
Encerradas as Olimpíadas de 2004 da Grécia, começam a ser feitos os tradicionais balanços sobre a participação brasileira – tida como a melhor até hoje, apesar de algumas duras decepções – suas causas, consequências e lições que encerram.
A nós, jornalistas, seria útil tentar analisar o que foi nossa cobertura dos Jogos, especialmente a feita pelo veículo que atinge o maior número de consumidores de informação: a televisão.
Vista com um mínimo de distanciamento, a cobertura da televisão – canais abertos e canais por assinatura, especializados ou não em esportes – percorreu em maior ou menos grau, com raríssimas exceções, cinco diferentes vertentes que consistiram em:
1) torcer pelos brasileiros, em qualquer modalidade ou circunstância;
2) comemorar as poucas vitórias, e tentar a todo custo justificar as derrotas;
3) consolar, via transmissões ou mesmo pessoalmente, os atletas derrotados;
4) considerar “excelente” a participação brasileira, ainda quando o atleta ou a equipe teve desempenho bisonho e ficou em último lugar, como ocorreu com o handebol masculino;
5) afirmar ao público que certamente nos próximos Jogos tudo vai melhorar.
Será isso jornalismo? Terá sido a cobertura dos Jogos minimamente isenta, preocupada em apurar fatos e bastidores, ir atrás da informação exclusiva, ligar causa e efeito?
Não há dúvida de que as emissoras, em graus diferentes, fizeram um grande investimento na cobertura dos Jogos. Equipes numerosas foram levadas a Atenas. Houve um esforço hercúleo para, no caso das emissoras abertas, encaixar as competições na grade de programação.Técnicos e ex-atletas com excelente grau de conhecimento viram-se convocados a comentar eventos e dissecar seus meandros – dessa vez sem serem incomodados pelo corporativismo da exigência do diploma de jornalista para estar na mídia.
Repórteres, produtores, editores, comentaristas e apresentadores trabalharam muito, muitas vezes no limite da resistência física. Não há dúvida, também, de que o público teve à sua disposição uma cobertura farta e variada.
Ainda assim, a resposta às duas perguntas do parágrafo anterior é “não”.
Informação com entretenimento
A razão talvez seja que, em nenhuma outra área do jornalismo, aí incluído o show business, estão misturados em tão alto grau a informação e o entretenimento – uma das grandes pragas que ameaçam o jornalismo contemporâneo.
A emoção, como sabemos, é a própria alma do esporte. Ela está na glória da vitória, na decepção da derrota, na superação dos limites, nas trapaças do imprevisto, nos dramas e êxtases que um megaevento como as Olimpíadas comportam. Ela constitui, igualmente, a matéria-prima por excelência do entretenimento – na música, no teatro, na dança e, sobretudo, no cinema e na TV.
Não é fácil ao jornalismo esportivo resistir a misturar duas coisas que compartilham de idêntico fio condutor. Adicione-se a este outros fatores que encerram na própria natureza sérios conflitos de interesse: nos esportes, as emissoras têm que lidar simultaneamente com o fato jornalístico a ser coberto e com o evento que precisaram “comprar” e que, portanto, exige o máximo de audiência para que o retorno financeiro seja compensador.
Pronto, está feita a cama para o infotainment, a palavra híbrida com que os americanos batizam essa mixórdia.
Na verdade, o fenômeno não é novo. Mas o fato é que a televisão, nessa área, cada vez mais intervém na realidade que cobre – não apenas influenciando in loco a atitude e o próprio desempenho dos atletas, mas editando as reportagens com elementos ficcionais.
Por mais que a emoção do esporte seja suficiente para encantar a alma humana, a realidade que ocorre em estádios, ginásios e piscinas é pouco, não basta, não é suficiente para o grau de espetaculosidade que a TV anseia exibir.
Assim, lá vêm os cortes arbitrários de imagem, os trechos de partidas ou provas em videoclipe, os atletas forçados a “representar” alegria, tristeza, júbilo ou orgulho nacional diante das câmaras, as famílias de atletas tendo sua intimidade e até seus telefonemas “produzidos” para filmagens, os trechos em câmara lenta ou acelerados, o fundo musical.
