A ira e o horror de Israel não poderiam ser diferentes diante do massacre covarde e ignóbil dos terroristas do Hamas contra civis inocentes. Foi não apenas o pior e mais cruel atentado contra Israel desde a independência do país, em 1948, como a maior matança de cidadãos judeus desde o Holocausto. Mulheres estupradas antes de ser mortas, algumas diante dos filhos, crianças massacradas diante dos pais, mortos em seguida, decapitações e todo tipo de vileza, além de mais de 100 pessoas sequestradas e levadas para os sinistros túneis do Hamas na Faixa de Gaza.
A reação militar de Israel, porém, praticando a punição coletiva contra 2,1 milhão de habitantes virtualmente presos em Gaza, ultrapassou todos os limites das convenções internacionais sobre guerra e respeito mínimo a civis em situação de conflito: quase 40 mil civis mortos, sendo 15 mil crianças, as cidades do pequeno território superpovoado reduzidas a escombros, seus habitantes tangidos como gado para lugares “seguros’ que depois são bombardeados, passando fome por decisão de Israel, com pouquíssima água e nenhum saneamento, com hospitais e unidades de atendimento médico reduzidos a pó, sem dar conta de milhares de feridos, corpos enterrados de qualquer jeito em fossas coletivas, soldados fazendo piada com mortos e profanando casas e intimidades das mulheres ausentes de casas destruídas.
Não preciso abordar mais detalhes, todos nós estamos vendo pela TV as cenas horripilantes. Praticamente não há artigo ou parágrafo das convenções internacionais sobre guerra que os militares israelenses não estejam violando. Pode-se consultar para isso a Convenção de Genebra de 1949, sobre direito humanitário internacional, que incorpora e amplia decisões tomadas em três conferências anteriores, a primeira de 1864 – que já determinava, veja só, a garantia de integridade de hospitais e ambulâncias –, depois as de 1906 e de 1929. A Convenção em vigor inclui ainda três protocolos de emendas, o último deles de 2005.
Já no artigo primeiro da Convenção e dois de seus incisos se pode ter uma ideia do quanto está sendo violada em Gaza:
“1) As pessoas que não tomem parte diretamente nas hostilidades, incluindo os membros das forças armadas que tenham deposto as armas e as pessoas que tenham sido postas fora de combate por doença, ferimentos, detenção, ou por qualquer outra causa, serão, em todas as circunstâncias, tratadas com humanidade, sem nenhuma distinção de carácter desfavorável baseada na raça, cor, religião ou crença, sexo, nascimento ou fortuna, ou qualquer outro critério análogo. Para este efeito, são e manter-se-ão proibidas, em qualquer ocasião e lugar, relativamente às pessoas acima mencionadas:
- a) As ofensas contra a vida e a integridade física, especialmente o homicídio sob todas as formas, mutilações, tratamentos cruéis, torturas e suplícios;
(…)
- c) As ofensas à dignidade das pessoas, especialmente os tratamentos humilhantes e degradantes;
(…)”
O artigo 2º também está sendo pisoteado em Gaza:
“2) Os feridos e doentes serão recolhidos e tratados. Um organismo humanitário imparcial, como a Comissão Internacional da Cruz Vermelha, poderá oferecer os seus serviços às partes no conflito (…);”
Não é diferente a leitura do Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional, em julho de 1998, que no artigo 7º define Crimes contra a Humanidade, excluídos por mim itens que não se aplicam a Gaza:
“1 – Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por «crime contra a Humanidade» qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:
a) Homicídio;
b) Extermínio; (…);
d) Deportação ou transferência à força de uma população;
e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais do direito internacional;
f) Tortura;
g) Violação, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez à força, esterilização à força ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável;
h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de sexo, tal como definido no n.º 3, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis em direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste número ou com qualquer crime da competência do Tribunal;
i) Desaparecimento forçado de pessoas; (…)
k) Outros atos desumanos de carácter semelhante que causem intencionalmente grande sofrimento, ferimentos graves ou afetem a saúde mental ou física.
2 – Para efeitos do n.º 1:
- a) Por «ataque contra uma população civil» entende-se qualquer conduta que envolva a prática múltipla de atos referidos no n.º 1 contra uma população civil, de acordo com a política de um Estado ou de uma organização de praticar esses atos ou tendo em vista a prossecução dessa política;
- b) O «extermínio» compreende a sujeição intencional a condições de vida, tais como a privação do acesso a alimentos ou medicamentos, com vista a causar a destruição de uma parte da população;
Não apenas o panorama horrendo de Gaza é está sendo inflingido aos palestinos. Os palestinos da Cisjordânia também estão pagando um preço duríssimo. Já há mais de 500 mortos, muitos deles vítima da violência dos chamados “colonos” judeus – na verdade, “colonos” é a palavra para disfarçar o que na realidade são invasores de território alheio, que não tomam conhecimento decisões da ONU e em muitos casos a própria lei de Israel, e têm como um dos principais passatempos destruir plantações de palestinos. As “colônias” são protegidas pelo Exército de Israel, que jamais interfere para deter a ação dos “colonos” extremistas, a maioria armados.
Mais de 8 mil palestinos da Cisjordânia já estão presos, em condições que organizações internacionais são impedidas de verificar.
