O escritor peruano Mario Vargas Llosa tem, em seu escritório debruçado sobre o Oceano Pacífico no 2º andar de sua esplêndida casa em Lima, uma estante com sete prateleiras de altura e 2 metros de largura inteiramente recheada com diferentes edições de suas treze obras. É algo que pode perfeitamente ser encarado como uma espécie de testemunho, em madeira e papel, de seu próprio sucesso. Nem Vargas Llosa sabe quantas edições a estante abriga – são centenas e centenas de exemplares, boa parte cuidadosamente encadernada e com suas iniciais marcadas em ouro na lombada. Ele também já perdeu a conta de quantos países leram e lêem seus sete romances, uma novela, um livro de contos, dois de ensaios e duas peças de teatro: “São mais de trinta idiomas”, calcula, enquanto mostra traduções em húngaro ou chinês, em finlandês ou romeno.
Quantos livros vendeu até hoje? Bem, nem sua atenta e eficiente segunda mulher, Patricia, com quem está casado há vinte anos – “o primeiro executivo da casa”, segundo ele –, tem mais controle desses números. Eles podem, entretanto, ser imaginados pelo fato de que há edições em língua espanhola de suas obras que chegam a 300 mil exemplares e outras, em idiomas como o russo, que atingiram a casa dos 400 mil. No Brasil, seu cartel bate o da maior parte dos autores nacionais: perto de 500 mil livros vendidos pelas editoras Nova Fronteira, Francisco Alves – sua editora atual – e Círculo do Livro, que publica edições com autorização de uma das outras duas.
Indicadores como esses dão a Vargas Llosa uma aura de vencedor, brilhantemente arrematada pela enorme casa branca repleta de quadros e decorada com esmero, pela piscina plantada no pátio interno, pelos automóveis Toyota e BMW que reluzem em sua garagem, pelo apartamento que mantém em Londres para uma sagrada temporada anual de três meses na Europa. Isso, porém, está longe de ser tudo: aos 50 anos, completados em março passado, Mario Vargas Llosa não é apenas um escritor bem-sucedido – é um grande escritor, reconhecido como um dos maiores autores contemporâneos, dentro ou fora da América Latina, por um amplo espectro de críticos, que vão de seu colega brasileiro Jorge Amado ao suplemento de livros do The New York Times, do ensaísta mexicano Octavio Paz ao escritor e polemista espanhol Jorge Semprún.
Todo esse sucesso, Vargas Llosa conseguiu escrevendo, basicamente, sobre seu país, o Peru, com quem tem uma relação especialíssima – “mais adúltera do que conjugal, cheia de suspeita, paixão e fúria”, como ele diz. A única exceção, entre seus textos de ficção, é justamente o livro que mais o apaixona: A Guerra do Fim do Mundo (1981), o denso e esplêndido romance que se passa em meio à rebelião de jagunços em Canudos, no sertão da Bahia, entre 1896 e 1897, durante o governo do presidente Prudente de Moraes. Curiosamente, para escrever sobre o Peru, Vargas Llosa viu-se obrigado a deixá-lo, vivendo dezesseis anos de auto-exílio, de 1958 a 1974, basicamente em Barcelona, Paris e Londres, com algumas temporadas menos prolongadas em outros países, como os Estados Unidos e Porto Rico. “A distância”, explica Vargas Llosa, “purifica essa coisa tão complicada que é a realidade – a realidade imediata é uma imensa vertigem, e nela é muito difícil para um escritor selecionar o que é importante e o que é acessório”. Assim, como bolsista na Espanha, jornalista em Paris ou professor em Londres, mas principalmente e antes de tudo um escritor, é que Vargas Llosa acabou produzindo a maior parte de sua obra. Seu excelente romance de estréia, Batismo de Fogo (1963), por exemplo, foi escrito na Espanha e em Paris. O monumental Conversa na Catedral (1969), talvez o mais profundamente peruano de seus livros, começou a ser escrito em Paris e foi terminado em Londres. O divertidíssimo Pantaleão e as Visitadoras (1973) nasceu em Barcelona. E, para só citar mais um exemplo, A Guerra do Fim do Mundo começou em Lima, estendeu-se à Bahia, prosseguiu em Londres e acabou em Washington.
O exílio deu serenidade para que Vargas Llosa escrevesse. E lhe ensinou, também, a disciplina e a profissionalização no ofício – justo a ele, que aos 20 anos, já casado pela primeira vez, chegou a ter sete empregos simultâneos para poder sobreviver, escrevendo só nos fins de semana. Mas a hora de voltar acabou chegando em 1974: “Eu estava perdendo contato com o país, apesar de vir anualmente em férias e escrever na imprensa peruana”, explica. “O Peru estava mudando, e me dei conta de que a distância, que havia sido tão positiva, começava a ser prejudicial.” A volta, naturalmente, teve também seu elemento de choque. “Na Europa, eu tinha uma serenidade em relação à realidade imediata que no Peru jamais voltei a ter, porque no meu país vivo constantemente em estado de grande agitação, às vezes de exasperação: tudo o que ocorre no Peru me importa, me interessa e me afeta diretamente”.
De fato, se a realidade imediata para o escritor Vargas Llosa é uma vertigem, o cidadão nela mergulhou de cabeça ao voltar a seu país. Tendo dado apoio a algumas transformações sociais propostas pelos militares promotores da “revolução peruana” (1968-1980), ele logo passou a um crítico virulento da falta de liberdades públicas, da corrupção e da incompetência da ditadura. Um entusiasta da revolução cubana desde seus primórdios, ele se decepcionou com o alinhamento de Havana à URSS, afastou-se do marxismo e passou a polemizar de tal forma com a esquerda radical peruana que hoje, segundo sua avaliação, seria linchado se porventura ousasse tentar entrar na Universidade de San Marcos, onde se formou em Direito e foi militante de esquerda.
Sua equidistância dos extremismos o qualificou a ser integrante de uma comissão independente nomeada pelo governo para investigar o massacre de sete jornalistas ocorrido em janeiro de 1983, no povoado de Uchuraccay, nos Andes – território de vasta atuação do movimento terrorista maoísta Sendero Luminoso. Aí também a vertigem da realidade peruana o engoliu: Vargas Llosa e seus dois colegas de comissão foram insultados por terem concluído que, ao contrário do que desejariam setores de esquerda, as Forças Armadas não tinham incitado os camponeses da região a massacrar os jornalistas, confundidos com terroristas. O escritor chegou, mesmo, a sofrer constrangimento de uma virtual prisão domiciliar no começo do ano passado. Foi ordem de um juiz local, alçado às manchetes da imprensa marrom, que sequer se dignou a ler o relatório de mil páginas produzido pela comissão sobre o caso, mostrando-se mais interessado em saber o quanto montavam as despesas domésticas de Vargas Llosa por mês.