Quem não se lembra da inevitável musiquinha que acompanhava as vitórias de Ayrton Senna na Fórmula-1 transmitida pela Globo, com o indefectível grito de “Brasiiilll” produzido em estúdio com efeito de eco? (A Globo, como se sabe, continua usando o grito em quase toda disputa esportiva em que o Brasil é envolvido).
A TV quer até torcer por nós
Mas o veículo TV carrega em si uma natureza tão prepotente que, mesmo com todo esse tipo de manipulação no produto que despeja para o público, ela não fica satisfeita: precisa, também, torcer – não apenas com o torcedor, mas, muitas vezes, pelo torcedor.
O público, de certa forma, vê “editado” pelos veículos até esse seu direito incontestável e elementar. Não é suficiente, para a TV, portanto, “produzir” a emoção que ela apresenta na telinha: é preciso, adicionalmente, tentar “produzir” a que o telespectador sente em casa.
No caso dos Jogos, à carga de emoção intrínseca ao esporte, somada à que a TV produz, ainda se juntou uma velha conhecida – a patriotada nas transmissões.
Ela poderia ser tolerável se tivesse se limitado às transmissões dos narradores propriamente dita, uma vez que há décadas, desde a era do rádio, incorporou-se aos usos e costumes nacionais. Mas, infelizmente, não parou por aí: invadiu o comportamento de grande número de comentaristas, adentrou o terreno dos especialistas e instalou-se, mesmo, naquele último terreno em que se esperava que a preocupação de informar, pura e simplesmente, se sobrepusesse minimamente às demais: a reportagem.
Os exemplos, entre os vários tipos de profissionais, foram inúmeros.
Muitos comentaristas torciam mais do que comentavam detalhes das provas. Entre os especialistas não jornalistas, houve um, na SporTV, durante uma prova de hipismo, que se esqueceu do assinante e passou a se dirigir diretamente ao cavaleiro Rodrigo Pessoa, como se ele pudesse ouvir lá de Atenas: “Aí, Rodrigo. Agora acalme o cavalo. Não deixe que ele faça isso ou aquilo. Cuidado com esse obstáculo. Isso, continue assim…”.
A ginasta Daiane dos Santos, terminada a prova que a deixou em 5º lugar, longe da medalha de ouro que a mídia apregoava como inevitável, viu-se acossada por ofertas de justificativas feitas por repórteres: o responsável pela colocação teria sido o joelho, a emoção, os juízes, o fato de ser a primeira entre oito ginastas a apresentar-se. Precisou ela própria, com candura e coragem, dizer que errou, e pronto – e que a nota recebida era justa.
Durante todo o tempo, presenciamos repórteres dizendo a atletas, antes de competições, que iriam torcer por eles, ou parabenizando-os, como tietes, depois delas. Foram abundantes as perguntas chochas, que permitem ao entrevistado ir para onde quiser e não esclarecem nada, do tipo “Como você se sentiu quando…?” – de novo, a busca da emoção, e não da informação – em vez de perguntas factuais que poderiam iluminar detalhes importantes dos eventos, da atuação dos brasileiros, do comportamento dos adversários e dos juízes.
Matérias “engraçadinhas”
Com exceções honrosas, os repórteres também deitaram e rolaram na produção de matérias “bem humoradas”, “engraçadinhas”, cheias de trocadilhos entre texto e imagem, de alegorias aos deuses do Olimpo, de brincadeirinhas com atletas, turistas brasileiros e cidadãos de Atenas, cujo esmero em não parecerem “sérias” incluíam o tom de voz.
O “estilo Tino Marcos”, repórter global especialista nesse tipo de matéria – seja qual for o teor do que cobre, mesmo quando o assunto não comporta graça alguma – encontrou seguidores ferrenhos na própria Globo e invadiu os canais especializados.
