A política colonial do governo português na África está vivendo, com certeza, uma das maiores crises de sua história e, justamente neste momento, surgem novas denúncias de massacres contra a população nativa em uma das colônias – Moçambique.
As denúncias só deverão piorar a situação para o governo português, já profundamente abalado pelo recente reconhecimento da Guiné-Bissau como país independente na ONU, por 93 votos a 7, e pelo bloqueio total do petróleo árabe a Portugal, decidido na semana passada, em Argel. Quanto a este, apesar de afetar de imediato a já frágil economia portuguesa (mais de 50% do orçamento destinado a gastos militares, que na esmagadora maioria destinam-se à guerra colonial na África), já está apresentando uma espécie de efeito multiplicador. Nos campos político e econômico, como os árabes reagiram em resposta ao apoio recebido da África negra no conflito do Oriente Médio, o isolamento do governo português deve aumentar.
Em consequência, a amizade com Portugal, um país visado pelos fornecedores árabes, é agora um item problemático em muitas agendas diplomáticas ocidentais. Além do mais, há a questão dos cerca de dois milhões de portugueses que vivem e trabalham fora do país e que, sustentando suas famílias, são fonte permanente de divisas para Portugal. Nos últimos dias, devido à crise do petróleo, a Alemanha Ocidental e a Dinamarca já anunciaram a proibição da imigração de trabalhadores de países não pertencentes ao Mercado Comum Europeu (caso de Portugal).
A Dinamarca foi mais longe, anunciando também a rescisão dos contratos de trabalho com esses operários. Logo outros países que recebem centenas de milhares de portugueses, como a França, a Grã-Bretanha e a Bélgica poderão seguir o exemplo. Além do mais, é evidente que, com a recessão econômica trazida pela falta do petróleo, a onda de desemprego prevista deverá atingir primeiro os estrangeiros em cada país – e nestes os portugueses representam um importante contingente.
No meio desses problemas e paralelamente ao crescimento das atividades dos movimentos de libertação em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, vêm as denúncias. Foram feitas pelos padres católicos espanhóis Martin Hernandez Robles e Alfonso Valverde León, expulsos de Moçambique depois de 23 meses de prisão. Eles foram testemunhas de quatro chacinas cometidas em 1971, mas que só agora vêm a público.
São as que seguem:
1) “Nos dias 7 e 8 de maio desse ano, um pelotão português matou 26 lavradores africanos nos povoados de Mahanda, Kapinga e Antonio. Eram pessoas pacíficas que cultivavam suas terras. Algumas vezes, deram de comer a guerrilheiros da Frente de Libertação de Moçambique, a Frelimo. (…) Muitos deles morreram torturados a pauladas”;
2) a 1º de setembro, autorizadas pelo governo português, entram em Moçambique forças da Rodésia (governada pela minoria branca e aliada da África do Sul racista) à caça de guerrilheiros. “Na aldeia de Singa, matam uma família inteira: um ancião, seu filho de 10 anos, sua filha recém-casada e grávida, suas três noras com seus filhinhos, que transportavam às costas, à maneira africana”;
3) a 4 de novembro, chega à aldeia de Antonio, na região de Buxo, uma patrulha de 40 soldados para arrasar todas as aldeias próximas, cujos habitantes tinham sido obrigados a abandoná-las e viver nos “aldeamentos”, onde são “protegidos” contra os guerrilheiros; os padres alertaram as populações, mas alguns ficaram por lá. “A patrulha encontrou um grupo de 16 pessoas que se preparavam para fugir. Obrigou-as a entrar numa cabana e começou a atirar-lhes granadas para queimá-las vivas”; só uma mulher escapou;
4) na primeira quinzena de outubro, os povoados próximos ao rio Dack “foram cenários de terríveis torturas e mortes de pessoas inocentes. Por se recusarem a trair a Frente de Libertação de Moçamtique (Frelimo), 16 camponeses foram eliminados a sangue frio diante de várias pessoas”; um professor da missão dos padres, Damian Conga, que se recusou a denunciar o local de bases guerrilheiras, foi torturado até a morte diante da mulher e dois filhos pequenos.
As denúncias já estão repercutindo na Europa e até o governo espanhol do “generalíssimo” Franco, sempre compreensivo para com a ditadura portuguesa, autorizou que os padres falassem livremente à imprensa.
(Artigo de Ricardo Setti publicado no Jornal do Bairro, de São Paulo, em 5 de setembro de 1973.)
