A nova Lei Orgânica dos Partidos Políticos, já sancionada pelo presidente da República e publicada ontem, 22 de julho deste 1971 pela imprensa, é vasta, prolixa e maçante como qualquer outra que a anteceda. O que chama logo a atenção, contudo, é seu caráter melancolicamente antidemocrático.

A nova lei repete, com poucos detalhes divergentes, dispositivos da lei anterior ou de leis especiais que dispuseram sobre matéria eleitoral nos últimos anos. Em itens como fundação e registro dos partidos políticos, programa e estatutos, órgãos de liberação, direção e representação, finanças e contabilidade, nada de mais e pouco de novo. 

A parte mais lamentável é a que trata da disciplina partidária. De acordo com a Constituição, o artigo 72 diz que “o senador, deputado federal, deputado estadual ou vereador que, por atitude ou pelo voto, se opuser às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos de direção partidária ou deixar o partido sob cuja legenda foi eleito, perderá o mandato”. Logo abaixo, no artigo 73, a nova Lei diz o que são as chamadas “diretrizes legitimamente estabelecidas”: são as que “forem fixadas pelas Convenções ou Diretórios Nacionais, Regionais ou Municipais, convocadas na forma do estatuto e com observância do quórum de maioria absoluta”.  

Ora, o artigo 72 prevê a possibilidade de um deputado se opor a essas diretrizes por “atitudes”.  Deixando de lado as possíveis discussões ontológicas, a opinião pode perfeitamente ser considerada uma atitude. Um deputado ou senador pode, pois, perder o mandato porque tem opinião contrária à adotada pelo Diretório Municipal, Regional ou Nacional. Quer dizer, a nova Lei esquece que deputados e senadores podem ter aquela manifestação de hombridade normalmente conhecida por consciência. 

Nenhum observador precisa fazer qualquer esforço mental  para chegar a esta conclusão, porque a própria Lei se encarrega de deixar tudo claro: logo no artigo 74, dispõe que “considera-se também descumprimento das diretrizes legitimamente estabelecidas” fatos como “criticar, fora das reuniões reservadas do partido, o programa ou as diretrizes partidárias” e “deixar ou abster-se propositadamente, de votar em deliberação parlamentar”.  O direito à crítica e o direito à atitude, são, singelamente, vedados aos políticos, de agora em diante, pela Lei Orgânica dos Partidos Políticos.

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Reprodução da matéria publicada no jornal © Reprodução

Isso significa que, para o futuro (estamos no terreno das hipóteses ou, dependendo do grau de ceticismo do observador, da fantasia), tornar-se-ão impossíveis atitudes dignas e revestidas da rebeldia mais salutar como as que adotaram diversas vezes, na legislatura passada, políticos como o deputado Brito Velho [Arena-RS ou Djalma Marinho [Arena-RN], que preferiram seguir antes a própria consciência pessoal ou política do que a orientação de lideranças, levadas a esta condição sabe Deus por que ironia do destino.

Ou atitudes sérias como a do deputado Almino Afonso que, nos idos de Goulart, sendo peça importante no esquema do governo, pronunciou-se na Comissão de Justiça da Câmara contra o estado de sítio que o próprio governo solicitara.  A lista de episódios é longa, embora tenha havido uma sintomática diminuição de frequência de uns anos para cá.

É difícil dizer, agora, que consequências poderá a nova Lei produzir entre os parlamentares da Arena (a quem, evidentemente, ela se destina em primeiro lugar). Pode-se dizer, contudo, com alguma segurança, que dificilmente ocorrerão renúncias, deserções e críticas importantes. Mesmo se levarmos em conta – e este é um detalhe mais importante do que parece – que a Lei ainda não está em vigor. E o que se pode dizer com toda segurança é que leis desse tipo nada acrescentam ao antigo prestígio, hoje minguadamente sustentado por algumas individualidades ilustres, do Congresso Nacional. 

A Lei Orgânica dos Partidos Políticos contém, é certo dispositivos louváveis, como o que proíbe alianças ou acordos entre partidários de agremiações diferentes. Mas muitos outros são inócuos. Por exemplo: os que atribuem à Justiça a palavra final sobre os processos de perda de mandato por infidelidade partidária e, ao mesmo tempo, amarram o Judiciário em normas estritas de julgamento, que pouco deixam ao bom senso dos juízes e tribunais. Outros dispositivos são descabidos. Exemplo: a exigência de que cada cidadão signatário de uma lista para fundar um partido político nela aponha o número de seu título de eleitor (e, não bastasse isso, há ainda a exigência de que a Justiça Eleitoral confira as assinaturas – em duas vias – desses eleitores. No caso do partido do [partido que o] dr. Pedro Aleixo [quer organizar], por exemplo, os funcionários da Justiça Eleitoral terão que contar e conferir mais de um milhão de assinaturas). 

No mais, a nova Lei é extensa e casuística como um regulamento do imposto de renda. Prevê todos os processos, prazos, audiências, instruções, representações, registros, votações, quóruns e autuações que se possam imaginar.  Regulamenta desde a substituição de um suplente de delegado a uma convenção municipal até o mais intrincado problema de fiscalização financeira. Prevê todo o procedimento necessário à realização das convenções e eleições partidárias, à fundação e registro de partidos, à inscrição de eleitores e candidatos.

É uma lei tecnicamente bem feita, redigida em vernáculo razoável. Só há para lamentar que, aprovando-a, deputados e senadores tenham contribuído com seus próprios votos para a restrição, a um só tempo drástica e melancólica, de prerrogativas que no passado eram indispensáveis ao exercício de um mandato parlamentar com independência.

(Post de Ricardo Setti, de São Paulo, publicado originalmente sob o título “É proibido divergir” a 23 de julho de  1971 no Jornal da Tarde)

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