Visto bem de perto, Salvador Allende é um homem de aparência saudável e jovial aos 62 anos, cabelos levemente ondulados com fios brancos, óculos de lentes grossas e bigode, olhos castanho-esverdeados. O candidato marxista que venceu as eleições presidenciais no Chile em 4 de setembro de 1970 ainda precisava ser confirmado pelo Congresso, segundo a Constituição do país.

De estatura mediana, espigado, não dá sinais neste 2 de outubro de 1970 da exaustiva campanha eleitoral que protagonizara, percorrendo boa parte da enorme extensão de seu país de norte a sul – uma tripa no mapa com 4.270 quilômetros de extensão. Sempre vale lembrar que esta foi sua quarta campanha pela Presidência. Ele foi candidato em 1952, em 1958 e em 1964, eleição em que foi derrotado pelo ainda presidente, Eduardo Frei, democrata-cristão.

Da mesma forma, não parece estressado pelas dificílimas negociações que sua coalizão de cinco partidos de esquerda – encabeçados por seu Partido Socialista e pelo Partido Comunista – mantém com a Democracia Cristã do presidente Eduardo Frei, sem cujo apoio não chegaria à Presidência.

[Allende acabaria tendo que engolir um Estatuto de Garantias democráticas e seria eleito pelo Congresso a 24 de  outubro de 1970, tomando posse a 4 de novembro. Cumprindo o acordo com os democratas-cristãos, o Estatuto foi encaminhado por Allende ao Congresso, que o aprovou no começo de janeiro de 1971.]

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O QG de Allende no centro de Santiago (Foto: @Ricardo Setti)

Fui encontrar Allende no comitê de campanha de sua coligação, a Unidade Popular, num velho edifício de esquina com pintura descascada e um grande cartaz eleitoral do presidente na Calle Catedral, em Santiago. A entrevista seria no térreo, onde já me encontrava, mas por alguma razão para chegar ali era preciso subir por uma pequena escada de madeira. Allende chegou pouco depois, trajando um blazer – ainda fazia frio no Chile em outubro – e uma camisa de gola rolê [como na foto abaixo, feita durante a campanha eleitoral], rara ocasião em que não se apresenta, formal, de terno e gravata. Me deu um forte aperto de mão e me convidou para sentar num pequeno gabinete.

Ali, pedindo desculpas, me explicou que trazia por escrito as perguntas que sua assessoria me havia pedido – até o grande repórter Joe Novitski, do The New York Times, precisou enviar sua lista, mas as perguntas foram feitas e gravadas ao vivo. No meu caso, porém, ele só conversaria de maneira informal. A entrevista propriamente dita seria a que recebi por escrito. A justificativa: as solicitações eram tantas que seria inviável manter longas conversas com dezenas ou mesmo centenas de jornalistas que pediam a mesma coisa. .

No meu caso, para a exigência das perguntas por escrito com certeza contribuiu o fato de o Jornal da Tarde ser inteiramente desconhecido no Chile apesar de pertencer ao grupo do Estadão, até porque só existe há cinco anos. No que entendi como gesto de cortesia, fez questão de vir pessoalmente a meu encontro com o texto em mãos e conversou comigo durante uns 15 minutos, e acabou admitindo algumas perguntas adicionais, que estão incluídas no texto abaixo.

Perto, observando, a sobrinha Ana Maria Bussi, secretária dinâmica e competente com seus 19 anos, com quem negociei a entrevista.

[Por razões que até hoje desconheço, provavelmente de falta de espaço, a entrevista não foi publicada na íntegra, até porque a do The New York Times saiu na mesma edição.]

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Allende em campanha: em sua quarta tentativa, conseguiu vencer as eleições – mas ainda depende de aprovação do Congresso (Foto: @La Tercera de la Hora) (Foto: @El Mercurio)

O candidato marxista à presidência do Chile que pode ser eleito, pelo Congresso, no próximo dia 24 de outubro deste 1970, excluiu a possibilidade da participação da Democracia Cristã em seu governo, nesta entrevista ao Jornal da Tarde. Na entrevista, Allende disse não acreditar na possibilidade de um boicote econômico ao Chile durante seu governo, afirmou que o “caminho para o socialismo no Chile não será construído por meio das instituições burguesas” e garantiu que os futuros membros da “assembleia popular” que seu governo pretende criar serão eleitos por “voto universal, livre e secreto”, com as mesmas garantias existentes atualmente.

