chegaremos-la

Os interessados em escaramuças constitucionais terão bom material de observação nos próximos dias. É interessante a polêmica criada pelo Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo ao acolher uma representação encaminhada por vários candidatos a deputado federal e decidir aumentar, com base na Constituição, dos atuais 60 para 70 o número de deputados que deverão representar São Paulo na Câmara.

No seu parecer favorável à representação, o procurador eleitoral em São Paulo, Antônio Carlos Mendes, lembrou que a Constituição estabelece o limite mínimo (oito) e máximo (70) de representação parlamentar por Estado. Como o Congresso, porém, não regulamentou a questão, o procurador entendeu que, no caso de São Paulo, prevalece o limite máximo constitucional.

Mendes teve, ao examinar o processo, a ousadia que faltou ao Supremo Tribunal Federal em agosto passado. Acionado pelo deputado José Serra (PSDB-SP) por meio de mandado de injunção, instrumento criado pela Constituição para que o Judiciário aja “sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício de direitos e liberdades constitucionais (…)”, o STF preferiu tirar o corpo fora e limitou- se a “recomendar” que o Congresso legislasse a respeito do assunto.

Antes das eleições de 15 de novembro, o Tribunal Superior Eleitoral, considerando a falta de regulamentação do Congresso sobre a questão das bancadas, decidiu manter o número atual de 495 deputados, acrescido apenas de mais quatro do Amapá e outros quatro de Roraima, Territórios que foram transformados em Estados e passaram a ter a representação mínima que a Constituição atribui a Estados: oito deputados. O TRE paulista, assim, resolveu agir por contra própria. O problema, agora é que a Câmara resolveu ignorar a decisão por entender que ela infringe resolução do TSE, órgão máximo da Justiça Eleitoral. E está formado o bolo.

No bojo de tudo se esconde a velha questão: São Paulo está escandalosamente sub-representado na Câmara em relação à sua população, e nem sequer medidas paliativas como o aumento para 70 representantes são implementadas. Só para recordar: o Estado, com seus 33 milhões de habitantes (estimativa oficial para 1990), abriga 22% da população brasileira. Pela lógica, deveria ter, também, 22% dos 503 novos deputados, o que significa 110. Mas não, seus 60 deputados representam apenas 11,93% da Câmara.

Todo tipo de manobras e trampolinagens vem sendo feito, desde a Constituinte, para impedir que a força demográfica – base elementar da democracia – tenha, no Congresso, uma força política proporcional. Na prática, é um escândalo: o Sudeste e o Sul, somados, têm 60% da população brasileira e 40% de sua representação política. Norte, Nordeste e Centro-Oeste, com 40% da população, controlam 60% do Congresso. Como para mudar tal situação é necessário que quem tem poder abra mão dele, a democracia brasileira continua andando de muletas também nessa questão.

Remendos surgem, aos montes, e são sempre suspeitos. O deputado Maurílio Ferreira Lima (PMDB-PE), por exemplo, pretende apresentar emenda constitucional fixando em 487 o número máximo de deputados a partir de 1994. Até aí, magnífico –  nenhum parlamento do mundo vai aumentando indefinidamente o número de seus integrantes para acomodar interesses menores, como ocorre no Brasil. Só que o deputado quer emparedar em 60 o limite máximo de representação estadual. Fica, então, tudo na mesma, já que mesmo que São Paulo venha, hipoteticamente, a ter metade da população brasileira, continuará com pouco mais de 10% de seus representantes. É ridículo.

Só para comparar com o velho exemplo, os Estados Unidos, vale lembrar que a primeira Câmara de Representantes, em 1789, era composta de 65 deputados e hoje abriga 435 – cresceu, é claro. Só que os legisladores tiveram o bom senso de, já em 1910, colocar 435 como número máximo de deputados – que vigora até hoje: a bicentenária Constituição americana chegou ao requinte de prever a obrigatoriedade da realização de um censo a cada dez anos para que se faça a distribuição desses 435 pelos Estados na proporção de sua população. Isso significa que Estados ganham e perdem representação, conforme [o crescimento ou diminuição da população e] os fluxos migratórios.

Os resultados preliminares do censo de 1990, por exemplo, mostram que a busca do sol e da prosperidade nos Estados do Sul e do Oeste – marca registrada dos anos recentes no país –  vai afetar colossos como os grandes Estados industriais do Nordeste e Leste. Nova York, já nas eleições de 1992, deve perder três deputados, Illinois, Michigan, Ohio e Pensilvânia, dois cada, enquanto a Califórnia ganha sete, a Flórida, quatro e o Texas, três. Coisa de República séria. Um dia chegaremos lá.

ATUALIZAÇÃO

O procurador eleitoral em São Paulo, Antonio Carlos Mendes, estava absolutamente certo, mas o aumento para 70 deputados só ocorreria 3 anos depois, com a revisão constitucional automática prevista na Constituição de 1988, e que ocorreu entre junho e dezembro de 1993.

Mesmo assim, a distorção fundamental não foi nem será resolvida, uma vez que 70 é o máximo de deputados que pode ter um Estado, seja qual for sua população (Constituição, artigo 45, parágrafo 1º). A de São Paulo é de estimados 45,9 milhões de habitantes, ou 21,6% da população do Brasil, estimada em 212,5 milhões. Pela proporcionalidade, teria que ter em 2025 21.6% dos 513 deputados, ou seja, os mesmos 110 do post acima, publicado em 1990. 

Uma emenda constitucional corrigindo isso não vai ocorrer porque para ser aprovada seriam necessários três quintos de todos os deputados e três quintos de todos os senadores, em dois turnos de votação diferentes – e, além disso, teriam votação contrária dos sete Estados super-representados, que têm bancadas muito maiores do que sua população matematicamente determinariam: Roraima (7 deputados a mais do que deveria ter), Amapá (6), Acre (6), Tocantins (4), Rondônia (4), Sergipe (2) e Alagoas (1). Esses Estados, somados, deveriam ter 27 deputados, mas na realidade são representados por 57.

Além de tudo, grandes Estados do Nordeste, em discussões ao longo dos anos, já deixaram claro que não apoiarão a proporcionalidade porque conferiria a São Paulo um poder que julgam exagerado se somado a seu peso econômico.

 (Artigo de Ricardo Setti publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 13 de dezembro de 1990 sob o título original de “Chegaremos lá”)

DEIXE UM COMENTÁRIO

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *