Em meio ao noticiário negativo que despenca, aos borbotões, sobre o cidadão comum, apareceu, nestes dias, um problema relacionado ao Theatro Municipal de São Paulo [o nome do teatro mantém a grafia original da época de sua inauração, em 1911]. Restaurado em seu antigo esplendor, o octogenário, porém sempre magnífico exemplar arquitetônico da São Paulo pacata e feliz da pré-belle époque estava sob uma das tantas ameaças que, nos dias de hoje, pairam sobre as coisas boas. No caso, tratava-se de pichadores de paredes – essa trêfega tribo de boçais, em geral jovens, que encontra um prazer quase orgástico em desfigurar as cidades brasileiras de todos os tamanhos, configurações e latitudes. (Não confundir com os simpáticos grafiteiros, artistas anõnimos que salpicam muros e paredes de alegria e inventividade).

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Compare esse belo grafitti do artista Kobra na avenida Tiradentes, em São Paulo, com as pichações da foto principal (Foto: @doctor_pera/São Paulo Secreto)

Integrantes desses bandos de pichadores constituíram um prêmio em dinheiro destinado ao primeiro que conseguisse conspurcar o venerando edifício planejado pelo arquiteto Ramos de Azevedo. A Guarda Civil Metropolitana foi mobilizada para proteger os velhos contrafortess, mas nada garante o velho teatro contra a impressão das bobagens quase sempre incompreensíveis que carimbam, hoje, boa parte do espaço público disponível no País.

O fenômeno da pichação de paredes, muros e calçadas, placas de sinalização e monumentos – de que o episódio do Teatro Municipal de São Paulo é apenas uma entre literalmente incontáveis manifestações – desafia estudiosos. As tentativas feitas até agora não foram capazes de fornecer explicações convincentes e, mais que isso, não conseguiram fazer nada de prático para deter a onda de vandalismo alimentado a spray.

A filósofa Marilene Chaui, por exemplo, às voltas com o problema na terrena condição de secretária municipal da Cultura [de São Paulo], chegou a ensaiar algumas tentativas de interpretação numa das incalculáveis vezes em que foi maldosamente enfeado o Monumento à Imigração Japonesa da escultora Tomie Ohtake, na Avenida 23 de Maio. Chaui arriscou uma exegese freudiana que passava pela pichação como algo tendo a ver com a afirmação sexual dos jovens beócios responsáveis.

Pode ser – quem sabe? Mas certamente seria interessante incluir no rol das hipóteses algo que tem a ver com o brutal, avassalador processo de migração interna que marcou o Brasil nos últimos 30, 35 anos. Poucas vezes se terá visto no mundo uma transformação tão rápida e drástica de um país de população rural vastamente majoritária num país altamente – e sobretudo caoticamente – urbanizado. De 70% de brasileiros alojados no campo, passamos, num estalar de dedos, a ver mais que essa porcentagem amontoada em cidades.

Falharam os planejadores urbanos, os governos, as elites. Idéias interessantes como a criação de pólos intermediários de desenvolvimento que peneirassem, retendo em parte, o êxodo para as capitais, mal chegaram a ser tentadas em um ou outro Estado, e foram deixadas de lado. O crescimento desordenado e incontrolável das grandes cidades, somado à rudeza de direitos civís desrespeitados e a desigualdades sociais escandalosas, tingidos ainda por cima pelas feias cores de uma década de estagnação econômica, provavelmente terá criado um tipo de cidadão sem cidadania.

Ele pode até ter nascido na cidade, mas não se sente um natural dela. E, não se sente, principalmente, responsável por ela, muito menos “dono” de uma fração ideal dessa cidade que, bem ou mal, o abriga. Ele é alienado da cidade, no sentido original da palavra – sente-se alheio àquilo. A crise política, a descrença nas instituições e nos mecanismos de funcionamento da sociedade completaram o serviço: a cidade não é dele, é “deles”. De alguém, de um governo remoto, impessoal, ineficiente e corrupto, que administra – pessimamente – a vida que ele vê acontecer à sua frente.

Não é estranho que nossas cidades, sobretudo as grandes, estejam, com raras exceções, em estado tão deplorável. Além do descaso de sucessivos governos incompetentes, elas se vêem diante da abulia, da indiferença e até da hostilidade de boa parte de sua população. Que gangues juvenís de debilóides queiram conspurcar pontos cuja beleza plástica resiste a estes tempos duros é, pois, uma parte coerente com o todo. Metaforicamente, elas picham um País em que não acreditam.

(Artigo de Ricardo Setti publicado em O Estado de S. Paulo a 3 de outubro de 1991 com o título original de “Os pichadores do país”)

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