
Decisões da Justiça em uma democracia não se discutem, cumprem-se.
Isso para as partes envolvidas.
Jornalista, especialmente de opinião, discute, sim, decisões da Justiça.
Como essa adotada pela Justiça do Paraná que, em atenção a medida liminar impetrada por Rudimar Ferdigo, proprietário de uma academia de lutas marciais em Curitiba, mandou proibir a circulação do livro Anderson Spider Silva — O Relato de um Campeão nos Ringues da Vida (Editora Primeira Pessoa), biografia autorizada do grande campeão dos pesos médios do UFC escrita pelo jornalista Eduardo Ohata.
O motivo: ao longo do texto do livro, entre outras declarações, Anderson chama seu ex-treinador de pessoa “do mal”, diz que ele prejudicou pessoas e sugere que Ferdigo comprou a faixa preta que ostenta.
Pois então que Ferdigo processe Anderson criminalmente, peça indenizações, faça e aconteça. Proibir um livro, num Estado de Direito democrático, é um absurdo, uma aberração! Anderson expressou, no livro, suas opiniões. É responsável por elas. Está na Constituição, em suas cláusulas pétreas – que não podem ser alteradas nem por Proposta de Emenda à Constituição (PEC).
Que seja ele processado, se for o caso. Não existe censura prévia no Brasil. Se, em algum livro, publicação, filme ou similares, alguém se sente ofendido por alguma coisa, existem remédios jurídicos adequados na legislação brasileira: a pessoa pode, por exemplo, apresentar queixa-crime na polícia, se imaginar que houve crime, e aí se pode instaurar um inquérito e haver denúncia por parte do Ministério Público.
No plano civil, quem se julga ofendido, injuriado ou caluniado, tem igualmente a possibilidade de acionar o responsável, exigindo indenização por danos morais – mas depois de publicado o livro, ou exibido o filme etc. Ou seja, depois de constatado um suposto dano.
Mas não é admissível que, uma vez mais, em uma biografia, pessoas que se sentem prejudicadas acabem , via Judiciário, dando como resultado a uma censura prévia, prejudicando o público interessado e ferindo a liberdade de opinião, assegurada na Constituição.
É aquela velha história: com a ditadura, foi-se a censura. O que resta de censura, hoje, reside no Judiciário, em casos como esse — como ocorreu, durante anos, com Estrela Solitária (Companhia das Letras, 1995), a excelente (e respeitosa) biografia que o jornalista Ruy Castro traçou do grande craque Garrincha, já falecido, contestada na Justiça pelas filhas do ídolo.
O problema está no absurdo gravíssimo contido nos artigos 20 e 21 do Código Civil, nos quais se baseou a decisão sobre o livro de Adilson. Exigindo autorização do biografado em um grande leque de casos, esses dois artigos, especialmente o 20, praticamente impedem a publicação de livros independentes sobre qualquer personalidade da vida brasileira.
ATUALIZAÇÃO
A aberração que era a interpretação estrita desses dois artigos do Código Civil foi arrasada pelo Supremo Tribunal Federal, por unanimidade do plenário, a 10 de junho de 2015, ao julgar procedente Ação Direta de Inconstitucionalidade impetrada pela Associação Brasileira de Editores de Livros, tendo diversas outras entidades e pessoas como co-autoras.
O fim da censura prévia a livros por meio da Justiça, que beneficiou entre vários outros o livro de Adilson, inclusive em edição eletrônica, teve como relatora a ministra Cármen Lúcia, e parte do resumo do acórdão diz o principal:
“Ação direta julgada procedente para dar interpretação conforme à Constituição aos arts. 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento
e de sua expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível autorização de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo também desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas ou ausentes)”.
A sessão que julgou a ADIN nº 4.815 foi um grande momento do Supremo Tribunal Federal, e sua transcrição merece ser lida na íntegra.
Comentário de Ricardo Setti, de São Paulo, publicado originalmente a 15 de junho de 2012 no blog que o autor manteve no site da revista VEJA entre 2010 e 2015
Nenhum comentário
Sinceramente não vejo onde está o papel de jornalista de opinião Srº Ricardo Setti. Veja bem, se o Srº Rudimar Ferdigo está sendo difamado e acusado de "comprar sua faixa preta" no referido livro, ele tem todo direito de se opor a venda do mesmo e buscar seus direitos judiciais. Ora se alguém escrevesse um livro (ou mesmo um post em um blog) onde afirmasse que o respeitado jornalista comprou seu diploma e faz parte da imprensa marrom nós veriamos então qual a sua reação. Mal comparando, é como a turma dos "direitos humanos" que só percebem direitos para bandidos e esquecem das familias das vitimas que é quem merece verdadeiro cuidado. Se Anderson Silva que fazer sua biografia, que fale de si, e não preocupe-se em difamar terceiros. Quem se sente ofendido pode processar o suposto ofensor pelo Código Penal. Pode processá-lo civilmente por danos morais. Apreender livros é censura e eu a repudio.