Eis a entrevista:

JT – A Democracia Cristã, para apoiá-lo no Congresso, pretende que sua coalizão aprove uma emenda constitucional ampla, que assegure expressamente, entre outras coisas, a liberdade de expressão, o direito à reunião, o sistema nacional de educação e uma série de outras garantias. Isso causa dificuldades ao senhor?

Salvador Allende – Prefiro não me aprofundar no tema, que está em discussão entre as duas partes que você mencionou. Mas minha trajetória de 40 anos na política, desde o período como estudante, é um atestado de que sempre defendi esses direitos, que por sinal já são assegurados em nossa Constituição.

JT – Como seria a “Assembleia do Povo” proposta pela Unidade Popular? Qual seria a diferença com relação ao atual Congresso chileno? Por que o sr. considera importante essa modificação?

Allende – Nosso atual Congresso Nacional é composto por duas câmaras, o Senado e a Câmara dos Deputados. A Assembleia do Povo, como a chama o programa da Unidade Popular, será unicameral. Esta já é uma diferença substancial diante do sistema atual. Não obstante, sua constituição se fará, tal como a do atual Congresso, por voto universal, livre e secreto, com as mesmas garantias com que se elegem hoje os parlamentares.

JT — Mas por que a mudança?

Allende — Cremos que o sistema de câmara única torna ágil a tarefa do poder legislativo e coloca sua ação no ritmo que requer a administração de um Estado moderno. A “Assembleia do Povo” expressará nacionalmente a soberania, porque para ela confluirão e nela se manifestarão as diversas correntes de opinião.

JT – As negociações entre a Unidade Popular e a Democracia Cristã poderão finalizar num acordo que comprometa a execução do seu programa de governo?

Allende – Já são do domínio público os esclarecimentos que o Partido Democrata Cristão pediu, sobre pontos concretos do programa da UP. Nenhum acordo poderia ser feito à revelia do povo, que comprometesse o cumprimento do programa pelo qual ele votou majoritariamente. Por isso foi dado a público o documento democrata-cristão e se deu a conhecer a resposta da Unidade Popular.

JT – O sr. declarou que pretende “abrir o caminho para o socialismo no Chile”. Basicamente, como espera entregar o Chile a seu sucessor depois dos seis anos de seu governo? Quais seriam as diferenças em relação à situação atual?

Allende – Abrir o caminho ao socialismo basicamente significa, para nós, romper estruturas caducas que têm atado o país a uma dependência econômica de grandes empresas imperialistas, em relação com a propriedade e exploração de suas riquezas naturais, e de monopólios muitas vezes também controlados por capital estrangeiro, cuja ação impede e entrava um desenvolvimento e uma planificação que tenha como meta satisfazer as necessidades das grandes massas, antes que os anseios suntuários de pequenos grupos privilegiados.

JT — Essas empresas e monopólios a que o senhor se refere deverão ser expropriadas pelo Estado. A seu ver, isso não desestimula a atuação da iniciativa privada e os investimentos estrangeiros, importantes para o desenvolvimento de qualquer país?

Allende —Da recuperação de nossas riquezas e de sua exploração por sociedades mistas, com participação de capital do Estado e de particulares, sabemos que surgirá um estímulo econômico que gerará uma grande atividade em todo o extenso setor privado da mineração, da agricultura do comércio e dos serviços.  Tudo isso proporcionará, tanto ao Estado como às empresas, os recursos necessários para atender adequadamente às necessidades de seus trabalhadores em matéria de alimentação, habitação, vestuário, educação, saúde, distribuição etc.  Este novo quadro, a meu ver, fará girar a roda da economia. Este é o país que esperamos entregar a nosso sucessor, no qual haverá ainda muito por se fazer em nosso mesmo caminho, mas em que estarão criadas as bases para uma nova convivência social e econômica.

