O governo decidiu-se, enfim, contra a anistia, a estudantes e trabalhadores que tramita no Congresso. O líder Ernani Sátyro [PB] já anunciou a posição oficial, embora reconheça que há simpatia pelo projeto dentro da Arena – e não pouca. [Beneficiaria os manifestantes que protestaram contra a morte, pela polícia, do estudante Edson Luís de Lima Souto no Rio].

Mesmo assim, a Comissão de Justiça da Câmara aprovou, ontem, o projeto, por 13 votos a 1. Nessa comissão, como em todas as outras, a Arena tem 23 dos membros. No entanto, o único voto contrário foi o do deputado monsenhor Arruda Câmara, da Arena de Pernambuco, “por convicção política”. [A Comissão não examina o conteúdo ou mérito dos projetos, detendo-se somente em apreciar se são juridicamente corretos e de acordo com a Constituição.]

O líder Ernani Sátyro solicitou vista para a Comissão de Segurança Nacional: alega que o assunto em pauta não é apenas jurídico. Os eventuais anistiados praticaram, alega-se, crimes contra a segurança nacional; logo, a respectiva comissão deve ser ouvida. Na verdade, Sátyro quer protelar a ida do projeto a plenário. Quanto mais demorar, mais arenistas ortodoxos chegarão a Brasília para votar contra.

A Comissão de Segurança Nacional poderá também rejeitar o projeto: entre os arenistas que a integram há vários [parlamentares considerados] “duros”, a começar pelo deputado Clóvis Stenzel [Arena-RS]. Há outros: o deputado-coronel Agostinho Rodrigues [Arena-PR], os suplentes Haroldo Veloso (da Arena da Guanabara, brigadeiro da reserva, coronel ao tempo dos levantes militares contra o governo Juscelino em Aragarças e Jacareacanga) e Paulo Biar [Arena-RJ] (major do Exército, ex-secretário de Segurança do Estado do Rio). 

Por que o governo é contra a anistia? Sátyro justifica dizendo que a anistia não pode ser concedida “em plena luta”, ainda mais quando se sabe que os estudantes não vão modificar suas atitudes para com o regime. É o mesmo – e antigo — raciocínio do vice-líder Ruy Santos [BA]. Anistia só se concede quando se encerra um ciclo de disputa política e ideológica. Também pensa assim o deputado Clóvis Stenzel, para quem “os homens do governo não devem ser mais a favor da liberdade do que da ordem”.

Invocar-se a concessão de anistia é “imprudência e impatriotismo”. Diz Stenzel que, se os anistiados voltarem às ruas, “como pretendem e como prometem”, para contestar o regime “que irá esquecer seus crimes, para novamente acusarem de ditatorial o governo do qual reclamam liberalidade”, claro que o benefício “causará consequências danosas à sociedade, por cuja tranquilidade o governo terá de zelar”.

Stenzel vai mais longe. Diz que os órgãos de segurança do governo têm documentos que provam, cabalmente, a existência de um plano de guerra revolucionária para conquistar o poder. Nesse plano, têm muita importância alguns líderes universitários, “filiados ao Partido Comunista”, cujo objetivo é colocar a massa estudantil a serviço de seus objetivos. Portanto — conclui Stenzel – seria ingenuidade pensar que a anistia detivesse o processo de tomada do poder. Para isso, as medidas são outras.

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Reprodução da matéria publicada © Reprodução

Vários arenistas discordam do ponto de vista do governo. Além do lado puramente humano, vêem o político: a anistia desarmaria os espíritos, colocaria os próprios estudantes em situação constrangedora para promover novas manifestações violentas. O deputado Último de Carvalho [MG], por exemplo, continua anunciando que votará a favor do projeto. Isso, contudo – adverte – não significa mudança de opinião quanto a seu apoio ao governo. “Se para mim mudar de roupa é difícil, ainda mais é mudar de opinião”.