Nada disso, porém, nem o extraordinário cerco que se faz à sua privacidade no Peru afastam Vargas Llosa de seu rumo. “Escrever é minha maior paixão, e nem nos meus sonhos mais delirantes eu poderia imaginar, no passado, que um dia pudesse viver – e viver bem – daquilo que me dá mais prazer.” Para entrevistar este homem de bem com a profissão e com a vida, PLAYBOY enviou a Lima o editor especial Ricardo A. Setti. Seu relato:
“Os moradores do malecón Paul Harris, uma espécie de alameda que corre ao longo de um promontório voltado para o mar, no elegante bairro de Barranco, em Lima, já estão acostumados: são 7 da manhã, o sol ainda nem desfez a bruma sobre o Pacífico e aquele vizinho alto e moreno, de traje completo de jogging, já está em atividade. Mario Vargas Llosa vai correr seus 4,5 quilômetros, como faz religiosamente seis dias por semana, vai tomar banho e café e, pontualmente às 9 horas, estará sentado à sua mesa de trabalho para começar um novo dia. Até hoje, não se conheceu força humana capaz de interrompê-lo antes das 2 da tarde, quando ele vai almoçar e preparar-se para uma tarde de atividades diversificadas. É este seu segredo como escritor: disciplina férrea. Ele trabalha como escritor neste horário todos os dias, de segunda a sábado, reservando as manhãs de domingo para artigos ou reportagens jornalísticas – chova, faça sol ou esteja ele em Lima, Miami ou Veneza. Vargas Llosa não acredita, como Vitor Hugo, um de seus autores prediletos, que exista uma inspiração a baixar dos céus como um raio e guiar a mão do escritor. Vargas Llosa começa o dia reescrevendo e corrigindo, à máquina, parte do que escreveu à mão no dia anterior – é, como ele diz, “um aquecimento, uma espécie de calistenia” para começar o dia. Depois, durante uma média de duas horas, ele vai rascunhar livremente à mão, e voltará à máquina para começar a tarefa de passar a limpo, que retomará na manhã seguinte. O restante de seu período de trabalho pode ser dedicado à leitura, à feitura de fichas sobre personagens ou anotações diversas para trabalhos futuros.
“Ele escreve num amplo e confortável escritório com ar condicionado central, sozinho – tanto a mulher Patricia como os filhos Álvaro, 19 anos, Gonzalo, de 18, e Morgana, de 12, e os empregados da casa estão encarregados de protegê-lo de ‘visitas, telefonemas e chatos’. Foi ali que gravamos duas de nossas três sessões de entrevistas, num total de nove horas. A outra deu-se na ampla sala principal de sua casa. Vargas Llosa tinha visível prazer em falar a PLAYBOY: ele adora o Brasil e tem, aqui, grandes amigos, como os escritores Nélida Piñon e Jorge Amado, o editor Alfredo Machado e o antropólogo Roberto da Mata. Ao final de três dias de conversas, concluí sem dificuldades que o talento do Vargas Llosa escritor definitivamente não o abandona quando fala.”
“Desde jovem senti reservas frente à religião, porque ela combatia algo que para mim parecia respeitabilíssimo: o desejo”
PLAYBOY – Um seu colega escritor, Jean-Paul Sartre, quando entrevistado anos atrás por PLAYBOY, admitiu que as mulheres sempre ocuparam o centro de sua vida e foram o tema em que ele mais pensou, da infância à velhice. E na sua vida, que lugar as mulheres ocuparam?
VARGAS LLOSA – Creio que ocuparam um lugar central. A princípio, como um objeto enigmático, tentador, misterioso. Depois como uma fonte de movimentos sentimentais. Fui um adolescente profundamente romântico, que me enamorava como os heróis das novelas românticas, e ao mesmo tempo gozava e sofria extraordinariamente com esses amores, vivendo-os de uma maneira muito mais dramática e trágica do que eram na realidade. E, na minha vida, o amor é algo muito importante: é e foi não apenas fonte de profunda emotividade, mas também constituiu um grande apoio para trabalhar, para escrever, para tomar decisões.
PLAYBOY – E o prazer?
VARGAS LLOSA – Sempre tive imenso respeito pelo prazer e pelo desejo. Desde muito jovem comecei a sentir reservas frente à religião, porque ela combatia algo que para mim parecia respeitabilíssimo, que era o desejo. Ele é uma fonte de enriquecimento para o homem. E, assim como não sou a favor da promiscuidade, por exemplo – porque creio que ela barateia o sexo e envilece a experiência sexual –, sou pela intransigente defesa do desejo.
PLAYBOY – Você mencionou o amor e a paixão, presentes em sua vida desde jovem. E o sexo, como foi?
VARGAS LLOSA – Eu tinha 10 anos quando me fizeram saber como as crianças vinham ao mundo. Até então eu tinha uma idéia muito vaga, e aquilo me produziu um grande terror, que tinha muito a ver com a educação religiosa e ao fato de pertencer a uma família muito conservadora, em que o sexo era algo que nem sequer se mencionava. Depois, na adolescência, aos 13, 14 anos, comecei a ir a prostíbulos, que era o ritual costumeiro dos garotos da minha época. Eu me lembro muito bem da primeira vez. Estava na 3ª série ginasial e fui iniciar-me num jirón [espécie de viela, no Peru] em Lima muito famoso porque era a “viela do pecado”, o jirón Guatica, uma rua com quartinhos um ao lado do outro.
PLAYBOY – Estava com medo?
VARGAS LLOSA – Com muito medo. Depois, voltei quase ritualmente pelo menos uma vez por semana – eu estava interno no Colégio Militar, e nos dias de saída praticamente a classe inteira ia para lá.
PLAYBOY – E a primeira vez sem ser com prostituta?
VARGAS LLOSA – No verão de 1951, eu estava na 4ª ou 5ª série ginasial e fui trabalhar durante as férias de verão num jornal de Lima, La Crónica. Eu estava para completar 16 anos e vivia a vida boêmia dos jornalistas de então, em que se trabalhava de noite, se ia muito a bordéis e bares. E conheci muita gente do meio artístico, onde havia garotas com um moral mais flexível do que a maioria na época. Fiquei apaixonado por uma garota, Magda, que era, é claro, mais velha que eu. Tratou-se de uma experiência muito comovedora, pois, além de tudo, foi a primeira vez que fui para a cama com alguém que para mim era uma pessoa, não um objeto, era uma pessoa que eu conhecia, com quem eu conversava e por quem, além de tudo, eu estava apaixonado.
PLAYBOY – E agora que você é famoso, e além do mais é visto pelas mulheres como um homem charmoso? Seu sucesso atrai muito as mulheres?
VARGAS LLOSA – [Gargalhada]Estamos invadindo um terreno um pouco perigoso, se levarmos em consideração que eu sou casado e que minha mulher, Patricia, é um ser muito ciumento, muito ciumento…[Gargalhada]
PLAYBOY – Então se confirma o que você admitiu certa vez, no Brasil: que morre de medo dela?
VARGAS LLOSA – [Gargalhada] Bem, como todos os latino-americanos. Nós morremos de medo de nossas mulheres! [Gargalhada]
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- “Como administrar as tentações? Bem, eu sou fraco, porque sucumbo a certas tentações [gargalhada]. Não tenho muito tempo para isso, na verdade. Creio que sucumbiria a todas as tentações se tivesse tempo”.
- “Eu trabalhava há dois anos no meu romance A Guerra do Fim do Mundo quando cheguei ao cerro onde ainda hoje, crivada de balas, está a cruz de Canudos. Foi o dia mais emocionante da minha vida. ”
- “Creio que, politicamente, García Márquez não é de forma alguma o bom escritor que é de literatura. Suas atitudes políticas são oportunistas, e ele tampouco é uma pessoa que me parece muito respeitável”.
Não conheço nenhum latino-americano que não tenha medo. Creio que alguns não dizem, dissimulam. Bem, falando sério, sim, é verdade, o fato de ser uma pessoa famosa constitui um atrativo para certas mulheres, indiscutivelmente. Agora, o que é importante é que se tenha consciência de que, no caso dessas mulheres, não é o alguém que atrai, mas a fama, que é uma coisa diferente: é esta coisa impessoal, circunstancial, que por instantes pode ter o nosso rosto – mas só por um instante, nada mais. [Risos]
PLAYBOY – E como é que você administra as tentações que aparecem?
VARGAS LLOSA – Bem, eu sou fraco, porque sucumbo a certas tentações. [Gargalhada] Não tenho muito tempo para isso, na verdade. Não me falta vontade! Creio que sucumbiria a todas as tentações se tivesse tempo, mas a verdade é que não tenho, a minha vida é – como você está tendo oportunidade de ver aqui em Lima – muito ocupada. Então, infelizmente, inclusive neste campo também me vejo bastante limitado [risos] pelo meu trabalho.
PLAYBOY – Há um humorista na televisão brasileira que cunhou a frase: “Perguntar não ofende”.
VARGAS LLOSA – [Grande gargalhada]
“Meu amigo Jorge Amado é um grande gozador da vida, carinhoso, afetuoso, disposto a ajudar. Uma esplêndida pessoa vital!”
PLAYBOY – Passemos então a um terreno menos perigoso…E o sexo na sua obra?
VARGAS LLOSA – O sexo aparece descrito continuamente, em muitas variantes, porque se trata de uma experiência capital da vida, não? Além disso, me parece que, em minha obra, ele reflete também um pouco o que são os costumes, mitos e instituições de minha sociedade e meu tempo. Acho que nas coisas que escrevi está bastante presente a sociedade machista que é o Peru, por exemplo, com sua série de tabus e preconceitos.
PLAYBOY – Em matéria de sensualidade, quem você destacaria na literatura brasileira?
VARGAS LLOSA – Tenho, entre outros, o maior respeito pela obra de Jorge Amado, que me parece muito rica, de uma grande vitalidade, na qual há uma espécie de regozijo e amor à vida, de gosto por todas as experiências vitais do homem, e que é carregada de sensualidade e humor. Sobretudo a parte dos últimos vinte anos, quando começou a escrever esses romances com tanta cor local e cheios de amor ao sexo, à comida, ao prazer, à diversão. Há ali uma juventude e uma exuberância maiores do que em suas obras de jovem, as obras políticas, um pouco limitadas ideologicamente.
PLAYBOY – Como é sua amizade com Jorge Amado?
VARGAS LLOSA – A bonomia de Jorge sempre me fascinou. Ele é, talvez, entre todos os escritores que conheci, um dos que mais vi sempre contente, e de quem não me lembro ter ouvido falar mal de nenhum outro escritor – mas sempre bem, e de todos! Ele sempre me deu a impressão de que é um grande gozador da vida, carinhoso, afetuoso, sempre disposta a ajudar. Uma esplêndida pessoa vital!
PLAYBOY – Falando em Jorge Amado, volta e meia reaparece uma inevitável conversa de brasileiro segundo a qual ele deveria ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Que importância você atribui ao Nobel?
VARGAS LLOSA – Do ponto de vista da literatura, ele não tem nenhuma importância para um escritor: ele é bom ou mau escritor, com ou sem Prêmio Nobel. Mas é um reconhecimento que evidentemente qualquer escritor fica feliz em receber, é óbvio. Se Jorge Amado recebesse, me pareceria justíssimo, eu ficaria encantado e estou certo de que ele também. Agora, se não receber, não será o primeiro bom escritor a passar por isso. Ele estaria bem acompanhado – caramba! – por Jorge Luis Borges, Proust, Joyce, Kafka…[Risadas] Mas deixe-me dizer uma coisa mais: quando percorro um livro de Jorge Amado, tenho uma espécie de preconceito a favor, porque atrás do livro vejo essa figura tão carinhosa e divertida – isso contagia a história que estou lendo. Com [Pablo] Neruda era um pouco assim também.
PLAYBOY – Como era Neruda?
VARGAS LLOSA – Neruda, que talvez não tivesse o sentido de humor de Jorge Amado, era um grande gozador da vida. Era um homem que realmente gostava dos objetos de arte, de comida e bebida, que eram para ele uma experiência quase mística. Simpaticíssimo. Eu costumava ficar hospedado na casa dele, na Isla Negra [no litoral do Chile]. Era maravilhoso! Havia toda uma espécie de maquinaria social ao redor dele, de pessoas que cozinhavam e faziam coisas – havia sempre uma grande quantidade de convidados e hóspedes, e havia para todos comida e bebida, carinho e afeto. Era um mundo muito divertido, de uma enorme vitalidade – nada intelectualizado, em absoluto. Totalmente o contrário de um Borges, que é um homem que parece que não bebe, não fuma, não come, se diria que nunca em sua vida fez amor, que todas essas coisas foram para ele totalmente secundárias e que, se as fez, as fez por cortesia e nada mais. [Risada] Porque na realidade toda a sua vida está concentrada nas idéias, nas leituras, na reflexão, uma vida puramente intelectual. Neruda pertence à mesma linhagem de Jorge Amado, do poeta [espanhol] Rafael Alberti, que também é meu amigo e para o qual a literatura é parte da experiência sensual da vida.
PLAYBOY – Você poderia contar uma passagem divertida que você viveu com Neruda?
VARGAS LLOSA – Lembro-me de um aniversário dele passado em Londres. Ele quis comemorar – bem, ele tinha caprichos, sabe? – num barco sobre o Rio Tâmisa. Felizmente o poeta inglês Alistair Reed, que era admirador de Neruda, vivia justamente num barco sobre o Tâmisa, e pudemos organizar uma festa para ele. Ele aí disse que ia preparar um coquetel. Foi o coquetel mais caro do mundo: exigia não sei quantas garrafas de champanhe Dom Pérignon, sucos de frutas e não sei mais o quê. Ficou efetivamente maravilhoso, mas um único copo embebedou todos os celebrantes: absolutamente todos ficamos bêbados. Mesmo assim, recordo de uma coisa que, com o passar dos anos, tornou-se uma grande verdade.