JT – Por que o sr. acredita que o Chile será uma exceção à regra comumente aceita de que “o socialismo não se constrói por meio das instituições burguesas”?

Allende – A tarefa da Unidade Popular é abrir no Chile um caminho para o socialismo, e esta tarefa pode perfeitamente cumprir-se, respeitando as instituições burguesas políticas que garantem a democracia representativa, que implica em pluralidade partidária, liberdade de expressão, eleições democráticas.  Mas não vamos utilizar mais instituições econômicas burguesas, como a propriedade privada das grandes empresas e monopólios – que de algum modo condicionam o desenvolvimento de nossa economia – nem vamos manter os bancos nem os seguros privados; vamos nacionalizar o comércio exterior e as grandes empresas e monopólios de distribuição. De modo que não se pode dizer que nosso caminho para o socialismo nós vamos construir por meio de instituições burguesas.

JT – Que dificuldades espera encontrar seu governo nos planos interno e externo?

Allende – É previsível que a transformação de estruturas econômicas que geram estruturas sociais convertidas em tabus pela propaganda de quem desfrutou dela em seu próprio benefício deva gerar algumas dificuldades. No entanto, estou certo de que um espírito de compreensão, que começo a perceber tanto na ordem interna como na externa, com relação às tarefas que vamos cumprir. Nossa forma de enfrentar os problemas do Chile fará com que essas dificuldades sejam muito menos graves e possam ser resolvidas com muito maior facilidade do que a que anunciam alguns agoureiros pessimistas.

JT – A Unidade Popular acha que o atual governo conseguiu controlar a crise financeira surgida depois da eleição de 4 de setembro?

Allende – Os economistas da Unidade Popular entregaram uma declaração sobre esta crise financeira. Ela contém nosso pensamento a respeito. [O documento citado responsabiliza em parte o governo do presidente Eduardo Frei pela crise financeira, tanto pelas medidas adotadas quanto pelas declarações feitas, consideradas alarmistas em alguns casos.]

JT – Como reagiria seu governo no caso de um eventual boicote econômico ao Chile?

Allende – Esta me parece uma pergunta meramente teórica porque não existe nenhuma possibilidade de que tal boicote se produza.

JT — Mas isso já se menciona às claras, em vários casos, na imprensa internacional…

Allende — O mundo ocidental compõe-se de muitíssimos países com regimes e critérios diversos e, em nenhum caso têm sido guiados em sua ação por uma só vontade. Além do mais, nós temos reiterado que nosso desejo é manter relações, especialmente comerciais, com todos os países do mundo, sem consideração a sua ideologia ou regime político interno, e especialmente queremos que esta política seja ativa em primeiro lugar com os países da América, da Europa Ocidental e com os países socialistas.

JT — Com os Estados Unidos também?

Allende — Os Estados Unidos já têm conosco uma porcentagem tão elevada de comércio que não requer que se considere em forma especial. Uma diversificação de nossos mercados por certo baixará essa incidência, ainda que – como esperamos — a atividade econômica interna incrementará em grande medida nossas exportações e importações. Considero ser possível que em volume [as relações comerciais com os Estados Unidos] não experimente uma deterioração.

JTAs negociações atuais com a Democracia Cristã poderiam levá-la a participar de seu governo?

Allende – Não. O governo estará formado pelos quatro partidos e dois movimentos que compõem a Unidade Popular. Além do mais, a Democracia Cristã já desmentiu oficialmente os rumores que se fizeram circular com o mesmo teor de sua pergunta. A DC definiu sua atitude como disposta a colaborar, dentro da mais absoluta liberdade, com medidas fundamentais que proporá o governo e com as quais eles concordam, em graduação de matizes.

(Entrevista com Salvador Allende feita por Ricardo Setti, enviado especial a Santiago do Chile, publicada originalmente no Jornal da Tarde, de São Paulo, a 3 de outubro de 1970) 

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