O socialista Salvador Allende – “presidente eleito”para [os jornais de esquerda] Ultima Hora, El Siglo, Clarin, Puro Chile e La Tercera, e “o candidato que obteve a maioria relativa” [de votos na eleição presidencial de 4 de setembro deste 1970] para El Mercurio, La Tercera, La Segunda, El Diario e Ultimas Noticias [diários conservadores]– está a um passo mais perto do Palácio de la Moneda. Aceitando e concordando com o documento doutrinário em que a Democracia Cristã postula uma série de garantias, já criou um clima favorável, dentro do qual será uma surprêsa bombástica um eventual impasse entre a Unidade Popular e a DC, o partido que tem a menor bancada no Congresso. [Como Allende não obteve maioria absoluta na eleição, a Constituição prevê que o Congresso deve decidir se elege ou não o candidato mais votado.]

As negociações entre a Unidade Popular [coligação de partidos de esquerda que apóis Allende] e a Democracia Cristã se realizam num clima de extrema cortesia, e se pode notar o afrouxamento das tensões até no aspecto dos políticos direta ou indiretamente envolvidos. Agora, falta pouco para que a Democracia Cristã resolva votar em Allende. Falta que Allende concorde com o documento complementar ao “Estatuto de Garantias” que contém a série de medidas concretas propostas pela Democracia Cristã a nível constitucional e legal para “assegurar o prosseguimento do regime democrático no Chile” e “reforçar as garantias que a Constituição já oferece”.

Êsse conjunto de medidas concretas vai ser formalizado em projetos de lei e de reforma constitucional por uma comissão tríplice de juristas e será submetido ao candidato da Unidade Popular, que deverá decidir-se no mais rápido prazo possível. O clima de incertezas não interessa  à Unidade Popular nem à Democracia Cristã. As medidas propostas Allende já conhece. O documento complementar está sendo estudado por êle juntamente com o alto comando da Unidade Popular.

O Partido Comunista, de quem se esperava mais cedo ou mais tarde alguma reação mal-humorada à série de exigências da Democracia Cristã, até agora tem-se comportado com habilidade. A nota de mau-humor, contudo, foi dada: ontem, o deputado comunista Luiz “El Condor” Corvalan, secretário geral do PC, declarou que não gostava do termo “garantias” por não ser o mais apropriado. Preferia “especificações” porque “garantia democrática” já era a presença [na eleição e nas negociações] dos partidos que integram a Unidade Popular.

O senador Renán Fuentealba, um dos membros da Comissão de Política da Democracia Cristã, que negocia com Allende, esclareceu, ontem, que seu partido não está agindo como age por temer o “perigo comunista”. O que se dá, explicou, é que a presença de partidos marxistas na Unidade Popular levou certa apreensão à opinião pública em face dos precedentes históricos ocorridos em outros países, no capítulo das liberdades. A Democracia Cristã tem uma responsabilidade perante a opinião pública e tratou de tentar reforçar uma série de garantias constitucionais para levar a tranquilidade aos setores afetados. O senador, porém, assegurou acreditar que tudo vai correr bem e que as medidas solicitadas pela Democracia Cristã “não se chocam com a disposição demonstrada até agora pelo senador Allende”.

Fuentalba, que é uma das principais figuras da Democracia Cristã e, ao lado de homens como [o ex-vice-presidente] Bernardo Leighton e Júlio Castillo, considerado um dos “cérebros” doutrinários do partido, não crê na possibilidade da divisão dos quadros democrata-cristãos em face do problema eleitoral, pois afirma que o partido “está consciente da necessidade de permanecer unido para oferecer-se como alternativa às mudanças sociais de que o Chile necessita”.

O senador esclareceu ainda que a Democracia Cristã acompanha o programa de Unidade Popular “no que respeita à eliminação do capitalismo e do neo-capitalismo no Chile”, mas que é totalmente contrária a que se estabeleça um regime “absolutamente estatal”. “O que queremos”, afirmou, “é um sistema comunitário em que o poder do dinheiro seja substituído pelo poder do trabalho e de seus detentores, os trabalhadores”.

Há um extraordinário interêsse em todo país pelas negociações, embora os jornais de Santiago não informem com muita objetividade. Todos os jornais de esquerda e dos setores ligados ao ex-presidente conservador Jorge Alessandri são francamente facciosos e não divulgam um noticiário completo. Os jornais da Democracia-Cristã, La Tarde e La Nación, não fornecem muito mais do que as versões oficiais de tudo o que acontece. Nos jornais que tem posição partidária as colunas políticas assinadas – num número espantosamente grande – raramente incluem informações objetivas de “bastidores”, ou que sirvam para esclarecer o leitor chileno sôbre fatos ou situações.

Elas servem para os acalorados debates sôbre a posse de Allende, sôbre a figura de Allende, o programa de Allende, os companheiros de Allende, e diariamente se estabelece uma verdadeira batalha verbal entre os jornais esquerdistas e os alessandristas, especialmente em tôrno da crise econômica. A esquerda considera tudo manobra terrorista “de la derecha”, os setores alessandristas culpam a iminência de um govêrno “comunista” pela delicada situação econômica do país.

Somente as emissoras de rádio e TV esclarecem alguma coisa.  Ontem, por exemplo, elas foram pródigas em entrevistas e declarações. Falaram entre outros, o deputado do Partido Radical [de esquerda], Carlos Morales, o deputado socialista Erick Shnacke, os comunistas José Cardemartori e Orlando Millas, o democrata-cristão Luis Maira, o advogado Pablo Rodriguez, presidente do movimento de direita “Pátria e Liberdade”, contra a posse de Allende, além de políticos da Unidade Popular e do Partido Nacional, conservador, que apoiou na eleição o ex-presidente Alessandri, terceiro colocado.

O grande interêsse dos chilenos e o clima de debates em tôrno da política não impediu – como provavelmente nunca impedirá – que ontem em Santiago, em plena hora do “rush” noturno, uma enorme multidão se reunisse na Plaza de Armas, no coração de Santiago do Chile, para, enternecida, assistir um concêrto musical, tendo como fundo, um imponente pôr-do-sol refletido nos Andes.

(Reportagem de Ricardo Setti a publicada noJornal da Tarde, de São Paulo, em 25 de setembro de 1970)

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