A juíza Ruth Viana, da 34ª Vara Criminal do Rio de Janeiro não brincou em serviço, e o cidadão Marcelo Pires Vieira, o pagodeiro Belo, pegou seis anos de cadeia por tráfico e associação para o tráfico de drogas. Por mais que alegasse inocência, com cara de santo e tudo, Belo não pôde escapar a determinados detalhes pouco dignificantes levantados pela polícia e comprovados na Justiça, como suas relações com figurões tenebrosos da bandidagem carioca. A um deles, ficou claro para a Justiça que o pagodeiro adiantou um dinheirinho. Capital de giro para os negócios, digamos assim.
Mas essa sentença em nada vai mudar por ora, e por muito tempo, a rotina do condenado. Belo e formoso, o pagodeiro nem se deu o trabalho de cancelar seu movimentado roteiro de shows. Ele passou a ser a mais recente personalidade a ser beneficiada por uma ignomínia que completou 29 anos no dia 22 de novembro passado – data que foi deixada passar em branco pelo governo novo, pelo governo velho, pelas respectivas oposições, pelos sindicatos, pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pelas ONGs que lutam por direitos humanos e por nós, jornalistas: a Lei n° 5.941, de 1973, mais conhecida como “Lei Fleury”.
A Lei Fleury, promovida pela ditadura durante o período do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), mudou a redação do artigo 594 do Código de Processo Penal para determinar que réus primários, com bons antecedentes criminais, mesmo depois de condenados, passariam a ter direito à liberdade enquanto durasse a tramitação de seus recursos.
Essa lei foi feita de encomenda para um dos maiores símbolos da repressão sangrenta da ditadura, o falecido delegado do DOPS paulista e torturador Sérgio Fernando Paranhos Fleury. Envolvido em numerosos crimes tanto na perseguição a militantes de esquerda como a pessoas acusadas de crimes comuns, Fleury, apesar de seu poder durante os anos negros da ditadura, viu-se objeto de um corajoso e paciente cerco por parte de promotores paulistas, capitaneados pelo hoje vice-prefeito de São Paulo, Hélio Bicudo (PT), e acabou finalmente tendo sua prisão preventiva decretada pelo assassinato de um traficante. Livrou-se, porém, da cadeia graças à lei encomendada.
Do final da ditadura para cá, tivemos seis presidentes democráticos – contando com o recém-empossado presidente Luiz Inácio Lula da Silva –, elegemos soberanamente cinco diferentes Congressos (incluindo o novo, que começa a funcionar em fevereiro) mas, para vergonha geral, a Lei Fleury permanece intacta.
Feita sob medida para uma peça-chave da ditadura – “nunca na história brasileira um delinqüente adquiriu sua proeminência”, afirmou o jornalista Elio Gaspari sobre Fleury em seu estupendo livro A Ditadura Escancarada, parte de uma série de cinco que escreveu sobre os porões do regime militar –, a lei acabou se provando interessantíssima para muita gente situada no que Elio chama de “andar de cima” da sociedade.
A Justiça condena, o condenado contrata advogadões, o advogado recorre para instâncias superiores e o réu toca a vida para a frente, como se nada tivesse acontecido. Isso ocorreu e tem ocorrido não uma ou duas, mas milhares de vezes.
Como, aqui no Florão da América, são infinitas as possibilidades de recursos judiciais, eles vão sendo apresentados, e o tempo passa. O tempo passando, os fatos começam a se esfumaçar: provas se desvanecem, testemunhas tornam-se esquecidas ou morrem – vocês sabem como são as coisas, não é?
É por essas e outras que praticamente não existe no Brasil aquela situação reconfortante, para os homens de bem, que aparece rotineiramente nos filmes (e no quotidiano) americanos: o sujeito é julgado, recebe a sentença e já sai do tribunal preso – de preferência, com algemas nos pulsos. É também por essas e outras que existe a sensação de que, no Brasil, quem tem dinheiro para bons advogados não vai nunca para a cadeia, cometa o crime que cometer.
O presidente Lula e seu ministro da Justiça, o respeitado advogado Márcio Thomaz Bastos, consideram a impunidade um câncer que corrói a ética e o sentido de justiça da sociedade brasileira. Pois bem, a Lei Fleury é hoje um dos pilares mais vigorosos e exuberantes dessa permanente sensação de impunidade que torna a população descrente, as instituições desmoralizadas e os criminosos felizes.
Até agora, porém, entre seus muitos planos, não se ouviu Thomaz Bastos dizer uma única palavra contra a Lei Fleury.