PLAYBOY – O que foi?
VARGAS LLOSA – Eu recebera naqueles dias um artigo – nem me lembro qual era o assunto – que me entristeceu e enfureceu terrivelmente, porque me insultava e mentia a meu respeito. Mostrei-o a Neruda. Então, na festa e de porre, ele profetizou: “Você está começando a ser famoso. Quero que saiba o que lhe espera: quanto mais famoso você for, mais ataques como esse vai receber. Por cada elogio, virão dois ou três insultos desses. Eu tenho um baú no qual estão todos os insultos, infâmias e vilezas que se podem atribuir a um homem. Não existe uma que não me tenha sido atribuída: ladrão, maricón, traidor, canalha, cornudo… – tudo! Se você se tornar famoso, terá que passar por uma experiência parecida”.
PLAYBOY – E foi assim que aconteceu?
VARGAS LLOSA – Foi uma grande verdade: realmente o prognóstico se cumpriu de forma absoluta, com todo o rigor. Eu não tenho um baú, mas várias maletas de artigos onde existe toda classe de insultos, onde estão rigorosamente todos os insultos que se podem atribuir a uma pessoa. [Risadas]
PLAYBOY – Você, já se sabe – e a entrevista está comprovando isso –, é um homem de grande bom humor. Queria então perguntar-lhe: o que aconteceu com o Vargas Llosa de Pantaleão e as Visitadoras e de Tia Júlia e o Escrevinhador? Seus dois últimos livros são um tanto amargos, o humor de Pantaleão e Tia Júlia está ausente. O humor está difícil hoje em dia?
VARGAS LLOSA – Bem, nunca me coloquei a questão de decidir um dia, digamos, deixar de escrever livros de sonhos e escrever livros sérios. Simplesmente os temas dos livros que escrevi nesses últimos anos não se prestavam muito ao humor. Creio que as histórias de A Guerra do Fim do Mundo e da História de Mayta, e mesmo das peças de teatro que escrevi, não eram temas que poderiam ser bem aproveitados sob uma perspectiva humorística.
PLAYBOY – Você já admitiu ter sido, no passado, alérgico ao humor na literatura. Você está sofrendo uma recaída?
VARGAS LLOSA – Não, em absoluto. Eu era alérgico ao humor porque acreditava muito ingenuamente que uma literatura séria não poderia ser risonha. O humor seria perigoso quando se queria descrever, nos romances, problemas profundos do tipo social ou político, porque tenderia a superficializar as histórias, a criar no leitor uma espécie de atitude brincalhona, de incredulidade e simples divertimento. Por isso renunciei, então, ao humor. Creio que era a influência de Sartre, que sempre esteve totalmente brigado com humor em seus escritos e que teve uma influência muito grande sobre mim quando eu era jovem. Mas um dia descobri, por um tema que eu queria desenvolver, que o humor pode ser também um instrumento riquíssimo para a literatura. Foi o tema de Pantaleão [a história de um oficial do Exército peruano totalmente afeito aos regulamentos que é, um dia, encarregado de organizar um “serviço de visitadoras” para atender às necessidades sexuais dos oficiais aquartelados na selva]. Depois, aproveitei essa experiência em Tia Júlia, e não descarto que o humor volte a ser outra vez central em minhas histórias.
PLAYBOY – Os temas é que o escolhem, ou é você quem escolhe os temas?
VARGAAS LLOSA – Acho que os temas é que escolhem o escritor. Aos menos no meu caso, tenho sempre tido a sensação de que havia certas histórias que eu tinha que escrever, que não havia jeito de evitá-las, porque elas, de alguma maneira obscura para mim, estavam vinculadas a algum tipo de experiência fundamental.
PLAYBOY – Como assim?
VARGAS LLOSA – Por exemplo: meu período no Colégio Militar Leoncio Prado, este internato onde estive por dois anos quando era garoto. Foi uma experiência a respeito da qual, mais tarde, senti verdadeira obsessão de escrever. E por quê? Porque foi muito traumática, de certa forma significou o fim da minha infância, o descobrimento da violência, e também o descobrimento do meu país como algo di-
“Meu novo romance, El Hablador, se passa ao mesmo tempo em Lima, em Florença e na região amazônica do Peru”
ferente do que eu acreditava que fosse – uma sociedade violenta e rancorosa, com setores sociais, culturais e raciais completamente diferentes um do outro, e por vezes engalfinhados numa luta feroz. Com todos os meus livros até agora ocorreu algo parecido. Nunca tive a sensação de que, de maneira racional e fria, decidi escrever uma história, mas que havia certos fatos, episódios e pessoas, e às vezes certas fantasias, que depois se convertiam numa espécie de exigência de criação. Por isso é que eu falo muito sobre a importância do fator puramente irracional na criação literária.
PLAYBOY – O que você está escrevendo agora?
VARGAS LLOSA – Um romance que se chama El Hablador [literalmente O Falador.] Ele se passa simultaneamente em Lima, em Florença, na Itália, e na região amazônica de Cuzco, no Peru, em uma tribo muito primitiva da selva que são os machiguengas. Aparentemente, é um testemunho pessoal. Mas, ainda que efetivamente fale na primeira pessoa em boa parte do livro e conte o episódio de minha própria biografia, introduzi muitos elementos imaginários e de fantasia. Então, não se trata de uma autobiografia dissimulada, mas de um romance, e que tem um pouco a ver com esse mundo, que é o do meu país e de muitos da América Latina, em que no seio de uma mesma sociedade coexistem uma civilização moderna e sociedades e mentalidades muito primitivas, estacionadas no tempo.
PLAYBOY – Por que El Hablador?
VARGAS LLOSA – Entre os machiguengas existe um personagem que cumpre uma função muito particular, porque não é religiosa nem de curandeiro, mas, fundamentalmente, a de um contador de histórias. Os machiguengas estavam até há pouco dispersos e isolados em comunidades muito pequenas, porque viviam em uma região sumamente pobre, que não permitia a formação de comunidades importantes. E uma forma de comunicação entre esses grupos eram os personagens que os machiguengas chamam de los habladores, algo assim como trovadores ambulantes, um pouco esses cantadores que ainda se encontram no Nordeste brasileiro, que vão de povoado em povoado, com seu violão, cantando. No caso, os habladores iam de grupo em grupo, não cantando, mas contando histórias, falando – um pouco das coisas que haviam visto no grupo anterior, suas próprias experiências, velhas histórias da comunidade, mitos, lendas e invenções pessoais.