Inclusive a ESPN, normalmente elogiável pela excelência de suas coberturas e que, na média, realizou um bom trabalho na Grécia: em contraste com seus colegas, um de seus repórteres, extremamente ativo e diligente, conseguiu a proeza de imprimir esse viés a todas as suas reportagens sobre competições e atletas.
Ninguém, naturalmente, pode ter nada contra o humor. O problema desse tipo de matéria, no entanto, além de significar interpretação se sobrepondo à reportagem, é que, repetindo-se, ela mistura, nivela e descaracteriza na mesma massa amorfa o sucesso e o fracasso, o absurdo e o correto, o feito heroico e o desempenho bisonho. Será jornalismo?
Quanto aos apresentadores, com as elogiáveis exceções de praxe, como o sóbrio, bem informado e atento Milton Leite, da ESPN, foi aquilo que se sabe: não havia jogos nem disputas na tela, mas “nós” e “eles”. Em nome da “emoção”, valeu quase tudo – no caso do apresentador de programas policiais e ex-locutor esportivo José Luiz Datena, até chegar a milímetros de ofender os adversários, durante suas narrativas gritalhonas pela Band.
Estreiteza de horizontes
Voltou à cena a quase intransponível dificuldade de pronunciar corretamente nomes em idiomas com os quais, presume-se, tais profissionais devam ter alguma familiaridade, como o francês, o inglês e até o espanhol. (Grandes profissionais vão à luta e conseguem descobrir como pronunciar em alemão, chinês ou grego).
Brigou-se bastante com os adjetivos pátrios: um corredor das Ilhas Maurício – fértil arquipélago no Oceano Índico, a sudeste da costa da África – foi o tempo todo tratado como sendo da Mauritânia, tórrido país árabe no noroeste do continente africano ocupado em mais de dois terços pelo deserto do Saara. À falta de saber que existe, por exemplo, o adjetivo letão, dizia-se “o atleta da Letônia”.
Sem contar a desinformação sobre acontecimentos, circunstâncias e pessoas extra esporte que apareciam nas imagens do pool da Athens Olympic Broadcast, geradora das transmissões. Nessas ocasiões, grande parte dos apresentadores exibiu uma constrangedora estreiteza de horizontes jornalísticos, como aliás é quase de praxe acontecer.
Basta lembrar a catatonia do inevitável narrador Galvão Bueno, da Globo, quando, destacado para uma cobertura esportiva em Buenos Aires em dezembro de 2001, desabou sobre sua cabeça a responsabilidade de, enquanto repórteres qualificados não chegavam à Argentina, informar algo sobre gravíssima crise que levou o presidente Fernando de la Rua à renúncia.
Em Atenas, o basquete feminino do Brasil enfrenta a Espanha, e da plateia alguém levanta uma bandeira estranha – nenhum narrador parecia saber tratar-se do pavilhão que extremistas querem para um País Basco independente.
Atletas medíocres da ilha de Chipre fazem o público delirar, ante o silêncio do narrador que visivelmente ignora o problema político a separar, neste país independente, as comunidades grega, majoritária, da turca, ligada ao país vizinho e inimigo histórico da Grécia.
No Estádio Olímpico, a bela sueca Carolina Kluft vence a prova do heptatlo feminino, enrola-se na bandeira de seu país, vai confraternizar com as adversárias. A TV foca, na plateia, um casal de meia idade que a aplaude. Silêncio do narrador, que desconhecia tratar-se dos reis suecos Carlos Gustavo e Sílvia.
Outras figuras públicas, como a rainha Sofia, da Espanha, a princesa Anne, da Grã-Bretanha, presidentes, primeiros-ministros e até velhos atletas do passado passaram em branco por quase todos os narradores.
É claro nem todos os apresentadores escorregaram. E também é certo que muitos repórteres e comentaristas conseguiram produzir bom jornalismo nas Olimpíadas – felizmente. No conjunto da cobertura, porém, foram engolfados pelo infotainment. Foi ele quem subiu ao pódio na Grécia.
(Post de Ricardo Setti, de São Paulo, publicado originalmente a 31 de agosto de 2004 no Observatório da Imprensa)