O governador Leonel Brizola vai acordar nesta manhã de fim de verão no Rio tendo diante de si apenas uma semana restante de mandato. Não deve ser uma boa sensação, sobretudo para quem queria tanto mais do que obteve. Brizola, de fato, carrega consigo a amargura de não ter feito o seu sucessor, de não ter sequer ameaçado fazer o governador em sua terra natal, o Rio Grande do Sul, de não ter fincado raízes sólidas para seu partido, o PDT, em qualquer outra parte que não as plagas fluminenses e gaúchas, de não ter ao alcance da vista a possibilidade de uma eleição presidencial – e por aí vai.

É, pois, compreensível a carantonha macambúzia que o governador Brizola vem ostentando nos últimos dias. Afinal, é tão velha quanto o homem a sua decepção quando confrontado com a insustentável leveza de seus sonhos. Nada disso, porém, nem mesmo a indignação do governador com a intervenção do Banco Central no Banco do Estado do Rio de Janeiro, o Banerj, justifica a atitude que ele se prepara para tomar no próximo domingo, dia 15 de março deste 1987, quando pretende deixar a ver navios o seu sucessor eleito, Wellington Moreira Franco [PMDB], em plena solenidade de transmissão do cargo, para uma vez mais vistoriar suas vastas pastagens uruguaias.

Até os vendedores de limonada na praia sabiam, há muito tempo, que Brizola não passaria o cetro a Moreira. O governador, porém, agarrou-se ao recente episódio do Banerj como pretexto para esta falta de modos cívica. Sua atitude parece insinuar que Moreira provocou a intervenção do BC como um garoto que chama o irmão mais velho para resolver por ele uma briga de rua – quando, na verdade, o ato do governo federal não apenas era inevitável diante do sambódromo de gastos irresponsáveis em que se transformara o Banerj, como chegou com grande atraso.

É uma pena que o governador Brizola não utilize o ato tão especial e tão repleto de significados da transmissão do poder para mostrar que realmente absorveu as idéias que, segundo apregoa, o exílio lhe ensinou. Quem sabe, então, o governador poderia lançar mão do exemplo de alguns de seus amigos da Internacional Socialista para moldar seu próprio comportamento. Se ele se desse a esse trabalho, iria se dar conta, por exemplo, de que o presidente socialista francês François Mitterrand foi plenamente capaz de absorver a posse de um inimigo político visceral, o conservador Jacques Chirac, no cargo de primeiro-ministro, graças a peculiaridades constitucionais da França.

Mais que isso. Mitterrand, que Brizola admira, está encontrando formas de não perder seu aplomb imperial ao longo de uma peculiar e certamente pouco confortável experiência de partilha do poder, a chamada coabitação.

Já Brizola, com sua atitude diante de Moreira, torna lícito que se imagine um cenário no qual, caso se invertesse a situação e fosse o presidente francês a se inspirar em seu colega moreno de socialismo, Mitterrand passaria a bater os pesados portões de ferro do Palácio do Eliseu no nariz de Chirac cada vez que uma crise política na França requeresse um encontro entre ambos. O mesmo raciocínio vale para outro amigo socialista de Brizola, o presidente de Portugal, Mario Soares, também coabitando sem grosserias com um primeiro-ministro conservador.

O pior é que péssimos exemplos de maus perdedores, como o de Brizola (e, por sinal, o de seu vice Darcy Ribeiro, que também pretende evaporar-se no dia 15), estão longe de ser exceção no Brasil. Basta lembrar um campeão honoris causa nesse assunto – o presidente João Figueiredo, que, como se recorda, saiu pela porta dos fundos do Palácio do Planalto para não passar a faixa a José Sarney. (Os mais maldosos podem até sugerir que, no caso, se trataria de afinidades entre um governador que quis prorrogar o mandato de Figueiredo quando a nação se punha em marcha batida pelas diretas-já e um general que volta e meia ainda recebe o governador em seu refúgio na serra fluminense.) Agora mesmo, outros governadores planejam seguir a infeliz decisão de Brizola – como o baiano João Durval [PDS], batido de forma ainda mais acachapante nas urnas.

E aí vamos chegar ao velho problema: a democracia, para ser praticada, dá trabalho e exige aplicação, sobretudo porque o autoritarismo que nós, brasileiros, costumamos só enxergar no Estado e em algumas de suas instituições está também impregnado em bom grau na sociedade, nos partidos e nos políticos. Não é por outra razão, certamente, que o deputado-sindicalista Olívio Dutra, do PT gaúcho, manifestou esta semana perplexidade com o fato de poderem ser amigos, divergências à parte, dois de seus colegas, um da ala conservadora do PMDB, o deputado Cardoso Alves [SP], outro da fatia mais zangada do PT, o deputado José Genoino.

Se não passa pela cabeça de Dutra que seja possível uma convivência pacífica de contrários dentro do Congresso, que tipo de democracia ele gostaria de ter no país? Da mesma forma, se Brizola, derrotado, trata dessa forma Moreira, um adversário que o derrotou, é legítimo se perguntar como trataria os adversários que viesse a vencer.

Dá até para imaginar.

(Artigo publicado por Ricardo Setti, de São Paulo, no Jornal do Brasil em 8 de março de 1987)

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