PLAYBOY – E como isso o levou ao livro?
VARGAS LLOSA – Quando me inteirei da existência desse personagem, um contador de histórias, um fabulador, numa sociedade tão primitiva, quase da Idade da Pedra, fiquei muito comovido. Foi uma dessas experiências que desde logo começam a inquietar-me, a desassossegar-me, a excitar minha imaginação, porque de certa forma esse homem, desde tempos imemoriais, está exercendo uma função parecida com a que eu cumpro na sociedade em que vivo: fabular, contar histórias, entreter, e ao mesmo tempo comunicar algo que vem de outros lugares.
PLAYBOY – E por que Florença entrou na história?
VARGAS LLOSA – Esse tema era um dos que me davam voltas na cabeça – sempre tenho muito mais temas do que tempo para escrever sobre eles. E neste último verão europeu eu passei dois meses em Florença. Fui para lá porque já estava farto de tanta atividade, queria ter um pouco de solidão para ler, queria ler Dante com tranquilidade, sem atender pessoas ou telefonemas. Em Florença, fiquei sabendo que havia, numa pequena galeria, uma exposição de fotografias da Amazônia. E foi como uma espécie de chamamento. Eu me pus a escrever a história machiguenga e incorporei a ela minha própria experiência florentina. Estou trabalhando nisso desde julho do ano passado.
PLAYBOY – Você imagina terminá-la quando?
VARGAS LLOSA – Jamais sei quando vou terminar uma história. Houve vezes em que comecei a escrever uma história que acreditava iria durar poucos meses, mas acabei trabalhando anos. Terminei um copião, um rascunho, e é um romance que até agora parece que vai ser curto. Mas estou começando a reescrevê-lo agora, e a verdade é que não sei até onde vou. Um romance termina para mim quando tenho a impressão de que, se eu não o acabar, ele vai acabar comigo.
PLAYBOY – O rascunho tem quantas páginas?
VARGAS LLOSA – Tenho umas 240 páginas escritas. Mas é só a primeira versão, não é? É o que em meu caso eu chamo o “magma”. Ou seja, uma espécie de caos em que a novela implicitamente está contida, mas como que escondida debaixo de uma grande pilha de folhas secas, de episódios completamente ocasionais que vão desaparecer, episódios repetidos, com diferentes perspectivas de diferentes personagens. É algo que só para mim tem sentido, e o que custa mais trabalho, sempre. Depois disso, reescrever, editar, cortar – isso me agrada muito. Gosto mais de reescrever do que escrever. Esta parte pra mim é muito excitante.
PLAYBOY – Uma última pergunta sobre seu novo livro: qual é o personagem principal? Um escritor peruano?
VARGAS LLOSA – Não. É a história de um rapaz judeu peruano que se torna um hablador dos michiguengas. É a história de uma transformação, de uma evolução – ou involução, se se quiser – deste jovem que pouco a pouco se vai identificando profundamente com essa comunidade amazônica primitiva até assumir a identidade de um hablador. Há um narrador que, digamos, usurpa boa parte de experiências minhas vinculadas à selva, mas no qual existe também uma grande quantidade de invenções
“Este é um elemento muito difícil de captar por um leitor médio: o narrador de uma história não é nunca o autor”
e fantasias. Este é um elemento muito importante para mim e muito difícil de se fazer captar por um leitor médio: que o narrador de uma história não é nunca o autor, ainda quando apareça com o nome, o sobrenome e a própria vida do autor. É sempre uma invenção, sempre alguém em quem o autor se transforma. O primeiro personagem que o autor inventa é, sempre, um narrador.
PLAYBOY – Você disse há pouco que tinha um número excessivo de projetos – tal como o personagem Pedro Camacho, o escritor de novelas de rádio Tia Júlia – e a certeza de que não haveria tempo para escrever tudo o que desejava. O que você quer fazer e acha que não vai conseguir?
VARGAS LLOSA – Não sei quais projetos, porque constantemente estou mudando minha ordem de prioridade. Mas, das coisas urgentes que gostaria de escrever, tenho, além de El Hablador, um projeto muito ambicioso, inspirado na vida de um personagem histórico feminino, Flora Tristán. É um personagem muito interessante, foi a avó do grande pintor francês Paul Gauguin. Há rumores, sem muito fundamento, de que foi filha natural de Simón Bolívar. Ela viveu na França na primeira parte do século passado e foi uma grande lutadora social, talvez a primeira mulher que se pode realmente chamar de feminista, além de ter sido uma grande socialista utópica, que correu a França denunciando a condição operária em circunstâncias que, para uma mulher na época, eram heróicas. Foi uma grande panfletária e, além do mais, vinculada ao Peru, porque seu pai era um general peruano. Ela visitou o Peru quando jovem – veio reclamar uma herança que não conseguiu – e deixou seu testemunho desta viagem num livro maravilhoso que se chama Peregrinaciones de una Pária. Há anos tomo notas para um romance de tipo histórico, um pouco como A Guerra do Fim do Mundo – ou seja, inspirado em personagens históricos, mas escrito com toda liberdade de criação. É um dos projetos.
PLAYBOY – Há pouco mencionamos Pedro Camacho. Ele também tinha muitos projetos na cabeça, e era obrigado a realizá-los simultaneamente. Existiu alguém que fosse mesmo o Pedro Camacho de Tia Júlia?
VARGAS LLOSA – Eu conheci, quando comecei a trabalhar numa rádio e era muito jovem, no começo dos anos 50, um escritor que produzia novelas de rádio para a rádio Central, de Lima. Era um personagem realmente muito pitoresco, no sentido de que ele era uma espécie de indústria radioteatral, porque produzia inúmeras novelas, que escrevia com enorme facilidade, quase sem tempo sequer para reler. Ele me fascinou muito porque foi o primeiro escritor profissional que conheci, alguém que dedicava sua vida a escrever. E me fascinava essa espécie de mundo tão vasto, tão numeroso, que saía dele de uma maneira quase inconsciente, como uma respiração. E a ele ocorreu, de uma maneira muito mais resumida, o que se passou com Pedro Camacho no romance. Um dia as histórias começaram a confundir-se, a misturar-se, e a rádio ficou sabendo por telefonemas de ouvintes, que assinalavam incongruências e apontavam personagens que saltavam de uma história para outra. Foi o que me deu a idéia do romance – mas o personagem do romance foi totalmente transformado, tem pouco a ver com o modelo.
PLAYBOY – E como terminou a história real desse homem? Ele também enlouqueceu?
VARGAS LLOSA – Não. Terminou de uma maneira muito menos dramática do que no romance. Ele teve que tirar uma temporada de descanso na rádio.
PLAYBOY – Mas de todo modo seu casamento com uma pessoa da própria família – a tia Júlia do livro – foi real, não?
