Com a indicação do deputado Geraldo Freire [Arena-MG] e do senador João Cleofas [Arena-PE] para as presidências da Câmara e do Senado, ontem referendada pelos respectivos plenários, os políticos permitiram que a Revolução fizesse uma investida direta e singela num dos poucos assuntos que ainda se presume serem objetos de exclusiva deliberação de deputados e senadores: a escolha dos presidentes das Casas do Congresso. [Observação: no Jornal da Tarde e no Estadão, na época, era obrigatório chamar de “Revolução” o golpe de Estado de 1964.]

[A promoção do deputado Geraldo Freire, parlamentar ativo e combativo, mas de importância secundária ao longo de vários mandatos, deve-se à sua docilidade ao regime durante o processo de pedido de licença para processar o deputado do MDB Márcio Moreira Alves por um discurso em que supostamente ofendeu o Exército. Então vice-líder do governo, Freire assumiu o posto por doença do titular, Ernâni Sátyro (Arena-PB), parlamentar de mais peso e maior compromisso com a instituição.

Como líder, Freire fez o possível e o impossível para agradar ao Planalto durante a tramitação do pedido de licença, que terminou sendo negado pela Câmara, levando o regime a decretar o Ato Institucional número 5, em 13 de outubro de 1968, e fechar o Congresso. Uma de suas manobras mais ousadas foi a inédita substituição, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, de todos os deputados da Arena – partido do governo – que sabia serem contrários a cortar a cabeça de Márcio por parlamentares obedientes ao Planalto. A manobra fez a comissão aprovar o pedido para processar o deputado, que, no entanto, seria rejeitado num dia de forte afirmação do Legislativo.]

A indicação feita pelo presidente Médici é o coroamento de um processo longo de interferência consentida do Executivo nos assuntos do Legislativo, iniciado já em 1965, com a derrota do deputado Ranieri Mazzilli [do extinto PSD de São Paulo] na sua oitava tentativa de reeleger-se presidente da Câmara. 

A derrubada de Mazzilli após um pomposo e absoluto reinado se deveu à enérgica articulação empreendida pelo presidente Castelo Branco em favor do deputado Bilac Pinto [da extinta UDN de Minas Gerais]. Bilac voltou da ONU, onde se achava em missão oficial, já feito candidato da Revolução.

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Geraldo Freire: docilidade absoluta ao regime faz deputado de segundo escalão chegar ao comando da Câmara Foto: @Arquivo de Boa Esperança

O processo havia sido previamente desencadeado: Castelo telefonou pessoalmente a vários líderes do PSD e da UDN (partidos na época ainda existentes), mandou ministros ao Congresso (como o general Cordeiro de Farias), fez veladas insinuações a respeito da origem revolucionária de um e outro candidato em luta.

O ministro da Guerra [título na época do ministro do Exército, cargo extinto em 1999 com a criação do Ministério da Defesa], general Costa e Silva, entrevistou-se com vários parlamentares, enquanto fontes palacianas acenavam com a nada agradável perspectiva de um novo Ato Institucional (àquela altura o de número 2, que acabaria mesmo sendo editado meses depois, embora por motivos diversos).

E Bilac venceu: 200 votos contra 167. A UDN votou em massa em Bilac (91 votos). O PSD abandonou Mazzilli, dando 7 votos a Bilac. Mazzilli caiu, a despeito de sua ainda recente conversão aos princípios revolucionários e à sua solidariedade aos ideais da Revolução, já devidamente expressada em abril de 1964, por ocasião da vitória desta e de sua posse formal e interina na Presidência da República [na condição de sucessor do então presidente João Goulart, que havia assumido em 1961 como vice de Jânio Quadros, que renunciou ao mandato]

O ano seguinte marcou a segunda intervenção na eleição do presidente da Câmara. E marcou o fim das disputas em plenário. Só houve luta dentro da Arena, sendo candidatos os deputados Adaucto Lúcio Cardoso, da Guanabara, e Nilo Coelho, de Pernambuco. Uma consulta ao partido, feita pelo líder Raimundo Padilha [Arena-RJ], mostrou a preferência por Adaucto, por 120 votos contra 91 e 11 abstenções.

Ambos eram simpáticos ao presidente da República, que desarmou todas as outras candidaturas antes mesmo que elas surgissem. E Adaucto foi o presidente da Câmara até renunciar ao posto, em outubro de 1966, no episódio de sua recusa a aceitar novas cassações de mandatos de deputados, entre essas a de Doutel de Andrade, ex-líder do PTB e seu ferrenho adversário durante o regime deposto.

O velho liberal renunciou ao sentir-se desautorizado pela Mesa e pela Câmara, aquela por não acompanhar sua posição sobre as cassações, entendidas como forma de tolher a soberania e a independência do Legislativo, esta por tê-lo abandonado sozinho na sua luta pela afirmação do mandato popular.

Na época, a bravura e a independência do deputado Adaucto Lúcio Cardoso foram confundidas, propositalmente, diga-se, como manifestação de uma atitude antirrevolucionária (como antes tinha sido mal interpretado seu pronunciamento em favor da posse do vice-presidente João Goulart e pela prisão dos ministros militares desejosos de uma decisão extraconstitucional para a crise decorrente da renúncia de Jânio).

