BRASÍLIA — Foi passageira a ilusão do governo quanto às possibilidades de uma calmaria política. A Arena, cética desde o início, viu ontem confirmados, de maneira inesperada, seus motivos de apreensão. A invasão da Universidade de Brasília [pela Polícia Militar do Distrito Federal, com o OK de setores do governo federal] é encarada como o estopim de uma nova crise, de consequências que não se podem prever para o regime.
Até quanto se sabe, o presidente Costa e Silva não tinha conhecimento da invasão, ou pelo menos da forma como ela foi levada a efeito. A informação chegou ao presidente através do general Jaime Portela, [chefe do Gabinete Militar da Presidência], durante uma reunião com cacauicultores baianos. Segundo depoimento de testemunha visual, o presidente foi tomado de surpresa, embora não houvesse comentado o episódio.
De outra parte, os poucos arenistas que mantinham uma atitude de reflexão dentro do clima emocional que ontem assolou o Congresso viam anulados, de imediato, os efeitos arrefecedores que a crise na Checoslováquia havia levado ao meio estudantil e a toda a área de “contestação do regime”. Quanto a essa consequência, parecia haver unanimidade.
Os estudantes, diante das violências cometidas ontem na UnB e que atingiram indiscriminadamente alunos, professores, funcionários e parlamentares, têm um novo motivo para voltar às ruas. Não é difícil prever uma reação em cadeia, que deverá reeditar todo o elenco de apreensões quanto à estabilidade do regime e às possibilidades de endurecimento.
Na Câmara e no Senado, grupos ponderáveis da Arena mostravam um desalento até físico. Diversos parlamentares presenciaram os incidentes e se declaravam revoltados, a começar pelo sr. Clovis Stenzel [Arena-RS], apontado como representante dos “duros” no Congresso e professor na UnB. A violência policial chocou e provocou repugnância entre elementos dos dois partidos.
Políticos do nível do sr. Martins Rodrigues [CE, ex-ministro da Justiça e secretário-geral do MDB] foram desacatados e humilhados; estudantes e professores foram presos e espancados [eu estava em intervalo de aula e fui comer um lanche distante do ponto em que a Polícia Militar invadiu o campus; meu irmão Arnaldo Augusto, brilhante estudante de Engenharia, foi um dos alunos enfiados em uma quadra de basquete cercada por alambrado e teve que permanecer longo tempo com os braços na cabeça, sob a mira de metralhadoras]; laboratórios valiosos foram depredados com requintes de barbárie; deputados e senadores foram empurrados, agredidos e molestados a ponto de ter um professor universitário como o deputado Brito Velho, da Arena gaúcha e [conhecido pela independência e o arrrebatamento], afirmado que, se tivesse sua esposa ou filho eventualmente mortos em situações desse tipo, não teria dúvidas em dar o mesmo destino aos responsáveis.
Essa afirmação do sr. Brito Velho no plenário da Câmara refletia a indignação pelos atos de vandalismo praticados pela Polícia, cuja responsabilidade nas violências foi testemunhada pelas mais altas expressões morais do Congresso. O sr. Osvaldo Zanello [Arena-ES], que até há pouco era um dos mais eficientes vice-líderes governistas, disse a jornalistas que não mais votaria “com esse governo”. Logo após, no plenário, em aparte contundente, afirmou que “A Arena não pode de forma alguma, acumpliciar-se com aqueles que matam estudantes”, com “bandidos que envergonham o País”.
Até o deputado Amaral Peixoto [MDB-RJ], de moderação pessedista notória, ocupou o microfone da Câmara – o que não fazia há meses – para manifestar sua preocupação com os destinos do País. O ex-presidente do PSD confessava-se “desolado”, após verificar os danos pessoais e materiais resultantes da incursão da polícia no “campus” da UnB. Assinalava que diversos professores estrangeiros, inclusive um enviado da Organização Mundial de Saúde, assistiram aterrorizados aos choques entre policiais e estudantes.

Ante o silêncio do Executivo, a voz do governo somente se fez ouvir no Congresso. No Senado, o senador Petrônio Portela [Arena-PI] lamentou os incidentes e assegurou que o governo apuraria as responsabilidades. Na Câmara, o vice-líder Cantidio Sampaio [Arena-SP]– que não presenciou os incidentes – justificou a ação da polícia, sob protestos da própria bancada da Arena, tendo-se quase envolvido em luta corporal com o sr. David Lerer [MDB-SP]. Também o vice-líder Haroldo Leon Perez [Arena-PR] – igualmente ausente dos acontecimentos na UnB – forneceu, da tribuna, uma versão dos acontecimentos, que produziu diversos tumultos no plenário, o que tornou a sessão de ontem da Câmara uma das mais tensas e agitadas desta legislatura.
[O espantoso no episódio é que não se apresentou nenhuma razão plausível, de qualquer tipo, para a ação violenta contra a UnB, elém de genéricas acusações de “atividade subversiva” no campus.]
No Palácio do Planalto, os episódios não foram comentados, oficial ou extraoficialmente. Assessores governamentais, contudo, especialmente na área econômico-financeira, demonstravam preocupação pelos incidentes.
O MDB considerou o episódio uma inequívoca provocação, não sabendo exatamente a que setor atribuí-la. Essa impressão não era de todo repudiada por setores arenistas. Comentava-se que os acontecimentos de ontem na Universidade de Brasília poderão pôr a perder todo o lento e difícil trabalho de abertura política e de reformas estruturais que se tenta levar a efeito.
É cedo para se fazer previsões sobre a intensidade e os rumos que os fatos poderão tomar. O certo é que há apreensão, desencanto e tristeza na área política. O mês de agosto, considerado azíago na política brasileira, enfim, não terminou sem crise.
(Artigo de Ricardo Setti, de Brasília, publicado a 30 de agosto de 1968 no Jornal da Tarde, de São Paulo, sob o título original de “É a crise que estava faltando para agosto”)