A onda internacional de antissemitismo é um absurdo e uma insensatez que deve ser duramente combatida pelas pessoas de bem, pois os atos de guerra de Israel não têm nada a ver com o povo judeu — sem contar as muitas manifestações de judeus em vários países contra a ação militar israelense em Gaza. Só entre o ataque do Hamas, em 7 de outubro, e o final do ano de 2022 a Anti-Defamation League, organização judaica dos EUA que monitora as manifestações de antissemitismo, registrou mais de 2 mil episódios apenas em território americano — 370% do que no mesmo período do ano anterior.
Mas o que se vê na vida real é Israel caminhando para tornar Israel um pária internacional. E pela primeira vez fora do âmbito radical muçulmano, contesta-se não apenas os atos do governo comandado pelo corrupto carreirista Benjamin Netanyahu, mas o próprio direito de o país existir — direito reconhecido quase todos os países do planeta, inclusive por vários países árabes, a começar pelos vizinhos Egito e Jordânia, mas também pela entidade que por décadas representou oficialmente os palestinos, a Organização para a Libertação da Palestina (hoje a Autoridade Palestina), e mais Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Sudão e Marrocos.
Israel deu de ombros à crescente pressão para poupar civis vinda de seu principal aliado e sustentáculo desde sempre, os Estados Unidos, com Netanyahu criticando o governo Biden como se não dependesse desesperadamente do apoio norte-americano. “Se tivermos que estar sós, estaremos”, chegou a dizer a certa altura. O plano de cessar-fogo que os Estados Unidos aprovou na ONU milagrosamente sem o veto dos adversários Rússia e China não mereceu até agora maior consideração por parte do governo de extrema-direita. Várias tentativas de outro tipo não deram em nada, por recusa de Netanyahu – a tal ponto que integrantes da oposição que compunham um governo de união nacional com os partidos de extrema direita deixaram a companhia incômoda.
Chegou-se mesmo a desaforos em relação aos Estados Unidos: quando Biden, como forma de pressão, suspendeu o envio de 3.500 bombas de alta potência para Israel, o mais extremista dos ministros de Netanyahu, Itamar Ben Gvir, publicou no ex-Twitter uma mensagem dizendo que a organização terrorista Hamas “ama Biden”.
O ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, já anunciou que Gaza após a guerra será administrada por Israel e não por representantes dos próprios habitantes. Ou seja, se isso prevalecer, Gaza será novamente um território ocupado, depois de ter sido tomada pelo Egito ainda durante o mandato britânico da Palestina e anexada ao território egípcio, ocupada por Israel após a Guerra dos Seis dias, em 1967, governada pela Autoridade Palestina a partir de 2005, quando o então primeiro-ministro israelense Ariel Sharon ordenou a retirada à força de “colonos” israelenses ali instalados até que, em 1996, o partido da organização terrorista Hamas venceu as primeiras e únicas eleições relativamente livres na história do território.
Instalado no poder, o Hamas – que tem em seus estatutos a missão de destruir Israel – nunca mais fez eleições e governa o território com uma ditadura implacável há 28 anos. Seus moradores convivem com essa ditadura e com as inúmeras restrições de Israel sobre movimento de pessoas para fora da Faixa, além de limites para tudo o que Gaza importa, por “razões de segurança” – é proibido, para ficar com um exemplo que é uma zombaria, a entrada de chocolate. Israel também proíbe a utilização do próprio mar territorial de Gaza para pesca além de um limite insuficiente de 6 milhas náuticas (11,1 quilômetros). A Marinha de Israel patrulha dia e noite as águas diante da Faixa.
Gaza e suas cidades estão quase inteiramente varridas do mapa. 79 mil residencias foram totalmente destruídas, segundo a ONU, e outras 390 mil sofreram severos danos, e há milhares de toneladas de entulho que um dia precisarão ser retirados. Quem e como vai reconstruir tudo que foi arrasado? De onde virão os recursos? Quem vai tomar a decisão e orientar os trabalhos?
“O mundo não viu nada parecido como a destruição de residências em Gaza desde a II Guerra Mundial e não vai ser possível restaurar casas e apartamentos até 2040”, disse ainda no final de maio Achim Steiner, administrador do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. “Se a guerra parasse hoje. Cada dia de guerra está exigindo custos enormes e crescentes para os habitantes de Gaza”.
O pior é o que vai piorar: o mesmo ministro da Defesa Gallant anunciou oficialmente: para erradicar o Hamas Israel precisa continuar a guerra por mais 7 meses.
Valha-nos Deus.
2 Comentários
Texto oportuno, profundo e equânime, como convém ao bom jornalismo. É um prazer reencontrar os artigos e a inteligência de Ricardo Setti. Muito obrigado por suas boas palavras, caro José Paulo. Obrigado por visitar o site. Espero que apareça mais vezes. Gosto de seu trabalho e tenho muito respeito por você. Um abração!
Parabéns, Setti! Um dos textos mais isentos que já li até agora, desde o início desse conflito. Informações precisas e sem viés. Aliás, material enviesado, como o que se lê na maioria dos veículos, aqui do Brasil e do Exterior, virou uma das doenças de nosso tempo. Esse é o Grande Setti, dos tempos do Jornal do Brasil, da Abril e do Estadão. Um prazer e um alívio poder acompanhar seu trabalho novamente. Caro Taquari, é uma honra que alguém, como você, que estimo e respeito, esteja visitando este recém-lançado site e comentando um de seus posts. Muito obrigado por seus elogios, produtos certamente de sua generosidade. Grande abraço!