Uma imensa multidão abarrotando uma área mais ou menos igual a da praça João Mendes, em São Paulo, e mais as duas pistas de uma grande avenida – principal da cidade – ao longo de três quarteirões: mais dezenas de milhares de pessoas espalhadas por ruas e quadras num raio de cinco quarteirões, um oceano de faixas, cartazes e bandeiras, um conjunto de poderosos alto falantes. No meio de tudo, um palanque onde uma série de homens bem-vestidos de boa aparência desanca o governo durante quatro horas e vinte minutos.
Para os leitores brasileiros que não se lembram mais do que se trata, isto é um comício — da Democracia Cristã em Santiago do Chile [o maior partido de oposição ao governo do presidente socialista Salvador Allende.]
O comício encerrou a campanha da DC para as eleições legislativas de domingo, e terminou às dez e vinte da noite de ontem, 2 de março deste 1973. As eleições são importantíssimas para governo — que não tem maioria na Câmara e no Senado — e para a Democracia Cristã, maior partido da oposição, majoritária no Congresso. [Dos 50 senadores, 30 são dos vários partidos da oposição, sendo a DC, com 13 senadores, a maior bancada oposicionista. Na Câmara dos Deputados, de 150 integrantes, a oposição dispõe de 88 cadeiras, 55 delas ocupadas por democratas-cristãos).

Dependendo do tamanho das bancadas que elege, a DC poderá exigir mais ou menos do socialista Salvador Allende, que venceu as eleições sem conseguir maioria dos votos e, assim, como prevê a Constituição, é o Congresso que vai confirmar ou não a escolha popular.
O comício de encerramento da DC é uma grande e barulhenta festa. Há marchas satíricas e gritos patrióticos, há palavras impublicáveis gritadas em coro, há lindas garotas bem-vestidas e velhas mestiças que carregam sacolas, há operários e professores, donas de casa e rapazes cabeludos circulando de motocicleta – um retrato vivo do que é a DC, que tem um leque de apoios que vai do povão à classe média e parte dos mais ricos.
Há barraquinhas que vendem pão com linguiça frita e pasta de abacate, Coca-Cola, gasosa de mamão, bandeiras do Chile e programas impressos da Democracia Cristã. Há senhoras muito dignas e sóbrias que o cansaço leva a se sentar nas calçadas, cadetes da Força Aérea que namoram debaixo de palmeiras, fotógrafos e cinegrafistas nacionais e estrangeiros, turistas inteiramente perplexos. E políticos, naturalmente.
Trata-se, como disse, de um comício eleitoral, fato que reúne no Chile as pessoas que se interessam de alguma forma pelo que se passa com seu país. (Há exceções, naturalmente, como a do turista argentino a caminho da Austrália, onde buscará trabalho, que, indiferente aos milhares de bandeiras e cartazes à sua frente, consegue perguntar ao jornalista estrangeiro: “que partido é este?”).
Estamos na confluência do Cerro Santa Lúcia com a alameda Bernardo O’Higgins, no coração de Santiago do Chile. A multidão se espalhou em toda a volta e pelo Cerro acima — onde se apinha em paredes, muros e torres de um conjunto que lembra um velho castelo medieval. O Cerro Santa Lucia permite que muita gente aprecie o comício do alto e de longe.
O comício foi marcado para às seis da tarde. Mas o chileno, embora goste de política, não é de ferro. Já são 18h40 e chegou uma décima parte do total que haveria no auge do comício — entre 100 e 150 mil pessoas, talvez mais, talvez menos (como saber?). De todo modo, uma enorme multidão. Difícil contestar os partidários mais inflamados da DC que falavam em meio mihão de pessoas.
Os alto-falantes transmitem o refrão de uma canção: “Vamos a luchar por la libertad/ vamos a luchar/ por la dignidad”.
