
O ritual foi o que se conhece – uma floresta de mãos se erguendo em unânime aprovação, e pronto. Todos os 1.500 deputados do Soviete Supremo, o Parlamento nominal da União Soviética, acabavam de conferir a Yuri Andropov, 69 anos, há sete meses o substituto do falecido Leonid Brejnev na liderança do Partido Comunista, o complemento que lhe faltava para exibir todos os sinais de que detém plenamente o poder, escolhendo-o para o cargo de presidente do Presidium – equivalente ao de presidente da República em outros países.
Presidir o Presidium, colegiado de 37 membros que teoricamente dirige o Estado, é basicamente uma função cerimonial. Mas os deputados soviéticos, reunidos na semana passada no Grande Palácio do Kremlin, amplo salão neoclássico que um dia serviu como residência da família imperial russa durante seus deslocamentos de São Petersburgo para Moscou, praticaram na verdade um gesto de amplo significado político.
Andropov já exerce os dois cargos que efetivamente contam no país: o de secretário-geral do partido e o de chefe do Conselho de Defesa da URSS, um poderoso órgão que congrega não apenas os principais chefes das Forças Armadas e do aparelho de segurança mas também os responsáveis por setores-chave ligados à segurança nacional. Ao acumular o posto de presidente da República, assim, ele se tornou o segundo dirigente da URSS em todos os tempos a chefiar simultaneamente o partido e o Estado.
Só Brejnev, antes de Andropov, enfeixava em suas mãos esse conjunto de rédeas do colosso soviético – nem Stalin o fez formalmente. Para tanto, porém, Brejnev precisou de treze anos e foi levado a puxar com energia o tapete que sustentava o então presidente Nikolai Podgorny, em 1977. Andropov chegou ao mesmo ponto em sete meses.
“Franqueza espantosa” – Quem tinha dúvidas sobre quem de fato manda hoje na URSS, portanto, passou a ter bons motivos para refazer suas contas. Ainda na véspera da eleição de Andropov, no encerramento da reunião semestral do Comitê Central do Partido Comunista, de 319 membros, “kremlinologistas”, analistas de governos ocidentais e membros da comunidade diplomática estrangeira em Moscou arriscavam palpites que, uma vez mais, trombaram frontalmente com os fatos.

Andropov não estaria de todo no comando da máquina soviética, argumentou-se, por não ter conseguido promover qualquer remanejamento no órgão que, saído do Comitê Central e em meio ao cipoal de instituições do partido e do Estado, é o núcleo real e supremo de poder na URSS, o Politburo. Tendo uma média de quinze membros até 1980, o Politburo, devido a aposentadorias, viu-se reduzido a onze integrantes. Como, ao final da reunião do Comitê Central, nenhuma vaga foi preenchida, isso significaria a existência de disputas não resolvidas na cúpula do Kremlin.
Disputas, é claro, podem perfeitamente existir – mas o fato é que Andropov viu o fim da reunião do Comitê Central, que coincidiu com seu 69º aniversário, só com razões para festejar. Em primeiro lugar, foi ali que se decidiu elevá-lo à Presidência. Mais que isso, ele ainda saboreou o conforto adicional de ser formalmente indicado para o posto por Konstantin Chernenko, 71 anos, sempre apontado como seu rival. Acima de tudo, talvez tenha sido o tom do discurso de Andropov ante o Comitê Central, qualificado como sendo de “uma franqueza espantosa” por fontes americanas, o sinal mais eloqüente de que o leme do Kremlin tem um dono inequívoco.
Fantasma da saúde – Andropov, entre disparos contra a ineficiência da economia, considerou “separado da realidade” o programa do partido ainda em vigor, estabelecido em 1961 por Nikita Kruchev com o quimérico objetivo de ultrapassar os Estados Unidos em 1980. Para culminar, tocou o dedo num tabu, ao admitir que muitos dos rituais “democráticos” soviéticos são encenações. “Que vantagem há, camaradas, numa reunião se – como freqüentemente acontece agora – ela é realizada de acordo com um roteiro preparado, se não há uma discussão interessada e franca e as declarações são previamente preparadas, enquanto certas iniciativas, especialmente a crítica, é silenciada?”, perguntou,
O presidente, com isso, bateu num diapasão de ousadia que vem caracterizando sua gestão. Em poucos meses, Andropov acenou com a normalização de relações com a China, chegou a admitir uma solução política para a ocupação soviética do Afeganistão e escreveu, num artigo, que “o marxismo não é um dogma”. Nesse período, três ministros, dois vice-ministros e uma dezena de altos burocratas foram defenestrados – processo que continuou na semana passada, quando dois membros do Comitê Central, um deles o ex-ministro do Interior Nikolai Cholokov, envolvidos em acusações de corrupção, foram sumariamente afastados.

Andropov, enfim, se não preencheu claros no Politburo, promoveu uma estrela ascendente sobre a qual há tempos se concentram os olhares ocidentais. Gregori Romanov, há treze anos dirigente do partido em Leningrado, passa agora a acumular sua condição de membro do Politburo com a de integrante do outro órgão-chave da cúpula do partido, o secretariado de dez membros – encarregado, na prática, de supervisionar as decisões tomadas pelo Politburo. Só quatro pessoas, na URSS de hoje, incluindo o próprio Andropov, têm o pé nesses dois plenários.
Romanov assim conseguiu superar um incidente do passado que chegou a empanar sua carreira, quando, para o casamento de sua filha, realizado no antigo Palácio Imperial em Leningrado, usou um serviço de porcelana que pertencera à imperatriz Catarina e viu os convivas quebrar a maioria dos pratos, no tradicional sinal russo de júbilo.
Por todas essas razões, pareciam sem fundamento os rumores sobre uma eventual perturbação no estado de saúde de Andropov – fantasma invariável que acompanha cada líder supremo soviético e que assombrou Brejnev durante os últimos dez anos de vida. Esses rumores surgiram na semana anterior, quando Andropov parecia frágil e trôpego durante as cerimônias de recepção ao presidente da Finlândia, Mauno Koivisto – a certa altura, foi amparado por um auxiliar durante uma caminhada. Também na semana passada, a voz um tanto apagada e a lentidão de movimentos de Andropov ajudaram a alimentar essa invariável fornalha de boatos. Parecia improvável que o fechado círculo do poder na URSS concedesse manto, cetro e coroa ao mais destacado de seus pares se sobre ele pairasse uma ameaça física imediata.
Reportagem publicada na revista Veja em 22 de junho de 1983