´Diante de tanta bobagem, a melhor conduta é...virar a página!
O problema mais urgente a ser resolvido pela justiça brasileira é a própria justiça. Simples: dê-se crédito ao grande campeão, ou se o processe por calúnia e difamação. Quando a grande Eliana Calmon fala...
Setti, qual é a via legal para se interpelar judicialmente esta atitude descabida do magistrado? Será que nenhuma instituição séria, como a ABI e/ou a OAB, vai se pronunciar?
Da mesma forma que o direito à livre manifestação do pensamento e a liberdade de imprensa estão previstos na constituição, a proteção à honra também está. Desta forma, é dever do juiz fazer uma ponderação entre os princípios constitucionais em jogo, afinal, ambos os lados possuem sua fundamentação principiológica e constitucional. Não é fácil a atuação do julgador neste momento, afinal, fazer a dosagem do que é mais importante é algo muito subjetivo. Da mesma forma que "censurar" um livro é algo que causa uma grande repercussão, caso seja comprovado que o "Spider" foi parcial - e talvez até mentiroso - em seus comentários também causará um dano inimaginável na esfera privada do autor da ação. Explico meu pensamento: uma pessoa com o carisma e o apelo do Anderson Silva, uma figura idolatrada e visto quase que como um herói, pode, com qualquer declaração pouco veículada, causar um dano enorme, imagine imortalizando uma acusação deste porte em uma obra que retrata a sua biografia? O dano poderá ser inimaginável. Então fica a pergunta: o direito à livre manifestação se sobressai ao direito à honra? O caso não é tão simples, uma vez que lida, de um lado, ao direito de se manifestar e, do outro lado, põe em risco a honra de outra pessoa, que talvez uma indenização pecuniária não seja suficiente para trazer a reparação justa. Não quero me manifestar aqui sobre qual lado esta certo ou errado, pois ambos possuem suas fundamentações constitucionais, mas vale para reflexão... Abraços
Não deixa de ser incrível a quantidade de pessoas que aprovam a censura nos dias de hoje. É inaceitável que uma opinião dada em uma biografia seja censurada desta maneira.
Ok! O senhor me censurou como o Tribunal de Justiça do Paraná.
Não vou publicar, mesmo, George, se é que este é seu nome. Você adivinhou! Criticar a revista é uma coisa, atirar uma acusação a esmo é outra. Sem contar que seu comentário continha, também, vulgaridades. Passe bem.
Aff, grande coisa... As liberdades públicas não são grande coisa, são ENORME coisa, meu caro.
Eu acho que no tempo da suposta ditadura, a censura era muito mais branda que hoje.
Que esquisito!
a glória perez também vez isso, quer dizer, não sei se agiu dentro da lei
Depois de jogado aos sete ventos , via livro, do que irá adiantar um processo ? Censura não tem nada a ver com o caso.
É a mesma medida que impede o Rafinha Bastos fazer as piadas dele, é exatamente a mesma lei. A questão é que este as pessoas não conhecem o sujeito e aí ficam a favor de quem fala, no outro caso o sujeito do que foi dito é conhecido, aí todos acham um absurdo, tem que proibir, etc... O Brasileiro tem que entender uma vez por todas o que significa liberdade de expressão, não é apenas falar o que quiser mas também ouvir o que não quer.
Isso que dá juiz não conhecer a Constituição. Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vidaà liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos seguintes: -----> IV – É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; VIII – Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; ---> IX – É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença ----> Art. 220º - A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. ---->§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
É um perigo isso começar a acontecer em pleno Pais democrático e de livre expressão. Estaremos voltando a ditadura? Lamentável.
Dom Setti: È, mais uma intriga q ameaça a liberdade impressa. Um retira-se frustante para a liberdade moderna. Abs.
Caro Setti : Concordo plenamente com vc, e o pior é que este não foi o primeiro, e com certeza não será o último caso de censura judicial contra algum livro. Basta lembrar que Roberto Carlos, há cerca de 5 anos, conseguiu a proibição de uma biografia não autorizada, inclusive com o recolhimento de todos os exemplares. Por sorte eu consegui comprar um antes da proibição, e para minha surpresa, o livro em nenhum momento desabona ou denigre a trajetória do cantor, muito pelo contrário, mostra um relato sério, fruto de 15 anos de pesquisas por parte do autor. Enfim, só nos resta torcer para que esta tendência censurante da Justiça tenha logo um fim. Somente faço uma correção : o nome do lutador é Rudimar Fedrigo, e não Rodrigo. Abs!
Setti, gozado que os concursos públicos para juiz são dificílimos, mas os aprovados não parecem dominar o Direito Constitucional, principalmente no campo da liberdade de expressão. Esses gênio do direito dvem ter cabulado as aulas dessa matéria. Mais curioso ainda: grande parte dos aprovados é parente de juízes e promotores... Sds., de MarceloF.
Setti, o sobrenome do impetrante é Fedrigo. Saudações. Obrigado, caro Vinicius.