19h40 (E o comício foi anunciado para as 18). O locutor anuncia a presença de um líder camponês. Os aplausos são moderados. Os alto-falantes espalham por toda a região umas das músicas preferidas pela oposição, “Se acuerda, don Salvador?” [lembra-se, senhor Salvador?”]. Lá pelas tantas, diz a letra: “Se acuerda como era Chile antes del 70 don Salvador / Viviamos felices, no con tanta preocupacion / teníamos carne y leche / y no existia el interventor”.

O povo acompanha com palmas e movimentos de corpo lembra muito remotamente festivais no Maracanãzinho com as diferenças que não precisam ser assinaladas.
19h50. Chega o primeiro astro de grandeza maior queimado de sol, terno e gravata, parecendo 10 anos mais novo que sua mulher, o ex-candidato presidencial em 1970. Radomiro Tomic, é ovacionado pela multidão. Ele acena e sorri, mas não diz nem vai dizer uma palavra. (Tomic é considerado um caso raro na política chilena: líder da esquerda da DC, ex-candidato à presidência há apenas dois anos, desapareceu do primeiro plano da batalha ideológica e não é candidato a nada. Dizem que seu silêncio o está liquidando junto aos democratas-cristãos, de qualquer tendência). O povo, porém, aplaude e grita “Viva Tomic/Viva Frei”
20 horas. Aplausos para o velho senador Ignacio Palma, presidente do Senado, que não tentará a reeleição. Ele sobe na tribuna e acena sorrindo. Como os outros, vai sentar-se numa das cadeiras da fila frontal do palanque, a um metro da massa humana.
20h30. Chegam mais pessoas. Há garotas de 15 a 18 anos, com blusas garantindo que “Amor es votar en la Democracia Cristiana”.
Outra senhora — há muitas, muitíssimas no comício — segreda ao jornalista estrangeiro: o Partido ordenou que todos se movimentem muito para que haja a impressão de muita gente, de massa. O Partido assim, consegue tornar insuportável a permanência de jornalistas e outros corpos estranhos no meio do povo. Ondas de pessoas vão e vem, empurrando, dando cotoveladas, golpes com cartazes e pisões. O pessoal não reclama: todos riem e brincam.
20h45. O comício propriamente dito. O senador Renan Fuentealba, presidente da DC, fala – os ataques de praxe ao governo, as promessas e as denúncias. Fuentealba, magro e grisalho, ar profissional, se expressa corretamente, mas não entusiasma. O povo quer ouvir Frei, mas se vibra quando o senador fala em Allende: há uma vaia ensurdecedora. O senador é interrompido por “Frei sí, otro no”.
21h10. Agora, é o senador José Musalém. Ele tenta uma terceira vaga oposicionista pela província de Santiago. Disputando com o coronel reformado Alberto Labbé, do Partido Nacional, da oposição marcadamente de direita. Se a oposição não conseguir eleger mais de dois senadores (o total de Santiago é de cinco), Musalém ou o Coronel estarão fora, porque o ex-presidente Frei é vaga garantida. Musalém consegue despertar o público falando da carestia. E não se esquece, também, de falar nas 27 leis sociais de sua autoria, hoje em vigor. Mas o povo ainda quer Frei.
21h30. Frei, afinal. Contados no relógio, quatro minutos e 20 segundos de aplausos e ovações. Sua figura imponente, de perto de um metro e noventa, domina a multidão. Sem tropeçar em uma palavra, sem hesitar, fazendo as pausas nas horas certas. Frei é um excelente orador, e há um delírio literal na multidão.
“Esta não é apenas mais uma eleição na história do Chile. Agora, estarão em discussão nossas instituições, o regime político e o econômico, o regime educacional (…) O país assiste a um processo de destruição como não conheceu até hoje em sua história (…) esta eleição constitui, ainda que não o queiram, um plebiscito diante da história e diante do futuro”.
50 minutos depois, com o fim do discurso, o PDC encerrava sua campanha para a “Grande Reconstrução do Chile” em Santiago.
Agora, as eleições.
(Post de Ricardo Setti, enviado especial a Santiago do Chile, publicado originamente no Jornal da Tarde, de São Paulo, a 3 de março de 1973, sob o título original de “O último comício da Democracia Cristã”)