o-imigrante-como-suspeito

Preocupou-se o grande The New York Times, dias atrás, como fato de os doutorados obtidos em universidades americanas por estudantes estrangeiros terem pulado de 15% para 26% num período de apenas 15 anos (1972-1989). O jornal interpretou o fato como sintoma do declínio da capacidade dos Estados Unidos de produzirem seus próprios cérebros. Deixou de ver, porém, o outro lado da medalha: o formidável, literalmente inigualável poder de atração que o colosso americano continua exercendo sobre a inteligência de todo o planeta.

Um dos resultados práticos do fato, seja qual for a verdadeira capacidade norte-americana de produzir cérebros de primeiríssima linha, é que uma grande porcentagem das inteligências que buscam os EUA para se aperfeiçoarem acaba ficando por lá mesmo. Ou seja, os EUA terminam por receber um grande contingente de profissionais, técnicos e pesquisadores de primeiro time quase de mão beijada, sem terem investido um centavo em sua formação básica.

O contraste com a situação tal qual se observa hoje no Brasil não poderia ser mais penoso. É verdade que terminou a fase aguda da evasão de cérebros brasileiros, que coincidiu – por motivos econômicos, de condições de trabalho e também políticos – com [o período do] que se convencionou chamar “terrorismo cultural” da fase mais negra do regime militar. Mas temos, hoje, entre outros problemas, um que foi recentemente abordado aqui mesmo, no Espaço Aberto, pelo reitor da Universidade de São Paulo, Roberto Leal Lobo e Silva Filho.

Existe uma boa oferta de cérebros de grande valia na Europa Oriental buscando outros horizontes, mas o Brasil não os pode abrigar convenientemente por uma inacreditável casca de banana burocrática enfiada por algum nacionalistóide de plantão no texto da Constituição: não é permitido a um pesquisador estrangeiro se tornar professor titular em nenhuma universidade brasileira sem abrir mão de sua cidadania original.

“Um país que não possa contar com um talento comparável ao de Albert Einstein só por não ser sua intenção se tornar cidadão brasileiro, ‘naturalizado’, não pode, sob nenhum argumento, ser considerado avançado”, analisou corretamente o professor Lobo. Está aí, portanto, mais um detalhe da Constituição que merece a atenção dos deputados e senadores recém-eleitos para a reforma constitucional que será feita, por eles, em 1993.

Embora a Constituição tenha abrandado as restrições absurdas que pesavam contra os estrangeiros radicados no Brasil e, sobretudo, os brasileiros naturalizados, existem várias passagens rançosas como essa, que equipara concursos públicos para a seleção de pessoas que estarão na vanguarda da pesquisa tecnológica à seleção de um funcionário público destinado a carimbar papéis numa repartição.

Os bravos relatores do texto constitucional, combatendo inimigos invisíveis a partir da confortável e refrigerada trincheira do Congresso, parecem ter chegado à conclusão de que sabem zelar melhor pela segurança nacional brasileira do que os legisladores da maior superpotência do planeta, os EUA, pela deles. Aqui, um gênio nascido na Hungria, digamos, não pode ser professor titular da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara ou Jaboticabal. Nos EUA, um homem nascido em Fürth, na Alemanha, que viveu na Europa até os 13 anos e ainda hoje fala inglês com pesado sotaque, pôde protagonizar um episódio dramático e crucial da vida recente do país: como secretário de Estado, e de acordo com a bicentenária Constituição americana, foi Henry Kissinger quem recebeu oficialmente a carta de renúncia de Richard Nixon à Presidência dos EUA [em 1974].

Em territórios menos solenes, a trajetória de grandes nações está repleta de exemplos em que a certidão de nascimento importa menos do que a vida real. Na vizinha Argentina, por exemplo, o maior ídolo popular de todos os tempos, o cantor Carlos Gardel, não deixou de ser o que era porque nasceu na França. Na França, o ator e chansonnier Yves Montand, uma glória nacional, lembrado até como candidato à Presidência, chama-se na verdade Ivo Levi e é um ex-imigrante italiano. Outro monumento nacional da canção francesa, o cantor e compositor Jacques Brel, era belga, tanto como o grande escritor Albert Camus era argelino. E por aí vai.

É intrigante esse tipo de restrição a imigrantes num país cuja grandeza em boa parte foi construída por imigrantes, que já foi presidido por um Kubitschek, um Geisel e um Médici, e hoje é pilotado por um Collor, que tem um Magri e um Rezek no Ministério, um Quércia no governo de seu maior Estado, um Amato comandando o capital e sendo enfrentado, do lado do trabalho, por um Meneguelli, com um Tuma fiscalizando. Enquanto isso, adivinhem para onde irão os cérebros da Europa Oriental que gostariam de aportar em território tupiniquim?

(Artigo de Ricardo Setti publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 6 de dezembro de 1990 sob o título original de “O imigrante como suspeito”)

DEIXE UM COMENTÁRIO

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *