A Câmara deu ontem um passo em direção à conciliação: aprovou urgência para votar o projeto que concede anistia a estudantes e trabalhadores envolvidos nos acontecimentos que se sucederam à morte do Edson Lima Souto [jovem atingido por uma bala perdida no restaurante Calabouço, no Rio, durante a repressão policial um protesto estudantil].

É a primeira vez, desde 31 de março de 1964, que uma Casa do Congresso Nacional aprova uma medida relacionada com anistia. Embora a aprovação de urgência para votação de um projeto não signifique que êle necessariamente receberá no final o OK dos deputados, essa costuma ser a regra geral. Quem votou pela urgência, vota pelo mérito, o conteúdo.

E ontem votaram a favor do projeto 107 deputados: 76 do Mdb e 31 da Arena. Contra, votaram 98, todos da Arena. O projeto deverá ir hoje mesmo para a Comissão de Justiça. Se nenhuma outra comissão solicitá-lo para exame, a matéria poderá ir para o plenário ainda à tarde. Fala-se, contudo, que a Comissão de Segurança Nacional – entre cujos membros está o deputado Clóvis Stenzel [Arena-RS, tido como representante da “linha dura” militar no Congresso] – pretende apreciar o projeto, de autoria dos vice-líderes Paulo Macarini [SC] e Mata Machado [MG], do MDB. 

O fato está sendo interpretado como uma manifestação de sensibilidade da Câmara, no momento em que recrudesce a crise estudantil. Diversos parlamentares, inclusive da Arena, votaram “sim”, com um sentido que transcende a simples concessão de anistia: o de retirar a Câmara, o Congresso, enfim, do alheamento em que se encontra, o de tentar uma forma de fazer o Legislativo ser o “pulmão” político que já foi, refletindo as crises e influindo em sua decisão.

A urgência foi requerida pelo deputado Paulo Macarini. O líder em exercício do govêrno, Cantídio Sampaio [Arena-SP], recomendou aos arenistas que votassem contra, tendo mesmo dito a alguns deputados – como Murilo Badaró [MG] – que se tratava de questão fechada. Mesmo assim, 31 arenistas se pronunciaram a favor. Alguns, como Marcos Kertzmann [SP], votaram “não” por engano, e tentaram em vão modificar seu voto junto à Mesa. O deputado Ultimo de Carvalho [ARENA-MG], que embora demissionário ainda é vice-líder, votou “sim”. E justificou: “Se no tempo de Juscelino eu votei anistia para os militares de Aragarças e Jacareacanga, como vou negá-la para os estudantes?”

O MDB teve sorte: justamente durante a votação, ocupava a presidência da Câmara o deputado Milton Reis [MG], segundo-secretário, que é oposicionista. Se fôsse alguém da Arena – com exceção, talvez, do vice-presidente Accioly Filho [PR] – a votação teria sido encerada antes de se atingir o quórum mínimo de 205.

A dúvida, agora, é saber se o projeto será ou não aprovado. Normalmente, a resposta seria mais simples: tranquila rejeição. Acontece que, aprovada a urgência, os deputados que foram a favor vêem difícil votar contra o projeto ou abster-se de votar. Trata-se de matéria de alta relevância política, e os deputados sabem muito bem disso.

[Para evitar a aprovação] a liderança do govêrno poderia, por exemplo, retirar do plenário a bancada da Arena – ou os deputados que concordassem, como fêz no episódio dos municípios de segurança nacional. Isso evitaria o quórum mas, de outro lado, traria um desgaste ponderável perante a opinião pública. Os deputados sabem também disso.

O Senado poderia, então, quando chegar sua vez de examinar a questão, rejeitar o projeto, dir-se-ia. Acontece que o filho do senador Rui Palmeira [Arena-PB], Wladimir [um dos principais líderes estudantis do país], será beneficiário do projeto, se aprovado. Como fazer os senadores votarem contra? O Senado é, mais que qualquer outra, uma Casa política sensível à chamada “liderança sentimental”.

Restaria, finalmente, o veto presidencial. A nova Constituição não considera mais competência exclusiva do Congresso a deliberação sôbre anistia, como previa a Carta de 1946. O presidente, pois, pode vetar in totum o projeto. Mas, pergunta-se pode o presidente, num momento de crise e de ânsia por uma abertura, deixar de ter um gesto de grandeza?

Image
Reprodução da matéria publicada © Reprodução

O projeto de anistia – que é simples, com dois artigos – visa conceder anistia aos estudantes e trabalhadores “que estão sendo processados como envolvidos nos episódios, manifestações e crises que, em todo o território nacional, se sucederem à morte do jovem Edson Luís de Lima Souto, no restaurante do Calabouço, na Guanabara”.

Paulo Macarini e Mata Machado salientam na justificativa que a aprovação desta medida “representará inequívoca demonstração de que o poder público passa a compreender as atividades da juventude e da classe operária, em face da atual conjuntura brasileira”.

No mesmo instante em que o projeto de anistia estará (ou poderá estar) sendo discutido no plenário da Câmara, o gabinete executivo do MDB estará reunido para deliberar sôbre o comportamento em relação a Jânio Quadros., [punido pelo governo, por ter feito declarações políticas com direitos políticos suspensos, com confinamento de 180 dias em Campo Grande, então no Mato Grosso, depois Mato Grosso do Sul]. Deverá ser referendada a posição extra-oficial adotada por elementos do partido, isoladamente, de apoio e solidariedade ao ex-presidente.

Nem poderia ser diversa a decisão. Entendem os oposicionistas que o ex-presidente, após o confinamento, fêz uma opção política bem clara em direção ao MDB, e que o partido não pode desprezar uma quase-adesão de Jânio às suas teses.

Outra coisa que o gabinete executivo discutirá: ir ou não à Corumbá, oficialmente. Jânio quer falar com a cúpula do MDB. Citou nominalmente, para o senador Lino de Matos [SP, velho correligionário do ex-presidente], os nomes do secretário-geral Martins Rodrigues [CE], do líder Mario Covas [SP], do deputado Mata Machado [MG] e do senador Josaphat Marinho [BA], membros do gabinete executivo.

O MDB deverá ir a Corumbá, apesar do calor e da crise.

Artigo publicado por Ricardo Setti no Jornal da Tarde, de São Paulo, a 7 de agosto de 1968, sob o título original de “Anistia está no Congresso”

DEIXE UM COMENTÁRIO

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *