissos assumidos, não. É simplesmente porque não sei se, em cada instante, o cumprimento dos compromissos assumidos será suficiente para satisfazer uma densidade eleitoral deste tipo.
JB – Qual será sua primeira iniciativa ao assumir a cadeira na Assembleia Nacional Constituinte?
Covas – Vou ter de me defrontar na análise de cada artigo, de cada parágrafo, com a preservação de três princípios básicos: democracia, liberdade e participação popular. Acho que tenho uma contribuição pessoal a dar. Passei pela prefeitura de São Paulo, a quarta cidade do mundo. Você tem aqui o perfil do país exacerbado dentro da cidade de São Paulo, o que leva à discussão de temas do tipo reforma urbana, reforma tributária, problemas que nasceram de uma experiência pessoal. Mas você tem toda uma bagagem política, e eu, em particular, vivi 20 anos de arbítrio. Então, se você me perguntar um ponto específico, eu não tenho uma única proposta específica.
Lula – A primeira coisa que todo mundo vai brigar é que a gente tenha um regimento interno da Constituinte sem nenhum resquício de autoritarismo. Nós, enquanto partido, vamos levantar quatro coisas pra início de briga, para deixar os cabelos de Ulysses Guimarães, se ele for o presidente da Constituinte, um pouco mais brancos (risos). Primeiro, garantir o televisionamento dos debates, nem que seja só pelas TVS educativas. O segundo ponto é garantir essa coisa do referendo popular (sobre a nova Constituição). Seria a forma mais eficaz e mais democrática de fazermos com que o povo fosse determinante na nova Constituição. Outra coisa que acho que vai ser motivo de briga, no bom sentido, é garantir logo no início que a Constituinte seja realizada sem que haja nenhum instrumento de exceção neste país. Ou seja; revogar leis como a Lei de Segurança Nacional. E, por último, vamos brigar para que os senadores (biônicos) eleitos em 1982 não tenham direito a voto.
JB – A que cada um atribui a expressiva votação obtida a 15 de novembro que o transformou num campeão brasileiro de votos?
Covas – Olha, uma coisa de que eu posso falar sem falsa modéstia: minha vida está marcada por uma lealdade muito grande a uma instituição partidária. Eu acho que o povo brasileiro exige do político esse tipo de atitude. O povo reserva para si até o direito de mudar de opinião sobre em quem vai votar, mas não admite que o político o faça. Ele exige do político a lealdade, as virtudes simples que o povo tem. O povo é sério, tem caráter, é trabalhador, leal, e exige do político esse tipo de virtude. Além disso, e até onde as pessoas me dizem, usei bem, corretamente, o horário gratuito do PMDB na televisão e, de resto, tive a oportunidade de passar pela prefeitura de São Paulo, que deixei há um ano. Acho que meu sucessor (o ex-presidente Jânio Quadros – N.R.) me ajudou bastante também na atual eleição… (risos). Mas eu advogo para mim uma certa coerência de natureza política que o povo reivindica como exigência.
Lula – Sinceramente, acho que essa votação expressiva – apesar de não ter podido ir à televisão, não ter podido fazer uma campanha baseada em cartazes ou coisa parecida se deve ao fato de ser a figura mais conhecida do partido aqui em São Paulo. A vinculação destes últimos 10 anos junto à classe trabalhadora, perdendo e ganhando, apanhando e batendo, sabe, acho que fez com que houvesse por parte do eleitorado um reconhecimento. Eu cansei de pedir ao povo em reuniões para dividir o voto – a mulher vota em um e o marido em outro do PT, mas não teve jeito. Todos esses anos não deixei de ir às portas das fábricas, do mesmo jeito que fazia quando era presidente do sindicato. Hoje mesmo voltei lá e até brinquei com os companheiros: Olha, tantos anos que a gente passou aqui brigando, fazia 40 dias de greve para ganhar 2% de aumento, e agora eu vou tomar posse em fevereiro, e já vão dar 110% de aumento pra mim, sem fazer greve… (risos). Foi isso que me elegeu. Não posso dizer que foi a imprensa, porque durante todo o processo eleitoral ela não me deu uma única colher de chá, a não ser aquela matéria do JORNAL DO BRASIL sobre a festa do meu aniversário… Ali, teve uma entrevista do JB.
JB – Qual o futuro que os senhores imaginam para o Plano Cruzado depois das últimas reformas? Há salvação?