VARGAS LLOSA – Claro. Esse episódio é verídico no principal. Eu me casei quando tinha 19 anos com uma dama que efetivamente se chamava Júlia e era mais velha do que eu. Era uma parente por afinidade: irmã de uma senhora casada com um tio meu, que tinha estado em visita ao Peru. Tivemos um romance um tanto tempestuoso, cujos traços principais são os que aparecem no romance.
PLAYBOY – Houve notícias de que ela chegou a processá-lo na Justiça, ou algo próximo a isso, pelo uso de seu nome na história. É verdade?
VARGAS LLOSA – Não chegou a ser um processo. Nós havíamos tido uma relação muito bonita e eu lhe tinha muito carinho, porque foi uma pessoa que efetivamente me ajudou muito – razão pela qual eu lhe dediquei o romance. O primeiro exemplar, eu lhe enviei com uma carta carinhosa e ela me respondeu no mesmo tom. Infelizmente houve toda uma curiosidade jornalística, nem sempre bem-intencionada, muitas vezes marrom, mexeriqueira, doentia. Tenho a impressão de que foi isso que a irritou e exasperou. Ela então mudou inteiramente a sua atitude e, infelizmente, começou uma campanha muito hostil pelos jornais, e inclusive publicou um livro sobre o caso. Este foi o pior resultado que Tia Júlia teve: ter malogrado essa relação, que até então era muito cordial.
PLAYBOY – No caso de Pantaleão e as Visitadoras, em quem você se inspirou para criar o oficial que vai à selva organizar um serviço de assistência sexual para os militares peruanos?
VARGAS LLOSA – Parte também de um fato real. Numa viagem que fiz à selva, descobri que os quartéis de fronteira recebiam “visitadoras”. E descobri pelo rancor e a inveja que isso provocava na população civil masculina. Os vizinhos viam com enorme indignação as “visitadoras” passarem diante de seus narizes, entrarem nos quartéis e irem embora, sem que eles pudessem desfrutar desse serviço patriótico. Isto me deu imediatamente a idéia. Eu havia estado no colégio militar, conhecia um pouco a mentalidade e os mecanismos militares, e imaginei que esse serviço tinha que ter sido organizado como se organizam as coisas no Exército, isto é, de acordo com uma burocracia muito estrita. Isto me sugeriu o personagem desse pobre oficial a quem um dia encarregaram de organizar a coisa toda. Assim nasceu Pantaleão.
PLAYBOY – Mas havia mesmo no Peru um serviço de “visitadoras”, oficialmente?
VARGAS LLOSA – Era uma coisa oficial e clandestina ao mesmo tempo, uma instituição que o Exército organizava e, ao mesmo tempo, não reconhecia. [Risos] Tenho informações de que é um serviço que hoje em dia passou inteiramente para as companhias petrolíferas da selva, que o monopolizam, e que todo o Exército ficou sem “visitadoras” – porque aparentemente as companhias pagam muito melhor. [Gargalhada]
PLAYBOY – Passando de Pantaleão para outro de seus livros, Conversa na Catedral. É verdade que você teve a idéia mais de dez anos antes de escrever o livro, quando esteve na presença do chefe da segurança do general Manuel Odría, ex-ditador peruano?
VARGAS LLOSA – Exatamente. Eu era estudante na Universidade de San Marcos e estávamos num momento muito duro da ditadura – em 1953, 1954, por aí. Nós tentamos levar mantas a uns colegas que estavam presos, e a direção da prisão não permitia sem autorização do chefe da segurança do regime, don Alejandro Esparza Zañartu. Pedimos uma audiência e fomos falar com ele. Era o homem mais odiado do regime, o homem que era o centro da força, porque ele conseguiu um eficiente sistema de dela-
“O serviço [de ‘visitadoras’ sexuais para os militares peruanos na selva] passou para as companhias de petróleo. Elas pagam mais…”
tores e informantes que acabou permitindo que a ditadura durasse oito anos – provavelmente não duraria tanto sem ele. Eu me impressionei muito quando o vi.
PLAYBOY – Por quê?
VARGAS LLOSA – Era um homem insignificante, que mal sabia se expressar e transmitia a impressão de uma grande mediocridade. E pensar que esse homem concentrava semelhante poder! Foi uma impressão tão viva que me sugeriu a idéia de um personagem. Bem, a novela era muito mais que isso, claro. A idéia do romance era mostrar como funciona uma ditadura, mas sobretudo em setores aparentemente distanciados da vida política, ou seja, de que forma uma ditadura desse tipo pode corromper a vida universitária, a vida cultural, a atividade profissional, as relações amorosas – até que ponto um clima tão corrompido pela ditadura pode envilecer todo o tecido de uma sociedade.
PLAYBOY – Esse homem se transformou então no personagem Cayo Mierda?
VARGAS LLOSA – Exatamente, foi seu modelo. É claro que, como sempre, há muitos elementos inventados no romance. Esse homem não era político, mas um negociante. Por acaso chegou a ocupar este cargo, e ali encontrou uma espécie de genialidade, descobriu uma vocação e um talento profundos. Encontrou-se com seu destino, como diria Borges, e converteu este cargo – até então anódino, marginal – na coluna vertebral da ditadura.
PLAYBOY – O personagem real leu o livro, quando ele foi publicado anos depois?
VARGAS LLOSA – Leu. Foi muito engraçado, porque, quando o livro saiu em Lima, o personagem foi imediatamente reconhecido. Um jornalista foi entrevistá-lo – ele vivia nos arredores de Lima e totalmente dedicado a cultivar abacates e à filantropia. Havia doado um terreno para a construção de um hospício. [Sorriso] Ele fez, então, um comentário muito divertido: “Por que Vargas Llosa não veio me ver? Eu lhe teria contado coisas muito mais interessantes do que as que ele conta no livro”. [Risadas]
PLAYBOY – Você já disse mais de uma vez que considera seu romance passado no Brasil, A Guerra do Fim do Mundo, sobre Canudos, sua melhor obra. Ainda pensa assim?
VARGAS LLOSA – É o romance em que eu mais trabalhei. Tomou-me quatro anos para escrever, e além disso consultei uma enorme documentação, fiz incontáveis leituras e tive muitas dificuldades porque era a primeira vez que eu escrevia sobre um país diferente do meu, uma época diferente, e com personagens, além disso, que falavam entre si uma língua diversa daquela em que eu escrevia. Ao mesmo tempo, nunca uma história me apaixonou tanto. Todo o trabalho para mim foi muito apaixonante, desde as coisas que li até a viagem que fiz pelo Nordeste. Por outro lado, é uma história que me permitiu escrever um tipo de novela que eu sempre quis escrever: um romance de aventuras em que a aventura – não a puramente imaginária, mas com raízes muito fortes numa problemática histórica, social – fosse o principal.
PLAYBOY – Escrevê-lo significou o quê? Medo do desafio e vontade de vencê-lo simultaneamente?
