Presidentes americanos com modos rudes de cowboy texano nem sempre significam absoluta ausência de senso de humor – para não dizer de outras coisas –, como ocorre com George W. Bush.
O falecido presidente democrata Lyndon Johnson (1963-1969), velho político matreiro a respeito do qual cada vez mais se surpreendem os historiadores, sabia destilar fina ironia.
Certa vez, ao queixar-se da imprensa, sapecou: “No dia em que eu andar sobre as águas, não tenham dúvidas. Vai sair uma reportagem com o título:’Lyndon Johnson não sabe nadar’”.
Lá nos EUA, como em toda parte, são ancestrais as queixas dos políticos contra a mídia – o poder não gosta de ser fiscalizado. Os políticos no Brasil, claro, não fogem à regra, a começar pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Mesmo tendo profissionais de imprensa talentosos, experientes e bem intencionados a assessorá-lo, o velho Lula bonachão e de trânsito fácil com jornalistas parece ter desaparecido por completo na versão de terno, gravata e Omega australiano instalada no Palácio do Planalto.
Não apenas o presidente descura de seu dever de prestar contas à nação falando pouco, pouquíssimo, com a imprensa – de maneira organizada ou mesmo em conversas informais com repórteres, editores ou colunistas –, como tem frequentes e crescentes queixas ao que qualifica de “má vontade” da mídia contra seu governo, seus ministros e, às vezes, ele próprio.
Mas uma das características nobres da mídia, que nem sequer Lula ou seus companheiros de governo e de PT negariam, é o hábito necessário e salutar, mas raro em qualquer corporação, de discutir seus próprios erros.
Para constatar bastaria, aliás, clicar o endereço deste Observatório desde sua primeira edição. Como também dar uma olhada em livros que não param de sair, aqui e no exterior.
Num lugar nobre em meio à imensidão de publicações que escrutinam nosso trabalho de jornalistas, mexendo necessariamente num vespeiro de erros cometidos desde os primórdios da imprensa, sempre estará o estupendo A Primeira Vítima (mesmo título em inglês), do australiano radicado na Grã-Bretanha Phillip Knightley, de subtítulo plenamente esclarecedor quanto a seu conteúdo: “O correspondente de guerra como herói, propagandista e fabricante de mitos, da Crimeia ao Vietnã”. (Lançado em 1975 no Reino Unido e em 1978 no Brasil, pela Nova Fronteira, é um absurdo este clássico não ter sido reeditado).
O título foi tirado da epígrafe, uma frase histórica que hoje em dia todo mundo repete, quase invariavelmente sem saber de onde veio: “A primeira vítima, quando começa a guerra, é a verdade”. O autor é o senador republicano dos EUA e ex-governador da Califórnia Hiram Johnson (1866-1945), reagindo diante do noticiário sobre a I Guerra Mundial (1914-1918), então travada na Europa.
De fato. Ao longo de 560 páginas na edição brasileira, Knightley reconstitui com brilho a trajetória da figura do correspondente de guerra, mostra a coragem e a contribuição de muitos deles para o estabelecimento da verdade histórica, mas também expõe um feio festival de barbaridades perpetradas por muitos ao longo de um século e meio de cobertura de guerras: correspondentes que eram, na verdade, espiões a serviço de governos, enviados especiais que sistematicamente inventaram notícias, jornalistas preguiçosos, fotógrafos forjadores de cenas, repórteres capazes de roubar anotações de colegas e estatísticas de combate manipuladas a ponto de fazer inveja a certos ex-ministros da Fazenda.
Diante disso, não é de surpreender que até jornais que foram ou são instituições veneradas tenham cometido carnificinas contra os fatos.
Para ficar num só caso: certamente influenciado por um wishful thinking capitalista diante da Revolução Russa, o glorioso The New York Times apenas nos dois anos posteriores a novembro de 1917 noticiou 91 vezes que os bolcheviques estavam prestes a cair ou, mesmo, já tinham caído, quatro vezes que Lenin e Trostky estariam planejando fugir da Rússia, e três que já teriam fugido.
Esse levantamento, parte de um trabalho infernal que incluiu mergulhar em 2 milhões de recortes de jornais no departamento de pesquisa do The Sunday Times em Londres, não foi feito por um historiador ou outro tipo de cientista social, mas por um jornalista – o que diz muito sobre o jornalismo e sua capacidade de autocrítica.
Isso precisaria ser levado em mínima conta quando diferentes setores da sociedade – incluindo os ocupantes do poder – fazem o julgamento da mídia e dos que nela trabalham.
No Brasil, porém, parece haver em certos setores uma crença absurda e arraigada de que a verdade, se é a primeira vítima quando estoura uma guerra, seria um bicho incômodo que aos jornalistas, no seu dia a dia, apraz abater a pauladas.
O grande editor-chefe da revista Time Henry Anatole Grunewald disse certa vez que, se a imprensa fosse checar a veracidade de cada fato em todos os seus ângulos, hipóteses e minúcias possíveis e imagináveis, a sociedade seria informada pelos boatos.
Em parte por não corresponder a esse inatingível ideal de perfeição, a mídia acaba sendo vista com um pé atrás. No Brasil, tem de enfrentar um problema adicional: ao expor uma mazela ou uma bandalheira, quase invariavelmente corre o risco de ser considerada responsável por ela.
Isso vem ocorrendo com a imprensa nesses últimos meses, sob o governo Lula. O próprio presidente já nos puxou as orelhas pelos supostos prejuízos ao país que “especulações” sobre a reforma ministerial poderiam causar – ficaríamos todos gratíssimos se ele explicasse quais.
Mais recentemente, o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, em meio a críticas e ameaças veladas ao Ministério Público – tão queridinho quando procuradores, em governos anteriores, vazavam informações para políticos do PT –, desancou também a imprensa ao criticar a atuação de membros do MP pelas investigações feitas sobre a morte do prefeito de Santo André, Celso Daniel, com a frase agora célebre: “Há uma violação persistente e permanente de direitos constitucionais por setores do Ministério Público e da imprensa brasileira”.
No caso Celso Daniel, o poder petista parece tanto mais irritar-se com as reportagens que vêm sendo publicadas quanto mais elas apontam indícios da possível ligação do assassinato com a ocultação de um vasto esquema de corrupção.
Enquanto, de um lado, figuras petistas tentam afastar essa hipótese – que envolveria figuras do partido – como o diabo se afasta da cruz, de outro correntes do PT brandem a possibilidade de se unirem aos setores que, no Congresso, em razão de diferentes interesses contrariados, pretendem endurecer a atual legislação sobre imprensa.
Trata-se da velha, velhíssima história: se existe febre, a culpa é do termômetro.
É óbvio que a mídia não está acima do bem e do mal e deve ser responsabilizada, criminalmente se for o caso, pelos erros cometidos.
Mas enquanto os dirigentes das diferentes instituições do país não mudarem seus hábitos, inclusive o de falar mal da imprensa como forma de escamotear certos deveres não cumpridos, vai continuar havendo material de sobra para reportagens de interesse público.
Que, goste ou não o poder de plantão, sempre encontrarão jornalistas dispostos a publicá-las.
Fiscalizar o poder é nossa obrigação indeclinável.
(Post de Ricardo Setti, originalmente publicado no Observatório da Imprensa, a 28 de janeiro de 2004, sob o título de “O poder não gosta de ser fiscalizado”)