IMAG0045-12-maio-2004

A guerra de quadrilhas que levou pavor e morte à favela da Rocinha, no Rio, ocupada em conseqüência por mais de mil homens da Polícia Militar, trouxe novamente à tona o debate sobre o papel do governo federal na questão da segurança pública, cuja manutenção a Constituição atribui basicamente aos Estados. No bojo dessa discussão, impulsionada pelo casal de governadores Garotinho, voltou à pauta a possibilidade de cooperação das Forças Armadas, quando menos para vigiar fronteiras.

Foi esquecida, porém, uma ação que o governo federal não apenas pode, como tem a obrigação de efetuar, e esta na área da política externa: pressão política, diplomática e econômica sobre o Paraguai. Antes que o leitor comece a rir, diante da das diferenças econômicas do Brasil com o país vizinho, vale lembrar que é quase impossível citar, hoje em dia, um único problema grave de segurança pública do Brasil que não tenha alguma ramificação importante, quando não sua própria fonte de origem, no Paraguai.

A polícia fluminense calcula, por exemplo, que 80% da maconha que circula nos morros cariocas chega no país via Paraguai. O grosso da cocaína produzida na Colômbia, que domina o mercado brasileiro (a boliviana é minoritária), dá voltas pela geografia e acaba entrando aqui pela mesma porta. O tráfico de armas, inclusive pesadas, que alimenta as quadrilhas brasileiras ingressa no país pelo Paraná ou pelo Mato Grosso do Sul via fronteira com, de novo, o Paraguai. Sem contar contrabando, roubo de cargas, tráfico de carros furtados, falsificação de produtos, pirataria de marcas, lavagem de dinheiro – todo um interminável elenco de crimes graves que nos afetam e infernizam tem tido no Paraguai um santuário, sob o abrigo cúmplice, quase maternal das autoridades de lá e o virtual silêncio das autoridades daqui.

Seja em razão da má consciência existente até hoje pelos efeitos devastadores sofridos pelo vizinho com a Guerra do Paraguai (1864-1870), seja resultado da patrulha politicamente correta contra o sempre brandido “imperialismo brasileiro”, o fato é que nossos governos não têm feito nada diante desse gordo dossiê de agressões perpetradas contra os interesses nacionais.

E, no entanto, o momento é apropriado para que o Itamaraty se mexa. Não somente por situações dramáticas como a da Rocinha ou a da favela Coréia, também no Rio, onde a polícia localizou um arsenal de guerra de bandidos que incluía 30 mil balas de fuzil contrabandeadas, mas porque, pela primeira vez, há chance de os esforços brasileiros encontrarem eco do outro lado da fronteira.

Pelo menos a julgar por declarações e atos concretos do novo presidente paraguaio, Nicanor Duarte. Mal tomou posse, em agosto passado, ele passou a impressão de que poderá mesmo mexer nas estruturas podres do país e lançou-se a uma faxina geral no comando das Forças Armadas que, segundo disse, tiveram ao longo de décadas uma “identificação nefasta” com a corrupção.

Mais do que sabido, isso já era uma verdadeira instituição paraguaia. A grande novidade foi ter sido publicamente admitida por um presidente da República. Duarte tomou posse diante de colegas de países vizinhos, inclusive Lula, e na solenidade pronunciou um discurso em favor do Estado de Direito no qual praticamente admitiu que ele nunca existiu em seu país. Prometeu, ainda, combater as “máfias” que infestam o Paraguai e não dar trégua ao crime organizado.

Havendo agora um presidente em Assunção que reconhece a bandalheira e se declara disposto a combatê-la, o Itamaraty e o governo brasileiro têm pelo menos a quem pegar pela palavra. As comunidades brasileiras submetidas a bandidos violentos e vítimas do tráfico de drogas, como a Rocinha, agradecem penhoradas.

(Artigo de Ricardo Setti, de São Paulo, publicado originalmente a 12 de maio de 2004 na coluna quinzenal “De Olho no Poder”, que manteve em 2003 e 2004 na revista EXAME)

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