Covas – Há futuro para alguns princípios do Plano Cruzado, como o combatente à inflação, para premiar quem trabalha e penalizar quem especula. Quanto às medidas mais recentes, acho que foram anunciadas de forma intempestiva. Falo, particularmente, como alguém que foi eleito com a votação que recebeu. Preferiria que as medidas fossem anunciadas antes das eleições ou muito depois. O eleitor se sentiu traído, porque votou numa determinada circunstância que mudou no dia seguinte, e eu sinto um enorme constrangimento com isso. Há medidas que não consegui entender: como é que vai funcionar o gatilho, como ficam os aluguéis? Sou nitidamente contrário à modificação do IPC, mas em outros aspectos acho que há coisas altamente defensáveis. No instante em que se aumentam em 100% dos carros, por exemplo, não se fez nada, apenas se pegou o dinheiro frio do ágio para dar a ele uma destinação que se imagina boa.
Lula – Desta vez, ao contrário do anúncio do congelamento dos preços em fevereiro, não havia nenhuma necessidade de sigilo, de baixar mais um decreto-lei. A teoria de que você congelando os preços possibilita um poder de compra maior, que vai gerar uma demanda maior e, conseqüentemente, gerar mais empregos, é a correta em qualquer sistema capitalista moderno. Mas, na medida em que o governo não permitiu que setores da sociedade, especialmente os sindicatos, controlassem a fonte de produção, o plano ficou vulnerável. Reconheço que houve um boicote por parte do grande poder econômico ao Plano Cruzado. E houve uma omissão do governo em punir esses setores. A argumentação do Funaro de que está utilizando a política do “Robin Hood”, tirando do rico para dar para o pobre, é falsa. Quer dizer que o pobre não toma pinga? Dizer que cerveja é supérfluo nesse país é brincadeira. O rico não fuma cigarro nacional, não bebe cachaça. Toma cerveja importada. Então, na medida em que isso não é colocado na taxa de inflação, recai sobre o pobre. Eu não sei por que o governo não conversa com o movimento sindical, não chama a CUT e a CGT, senta numa mesa e fala: Olha, estou a fim de fazer uma coisa, o que vocês acham? Houve uma pisada no tomate. Acho que pode haver conserto, se houver discussão política. Porque, por trás de tudo isso, tem dois buracos: o buraco da dívida interna e o buraco da dívida externa.
JB – Se houvesse eleições para presidente no próximo ano os senhores veriam alguma chance de votar no mesmo candidato?
Covas – Salvo o fato de que o Lula mudar de partido – o que acho difícil – e eu mudar de partido também – o que também acho difícil – nós provavelmente não votaremos no mesmo candidato.
Lula – Desde 1982 tenho brigado para que haja eleições em dois turnos. A única forma de o Mário e eu votamos no mesmo candidato seria se tivesse dois turnos. Cada um votaria num candidato e, no segundo turno, poderíamos caminhar para um candidato único.
JB – O que os senhores acham do aumento [salarial] de 110% que os parlamentares quiseram aprovar para eles mesmos?
Covas – Por todas as razões, acho que não era o momento adequado para rever os subsídios dos parlamentares. Seria sensato uma medida do tipo vincular o aumento dos deputados e senadores ao mesmo gatilho que reajuste o dos trabalhadores brasileiros.
Lula – Num momento em que a sociedade está esperando o gatilho desenferrujar, trabalhador fazendo greve por 5% de aumento, aprovar 110% para os parlamentares parece até provocação para jogar o povo contra a instituição.
JB – Os senhores que tanto combateram um outro constituinte paulista, o ex-ministro Delfim Netto, como pretendem conviver com ele no Congresso?
Lula – Eu tenho motivos de sobra para ter bronca política e pessoal do Delfim. Mas admito inimigos inteligentes. É capaz que ele tente virar oposicionista, já está até falando de pobre na televisão… (risos). Penso que a gente terá brigas homéricas, porque ele será um novo Maluf no Congresso Nacional.
Covas – O Delfim será um adversário na maioria das questões. Representa uma faixa que não é grande, mas tem muita expressão. Ainda bem que ele chega lá com direito a um único voto, e não com voto proporcional ao que representa a força econômica que, afinal, sua candidatura traduz. Tê-lo na Constituinte é ter um setor adicional, sem o que a representação seria desproporcional, reconheço. Sob esse aspecto, não acho ruim a presença dele, não.
Lula – Não tem dúvida. Ele vai enriquecer os debates.
JB – Que sentimentos os senhores alimentam hoje em relação aos que os cassaram e prenderam durante o regime militar? E acham possível um retrocesso institucional?