VARGAS LLOSA – Isso mesmo. A princípio, eu tinha uma grande insegurança. Senti uma espécie e vertigem, porque tinha um material de pesquisa tão colossal. O primeiro rascunho, o “magma” do livro é gigantesco, seguramente o dobro do que é o romance [que tem 560 páginas na tradução brasileira]. Eu me perguntava: “Como vou começar a enlaçar todo este mundo de episódios, de mil pequenas histórias?” Nos dois primeiros anos, trabalhei com grande insegurança. Depois de dois anos de começado o trabalho, fiz a viagem pelo Nordeste, percorri todo o sertão, e isso para mim foi muito, muito importante.
PLAYBOY – O que você já tinha redigido, então?
VARGAS LLOSA – Eu fiz primeiro um copião, antes de ir. Eu queria, antes de ir, imaginar, fabular um pouco a história, à base exclusivamente de documentação, e só depois viajar.
PLAYBOY – Como surgiu a idéia do livro?
VARGAS LLOSA – Surgiu como um projeto cinematográfico para o diretor Ruy Guerra. Ele me explicou sua idéia de uma história que tivesse alguma vinculação com a guerra de Canudos – não sobre a guerra em si, porque era uma coisa vasta demais. Eu nunca tinha ouvido falar na guerra de Canudos e comecei, então, a me documentar. Uma das primeiras coisas que li – em português – foi Os Sertões, de Euclides da Cunha, que para mim é uma das grandes experiências da minha vida de leitor. Foi como ter lido, quando garoto, Os Três Mosqueteiros, ou, já adulto, Guerra e Paz, Madame Bovary ou Moby Dick. Um deslumbramento, realmente, um dos grandes livros que já se escreveram na América Latina. Creio que a pessoa a quem eu realmente devo ter escrito A Guerra do Fim do Mundo é Euclides da Cunha. Escrevi então o roteiro, mas o filme, por essas coisas que acontecem no cinema, acabou não sendo feito pela produtora, a Paramount de Paris. Para Ruy Guerra foi uma desgraça, mas para mim foi a possibilidade de continuar trabalhando num assunto por que me apaixonara. Creio ter lido praticamente tudo o que se escreveu sobre Canudos.
PLAYBOY – Como foi sua viagem ao sertão? Quem o acompanhou?
VARGAS LLOSA – Eu tive a sorte de que Jorge Amado, que não estava no Brasil na época, me recomendasse a uma pessoa que foi muito importante para mim: Renato Ferraz. Ele havia sido diretor do Museu da Bahia, havia estudado Antropologia, mas, cansado da cidade, tinha se retirado para o sertão e vivia em Esplanada, onde continua até hoje. Ele aceitou acompanhar-me durante todo esse mês de viagem, conhece o sertão como a palma da mão e, além disso, tinha o tipo de conhecimento de que eu necessitava mais: sabia o nome do último galho, arbusto, animalzinho e inseto do sertão. E além disso tinha uma capacidade de comunicação extraordinária com a gente da região. Foi muito fácil, através dele, falar com camponeses, vaqueiros, párocos, cantadores ambulantes, agricultores.
PLAYBOY – Você falou com muita gente?
VARGAS LLOSA – Não sei com quanta gente falei, mas foram dezenas e dezenas de pessoas. Não fazíamos outra coisa a não ser ir de povoado em povoado. Percorremos os 25 pequenos povoados onde se diz que o Conselheiro esteve. E talvez para mim o dia mais emocionante da minha vida foi quando eu cheguei com Renato não a Canudos – porque Canudos está hoje no fundo de uma grande represa – mas ao cerro que foi cenário da grande batalha, onde está a cruz que ficava na igreja de Canudos. Ela foi plantada ali, e ainda está cheia de estilhaços de bala. Você não sabe o que foi para mim chegar ali. Eu estava há dois anos trabalhando nisso, e era como se minha fantasia se estivesse materializando. Até ali, o trabalho de escrever tinha sido angustiante. Mas dali até terminar o livro, que foram mais dois anos, trabalhei com um enorme entusiasmo dez, doze horas por dia. Eu tinha, porém, muito temor quanto a como o livro seria recebido no Brasil.
PLAYBOY – Você percebeu ciúmes, por ser um estrangeiro escrevendo sobre um tema tão brasileiro, que além do mais já fora tratado num livro clássico?
VARGAS LLOSA – Absolutamente. Bem, houve algumas críticas hostis ao livro, é claro. Um senhor chamado Edmundo Moniz, por exemplo, que é autor do livro A História Social de Canudos, me fez a crítica mais severa – mais que uma crítica literária, era ideológica, considerando o romance reacionário e anti-socialista. Creio que sua interpretação de Canudos, na qual Conselheiro aparece pouco menos que como o Lênin do sertão, é talvez mais novelesca que minha própria novela. Mas em geral a acolhida ao livro foi de uma generosidade e um entusiasmo que me comoveram, inclusive por parte do público. Eu me senti premiado pelo que me custou escrevê-lo.
PLAYBOY – Você tem algum outro projeto não-peruano?
VARGAS LLOSA – Sim, o de Flora Tristán. Ele só tem um pé no Peru, pois o grosso da história ocorre na França, com personagens que falam entre si em francês. Mas, em geral, os projetos de romance que tenho estão mais vinculados ao Peru.
PLAYBOY – Especificamente em relação ao Brasil, há algum projeto de outro tipo? Chegou-se a falar na possibilidade de você passar um ano na Universidade de Brasília.
“Nunca me decepcionei ao reler Faulkner, como me aconteceu com Hemingway. Quanto a Sartre, para mim sua ficção envelheceu”
VARGAS LLOSA – Nunca chegou a materializar-se um convite. O novo reitor da Universidade, Cristovam Buarque, é muito amigo meu. Conheço-o desde a época em que ele era funcionário do Banco Interamericano do Desenvolvimento, em Washington. Ele me fez chegar um convite, e ficou combinado que, no curso deste ano, eu vou passar uma temporada na Universidade de Brasília. Gosto muito da idéia, porque tenho muito carinho pelo Brasil. Também gostaria um dia – é um de meus muitos projetos – de escrever um pequeno ensaio sobre Euclides da Cunha, o conjunto de sua obra e sua vida, que foi muito dramática.
PLAYBOY – De escrever passemos para ler. Quais são seus autores preferidos?
VARGAS LLOSA – Fui leitor entusiasta dos romancistas americanos – Faulkner, Hemingway, Fitzgerald, Dos Passos –, sobretudo de Faulkner, que é, entre minhas leituras de juventude, um dos autores que se conservaram vivos. Foi o primeiro romancista que li com lápis e papel na mão, porque, além de ele ser um dos grandes escritores do século XX, sua técnica me deslumbrou. Nunca me senti decepcionado ao reler Faulkner, como me aconteceu às vezes com Hemingway. Sartre, um autor que eu quando jovem seguida de maneira sistemática e apaixonada, é um escritor que eu não releria hoje – sua ficção envelheceu muito e se empobreceu tremendamente ante tudo o mais que li, e sua obra de ensaísta, apesar de inteligente, me parece hoje muito menos importante, com muitas contradições, equívocos, inexatidões e falácias. E também li com uma enorme paixão muitos dos romancistas do século XIX: Flaubert, Balzac, Dostoievski, Tolstoi, Stendhal, Hawthorne, Melville…
PLAYBOY – Que autores seriam, hoje, capazes de fazer você ir correndo a uma livraria?
