O governo paulista considerou uma vitória política o resultado das negociações de anteontem à noite do governador Orestes Quércia e sua equipe econômica com a ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, que permitiu encaminhar uma solução para a questão dos títulos da dívida pública paulista. Esses títulos estavam encontrando crescente dificuldade de colocação no mercado, e obrigavam o governo paulista a recorrer ao Banespa [Banco do Estado de São Paulo], à Caixa Econômica do Estado e a outras instituições para rolar sua dívida. As instituições, por sua vez, vinham diariamente recorrendo ao Fundo de Assistência à Liquidez do Banco Central para não ficarem insolventes.
O acordo, que também foi estendido aos governos de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, prevê a absorção, pelo Banco Central, de Cr$ 654 bilhões (Cr$ 280 bilhões referentes a São Paulo) em títulos estaduais que serão trocados pelo equivalente em papéis federais.
— Tivemos que fechar este acordo porque o governo de São Paulo estava rolando Cr$ 280 bilhões por dia e isso iria quebrar o sistema financeiro nacional –, explicou mais tarde Zélia ao governador do Rio, Moreira Franco.
Um dos quatro governadores beneficiados lembrou: “Se não saísse o acordo, quatro bancos estaduais quebrariam”.
Em Curitiba, o governador do Paraná, Álvaro Dias, que não tinha esse tipo de problema, reclamou:
— Os governadores que agem corretamente é que são punidos.
60 dias
A operação de socorro vale em princípio por 60 dias, que servirão para que se discuta uma solução de longo prazo para o problema, além de acalmar o mercado, que não vinha aceitando títulos nem dos Estados que pagavam até 6% a mais que as taxas praticadas regularmente.
Zélia teve que ceder num ponto crucial – queria fechar a [estatal] Distribuidora de Valores do Estado de São Paulo (Divesp), ligada à Secretaria da Fazenda e encarregada da colocação dos papéis estaduais, mas, diante da intransigência de Quércia, concordou com seu descredenciamento temporário. A essa altura, os governadores dos três outros Estados haviam concordado com o fechamento de distribuidoras similares e Zélia teve de avisá-los de que o governo federal recuara.
Quércia, licenciado do governo, descansava na residência oficial de verão do Horto Florestal [que, entre outros tesouros, tem todos os livros da coleção Brasiliana] da quando recebeu um telefonema de Zélia às 14 horas de anteontem, convidando-o a ir discutir a questão dos títulos paulistas em Brasília. O governador chegou ao Ministério [da Economia] às 18h20, acompanhado do secretário da Fazenda, José Machado de Campos Filho, e do presidente do Banespa, Wadico Bucchi.
Tensão
No gabinete de Zélia estavam o presidente do Banco Central, Ibrahim Eris, e o ministro da Justiça, Jarbas Passarinho. A reunião, frequentemente tensa, se estendeu até às 21h30. A ministra começou sem meias palavras:
– Precisamos resolver essa situação porque o mercado não aguenta nem mais um dia.
Machado retrucou:
– A culpa é de vocês.
O secretário, que foi veemente em várias passagens da discussão, repetiu tese que tem sido propagada aos quatro ventos por Quércia: a dificuldade com os títulos estaduais decorre do Plano Collor 1, que enxugou a liquidez do mercado [realizando, entre outras ações, o confisco da poupança das pessoas] e fez desabar a procura pelos papéis por falta de dinheiro disponível. “O que vocês fizeram foi um absurdo”, reclamou Machado.
Quando Zélia condicionou qualquer entendimento ao fechamento da Divesp, Quércia chegou a concordar. Machado, porém, [conhecido por sua impulsividade] voltou a protestar:
– É um absurdo fechar a Divesp, uma instituição que há 30 anos presta serviços ao mercado.
Machado chegou a merecer a ironia de Passarinho quando atropelou uma intervenção do próprio Quércia:
–Você não dá aparte nem para seu chefe?
Posição de força
O presidente do Banco Central, Ibrahim Eris, chegou a sugerir uma solução intermediária, que seria o descredenciamento temporário da Divesp. A discussão prosseguiu. Quércia diria depois que percebeu que a extinção da Divesp colocaria o governo central em posição de força, como alguém que interveio, adotou medidas duras, submeteu o governo paulista e resgatou os Estados da crise. Aproveitando a deixa anterior de Eris, [o governador] contra-atacou:
– Mas o presidente do Banco Central sugeriu a suspensão da Divesp. Podemos até pensar em extinção mais adiante, já no governo do Fleury (o governador eleito Luiz Antônio Fleury Filho, do mesmo PMDB de Quércia, que toma posse em marco), na hora de se discutir a forma de acerto da dívida que o governo federal vai assumir.
Zélia então sugeriu:
– Por que o senhor não telefona para o Fleury agora?
Quércia não quis:
– Isso não é jeito de resolver uma coisa dessas, ministra. Por telefone. Eu converso com o Fleury depois.
A questão da Divesp, que foi a razão da demora da reunião, prosseguia, com Machado e Zélia intervindo. Em conversa lateral com o ministro da Justiça, que foi seu colega no Senado, Quércia propôs:
– Vamos só suspender a Divesp, Passarinho.
O ministro, em resposta, cochichou:
– Nós vamos fechar acordo em cima disso, pode deixar.
O acordo acabou sendo mesmo fechado, depois que Zélia pediu, dirigindo-se a Machado, para conversar a sós com Quércia. Terminada a reunião, Zélia fulminaria o secretário:
– Você arranjou uma inimiga para sempre.
Já em São Paulo, ontem, Quércia demonstrava estar muito satisfeito e disse ao Estado:
— O governo agiu corretamente, cumprindo sua obrigação. A responsabilidade pela inviabilização dos títulos no mercado é da política econômica do governo federal. Eles, portanto, não fizeram nenhum favor.
(Reportagem de Ricardo Setti publicada no O Estado de S.Paulo em 16 de fevereiro de 1991, feita em conjunto com o repórter Luciano Suassuna)