Covas – Diria que tem gente no país que sofreu bem mais do que eu. A violência da cassação se abateu mais em quem votou em mim do que em mim, propriamente. Tive minhas prisões, meus IPMs. Mas, durante a minha cassação, pude me dedicar mais à tarefa de sustentar a família, trabalhar na minha atividade profissional. O passado para mim tem sentido indicativo, como lição, para que certas coisas não se repitam. Mas não como fonte de inspiração de revanches. Quem tem compromissos com esta nação tem de ter, necessariamente, compromissos com o futuro. Por isso, não temo um retrocesso. Acho que, de ponto de vista político, a nação caminha ascendentemente. É evidente que a vida política de uma nação está sempre associada à vida econômica. Temos várias nuvens escuras nesse horizonte do ponto de vista econômico e social, mas não vejo nenhum setor hegemônico da sociedade brasileira que pudesse ameaçá-la de um retrocesso, um golpe.
Lula – Quando saí da cadeia em 1980, constatei que a situação da classe trabalhadora era a mesma de quando tinha sido preso. Portanto, não tinha adiantado nada me prender. Sinto mais pena do que raiva das pessoas que me cassaram. Jamais faria com eles o que fizeram comigo. Gostaria de derrotá-los como os derrotei. O Murilo Macedo (ministro do Trabalho no governo do General João Figueiredo – N.R.) jogou todo o peso possível para que eu não voltasse ao sindicato, e acabei voltando ainda na gestão dele. Hoje, o Murilo Macedo na vida política é um joão-ninguém. Quanto a um retrocesso, em 1964, eu me lembro que lá na fábrica os mais velhos achavam extraordinário o fato de o Exército governar o país, tal era a credibilidade das forças armadas. Hoje, lamentavelmente, elas não têm essa credibilidade. Vai demorar alguns anos para elas recuperarem o prestígio. O momento político e a consciência nacional não permitem que ninguém seja desaforado a ponto de prever um retrocesso do ponto de vista da força. Não acredito e não vejo condições, pela importância política do Brasil, pelo que representa no cenário mundial.
Mandato presidencial
Covas – Quatro anos.
Lula – Quatro anos.
Sistema de Governo
Covas – Por enquanto, presidencialismo. Eu sou parlamentarista, mas acho que nós precisamos de consolidação dos partidos políticos para chegar lá.
Lula – Se eu tiver de escolher entre os dois, acho que o parlamentarismo é mais democrático. Eu concordo com o Mário em que é preciso antes ter partidos fortes para se chegar ao parlamentarismo.
Duração da Constituinte
Covas – Não acho que deva ser marcado um prazo. Devemos fazer um calendário de trabalho, mas penso que não se deve ultrapassar o prazo de um ano.
Lula – Acho que colocamos tanta responsabilidade nas costas desta Constituinte que não podemos demorar. Um ano é tempo suficiente para elaborar uma boa constituição.
Aborto
Covas – Defendo a legalização nas circunstâncias em que haja violência sexual, por exemplo.
Lula – É preciso partir para um processo de educação a ponto de que o estado assuma a responsabilidade pelos abortor necessários. O que não pode mais acontecer é em nome da proibição, permitir que milhares de mulheres morram em clínicas clandestinas como acontece hoje.
Drogas
Covas – Se eu pudesse, jogaria algo do que o país tem em dinheiro para combater a droga. Defendo um empenho muito grande de toda a sociedade no controle das drogas, tanto do ponto de vista legal como operacional, combatendo as causas e não os drogados.
Lula – Essa questão também é muito mais de educação do que repressão. Se nós tivermos um processo de educação que oriente nossa juventude a respeito da droga, enfrentaremos o problema muito melhor do que hoje, com a perseguição da polícia.
Reforma agrária
Covas – Não acho que esteja sendo feita num ritmo satisfatório. O problema é de prioridade. Faltam recursos. E está falando aqui alguém que coloca o problema da reforma urbana em pé de igualmente com a reforma agrária. Ainda assim, reivindico uma reforma agrária mais acelerada do que a atual. Acho que é possível ler isso no voto que acabamos de ter na eleição.
Lula – Só pelo fato de, no Brasil, 7 milhões de pessoas deterem em suas mãos 370 milhões de hectares de terra, dos quais apenas 20 milhões são plantados com alimentos, 150 milhões são pastos e 200 milhões não utilizados para nada, penso na necessidade urgente de se promover a socialização da utilização dessa terra ociosa. O Brasil é o único país da América Latina que nunca fez uma reforma agrária, a não ser a das capitanias hereditárias.
(Entrevista publicada no JORNAL DO BRASIL em 30 de novembro de 1986)