Além dos 31 deputados arenistas que votaram a favor do regime de urgência para o projeto de anistia — que provavelmente votarão da mesma forma no mérito – já se contam quase 20 outros com intenção idêntica. Um deles é o ex-governador Virgílio Távora, do Ceará; outro, o deputado gaúcho Flores Soares. Também Aluísio Nonô [AL], Marcos Kertzman [SP], e Paulo Freire [MG]. Isso traz à oposição um certo otimismo. Discreto, diga-se: ninguém ignora o efeito que tem sobre o Congresso qualquer consideração, pelo governo, de um projeto como sendo de interesse para a segurança nacional. E é nesses termos, sem dúvida, que o governo colocará o problema à sua bancada.

O presidente do MDB, senador Oscar Passos [AC], considera o projeto o primeiro passo “para a verdadeira pacificação nacional”: não apenas a política, “mas a de todo o povo”. Passos diz que um governo que quer trabalhar em paz “não pode abrir mão de uma oportunidade como essa”. Mario Covas [SP], o líder na Câmara dos Deputados, vê a coisa por outro ângulo. Para ele, o importante é que a Câmara “está sendo sensível à opinião pública mais que à pressão do governo”.

A anistia faz parte da História política do País. Mesmo começando no passado não muito remoto — a Revolução de 1930 — diversas vezes a medida foi decretada, beneficiando inclusive os anistiadores. Em 30, foram anistiados todos os participantes de movimentos revolucionários desde 1922. Entre os beneficiados, estão os hoje presidente e vice-presidente da República, que eram então o tenente Costa e Silva e o jovem advogado Pedro Aleixo. Pouco antes da Revolução de 30, a Câmara rejeitou projeto de anistia apresentado pela oposição. João Mangabeira, o relator, disse que a anistia é a magnanimidade da maioria à minoria. Nunca o oposto.

A Constituinte de 1934 concedeu também anistia ampla e total. No caso da ditadura, em abril de 1945, Getúlio decretou a anistia, beneficiando os que tinham lutado contra o regime, inclusive os signatários do Manifesto dos Mineiros e diversas personalidades condenadas pelo Tribunal de Segurança Nacional. A medida incluiu os comunistas, que em seguida apoiariam as teses do queremismo [movimento pela volta de Getúlio mesmo depois de ser derrubado por um golpe que encerrou seu período ditatorial, em 1945] e da Constituinte com Getúlio.

Um pouco mais recentemente, em 1956, houve anistia promovida pelo então presidente Juscelino Kubitschek para os participantes dos movimentos militares de Aragarças e Jacareacanga, que acabou beneficiando também os anistiadores: um dos artigos do decreto legislativo de anistia estendeu-o a todos os envolvidos em movimentos sediciosos a partir de 10 de novembro de 1955, véspera do golpe desfechado pelo general Lott, que acabou sendo ministro da Guerra.

Também houve anistia geral após a renúncia de Jânio Quadros. O projeto foi de autoria dos senadores Cunha Melo [PTB-AL] e Argemiro de Figueiredo [PSD-PB], entre outros. Como Cunha Melo era do PTB, e a anistia beneficiou diversos membros do governo de então, do petebista João Goulart, que haviam se insurgido contra os ministros militares de Jânio, logo em seguida à renúncia, durante a Campanha da Legalidade pela posse do vice-presidente.

[Os ministros militares de Jânio se opunham à posse do vice João Goulart, e a Campanha da Legalidade foi um movimento liderado pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, para que Goulart assumisse, de acordo com a Constituição. A crise só terminou quando o Congresso, às pressas, aprovou uma emenda constitucional introduzindo o parlamentarismo, regime no qual o presidente dispõe de limitado número de poderes. Jango assumiu, e nomeou o então deputado e ex-ministro da Justiça Tancredo Neves como primeiro-ministro. Em 1963, um plebiscito revogaria o parlamentarismo e restabeleceria o regime presidencialista.]

Dentro da Arena, há setores ponderáveis que trabalham pela aprovação do projeto [de anistia, de autoria] dos deputados Paulo Macarini [MDB-SC] e Edgar da Matta Machado [MDB-MG]. Para esses setores arenistas, a anistia será um grande passo de abertura democrática, e um gesto de grandeza que só poderá trazer consequências benéficas.

(Artigo de Ricardo Setti publicado no Jornal da Tarde, de São Paulo, a 9 de agosto de 1968, sob o título de “Governo contra a anistia”)

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