[Adaucto sofreria a humilhação de ver a Câmara cercada por tropas do Exército, comandadas pelo então coronel  Carlos de Meira Mattos, que cortaram a energia elétrica para o prédio. Meu grande amigo e colega no Jornal da Tarde Rolf Kuntz estava dentro do Congresso naqueles momentos e registrou tudo].

Com a renúncia de Adaucto, assumiu Batista Ramos [Arena-SP], egresso do PTB, que ocupava a vice-presidência.  Batista Ramos, como aliás os demais membros da Mesa, à exceção talvez do deputado Aniz Badra [Arena-SP], discordara da posição do presidente da Câmara com relação às cassações, e abandonara-o às feras. Mas assumiu sem dores de consciência, em 28 de novembro de 1966. “O que houve, apenas, com relação ao deputado Adaucto Lúcio Cardoso, foi divergência de pontos de vista”, explicou já instalado na cadeira da presidência.

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Reprodução da matéria publicada © Reprodução

Em 1967, Batista Ramos continuou presidente. Foi candidato com apoio integral do presidente Costa e Silva. Candidato único, eleito com 329 votos contra 3 dados a outros candidatos, 2 nulos e mais 10 brancos. O deputado Ernani Sátyro [Arena-PB], que a princípio resolvera concorrer, acabou desistindo.

No ano seguinte, a Revolução nem precisou intervir diretamente: a disputa se fazia uma vez mais dentro da Arena, em torno de dois nomes que igualmente serviam aos interesses do Executivo: Batista Ramos, de exemplar fidelidade revolucionária no cargo que vinha exercendo, contra José Bonifácio, cujos arroubos de independência nunca foram suficientes para encobrir uma fidelidade efetiva ainda maior.

Os arenistas tiveram o gostinho raro e esporádico de votar apenas na prévia, que acabou indicando Bonifácio, cujo trânsito no plenário vinha há longos meses sendo cultivado.

No Senado, a história se resume mais rapidamente. Depois de oito anos na presidência do Senado, o senador Auro Moura Andrade [Arena-SP] houve por bem desistir de reeleger-se, talvez ainda sob os efeitos dos fluxos do ilustre debate em torno do conteúdo de togas e japonas. [O senador reagira contra os inquéritos militares envolvendo políticos, proferindo a frase: “Japona não é toga, e o que está dentro dela não é juiz”.]

Auro conseguiu articular a escolha de seu sucessor, o afabilíssimo senador Gilberto Marinho [Arena-GB], com o qual a Revolução não tinha qualquer motivo de preocupação. Gilberto Marinho sempre agradou a gregos e troianos, sempre foi moderado. E é general da reserva. Se fosse outro o nome, não há dúvida: a Revolução teria usado de recursos mais drásticos.

Agora, a Revolução deixou de lado os subterfúgios. Nomeou, pura e simplesmente, os dois presidentes, e só faltou que deputados e senadores, em claque, aplaudissem calorosamente. Há um detalhe importante: desta feita a Revolução não premiou os preteridos, prática muito exercitada em épocas anteriores. Os derrotados, os ex-futuros candidatos, não receberam nada, nenhum cargo, nem tapinhas nas costas. 

Antes, foram muitos os prêmios de consolação: Nilo Coelho perdeu a presidência da Câmara para Adaucto e ganhou o governo de Pernambuco. Ernani Sátyro desistiu em favor de Batista Ramos e ganhou a liderança do governo na Câmara. Auro Moura Andrade entregou o cargo a Gilberto Marinho e ganhou uma embaixada na Espanha, graças, aliás, a malabarismos jurídicos executados para contornar um gritante impedimento constitucional.

A escolha de Geraldo Freire e João Cleofas compõe um quadro mais amplo de abdicação de prerrogativas mínimas por parte dos políticos. O quadro se completa com a atitude dócil e passiva que os políticos adotam diante das sucessivas nomeações de governadores, não querendo influir senão em torno de interesses pessoais ou regionais feridos, e com a encampação em cadeia que se observa dentro da Arena à ideia de um vestibular para candidatos para cargos eletivos, de autoria do ministro da Justiça.

O fecho de ouro é a euforia com que está sendo recebida a sugestão de escolherem-se os candidatos a deputado e senador dentro dos diretórios – [duas dezenas ou pouco mais de integrantes – e não mais nas convenções, com várias centenas ou até milhares de participantes] – como seria desejável para haver um mínimo de representatividade. 

O que resta das lideranças políticas não tem sequer uma remota preocupação de alimentar pruridos de independência, de dignificação da função, de afirmação do poder civil. Do jeito que as coisas vão, não deixa de ser lícito aguardar-se que deputados e senadores solicitem ao governo uma importante decisão revolucionária: a escolha das flores que vão compor a decoração do plenário do Congresso para a sessão inaugural, hoje.

Poderão ser palmas, rosas ou talvez hortênsias. Quem sabe?

(Post de Ricardo Setti, enviado especial a Brasília, publicado originalmente no Jornal da Tarde, de São Paulo, com o título de “Mas ainda há as flores, pelo menos”)

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