VARGAS LLOSA – Olhe, eu não sei bem, porque ocorre comigo desde há alguns anos uma coisa curiosa: leio cada vez menos os escritores vivos e cada vez mais os mortos, muito mais escritores do século XIX do que do século XX. E, talvez, nos últimos anos, menos literatos do que ensaístas e historiadores. Em alguns casos por questões de trabalho, mas o que há também é que, quando se tem 15 ou 18 anos, a gente tem a impressão de que dispõe de todo o tempo do mundo. Na altura dos 50, se dá conta de que não dispõe, e que deve ser mais seletivo.
PLAYBOY – E entre os escritores latino-americanos contemporâneos?
VARGAS LLOSA – Curiosamente, descobri a literatura latino-americana quando fui para a Europa, em 1958, me pus a lê-la com grande entusiasmo e, depois, cheguei a ensiná-la como professor. Li Borges, o autor que mais já havia lido antes disso, Carpentier, Cortázar, Guimarães Rosa, Lezama Lima – li toda essa geração, mas não García Márquez, que nessa época eu não conhecia. Depois li García Márquez com grande interesse e até escrevi um livro sobre ele.
PLAYBOY – Borges é seu preferido?
VARGAS LLOSA – Sim. Creio que, se eu tivesse que ficar com um nome, escolheria o Borges. É um escritor de enorme originalidade e fantasia, e sua cultura é muito rica e, ao mesmo tempo, muito pessoal e arbitrária. E, depois, há a linguagem de Borges, que rompe uma tradição em nosso idioma. O espanhol é um idioma que tende naturalmente
“No meu programa de TV, eu falei que me impressionara com a modéstia do apartamento de Borges. Isso o ofendeu tremendamente”
À exuberância, à proliferação, à retórica abundante, desde Cervantes até Ortega y Gasset. Borges é exatamente o contrário: é a concisão, a economia de recursos, a precisão – um dos pouquíssimos escritores de língua espanhola em que há quase tantas idéias como palavras.
PLAYBOY – Como são suas relações com Borges?
VARGAS LLOSA – A primeira vez que o vi foi em Paris, no começo dos anos 60. Ele fora fazer conferências, e depois eu o entrevistei – ainda me lembro com emoção – para a Rádio e Televisão Francesa, onde eu trabalhava. Mais tarde, eu o encontrei várias vezes, em diferentes lugares do mundo. Na penúltima vez, estive em sua casa entrevistando-o para um programa que eu tinha na televisão do Peru, e tenho a impressão de que ele ficou um pouco ressentido comigo por coisas que eu disse. Algo muito estranho, porque eu, depois da entrevista – que evidentemente era muito carinhosa, pela admiração que lhe tenho –, disse que havia ficado impressionado com a modéstia de seu apartamento, que tinha até goteiras no teto. Parece que isso o ofendeu tremendamente. Eu o vi uma vez depois, e ele foi sumamente distante comigo.
PLAYBOY – Você sabe a opinião de Borges sobre sua obra?
VARGAS LLOSA – Não creio que ele tenha lido meu trabalho. Pelo menos ele diz que não lê há quarenta anos nenhum escritor vivo, que lê sempre os mesmos livros… Mas é um escritor que aprecio muito. Não é o único, claro. Neruda, por exemplo, foi um grande poeta. Octavio Paz eu admiro muito – não apenas é um grande poeta, mas também um grande ensaísta, com idéias muito originais sobre pintura, literatura, política.
PLAYBOY – Por falar em poetas, em História de Mayta você, como narrador, conta que gostava de ler o poeta e padre Ernesto Cardenal, atual ministro da Cultura da Nicarágua, mas que depois de vê-lo pessoalmente não conseguiu ler mais nada de sua autoria. Como foi isso?
VARGS LLOSA – Ele veio ao Peru no início dos anos 70 para conferências e recitais. Fui vê-lo e fiquei consternado pela demagogia.
PLAYBOY – Que tipo de demagogia?
VARGAS LLOSA – Demagogia política. Um escritor pode ser radical ou conservador, mas tem sempre a obrigação de ser intelectualmente íntegro, não incorrer no estereótipo, no clichê ou na pura mentira retórica para conseguir aplausos. Ele me parece um farsante ideológico, não um homem com idéias de esquerda, mas uma espécie de palhaço que repetia as coisas mais capazes de impressionar o auditório. Desde então não consigo ler Cardenal, porque quando vejo um poema seu o que aparece é o demagogo que fazia o papel de pássaro tropical revolucionário. Eu o vi em outros lugares também.
PLAYBOY – Você tinha relações pessoais com ele?
VARGAS LLOSA – Eu o conhecia, mas não fui seu amigo. E, da última vez que nos encontramos, ele mostrou uma grande elegância, embora saiba que escrevi coisas a seu respeito. Mas talvez por isso eu já não frequente tanto escritores como antes. Creio que o importante dos escritores são os livros. Melhor lê-los do que conhecê-los, muitas vezes.
PLAYBOY – Por falar nisso, como são suas relações com García Márquez? Você tinha grande admiração por ele, mas parece que ainda estão brigados, não?
VARGAS LLOSA – Nós éramos amigos e fomos, além disso, vizinhos durante anos em Barcelona. Mas o afastamento se deveu mais a uma questão pessoal, que nada tem a ver com suas posições ideológicas – das quais eu também divirjo profundamente, porque creio que, politicamente, García Márquez não é de forma alguma o bom escritor que é de literatura. Mas tampouco é uma pessoa que me parece muito respeitável, nem tenho muito respeito por suas atitudes políticas, não me parecem sérias. Creio que são bastante oportunistas e que fazem parte de uma certa administração publicitária de sua pessoa.
PLAYBOY – Esta questão pessoal tem algo a ver com um incidente dentro de um cinema, na Cidade do México, em que vocês teriam trocado socos?
VARGAS LLOSA – Tivemos um incidente no México, sim. Mas este é um assunto sobre o qual prefiro não falar, porque houve muita especulação a respeito.
PLAYBOY – Mas estamos justamente oferecendo uma oportunidade para que você dê a versão que considera correta…
VARGAS LLOSA – [Sorrindo, mas firme] Se eu escrever minhas memórias depois de fazer 70 anos [risos], talvez inclua a verdadeira história do incidente.
PLAYBOY – Você falou em especulações, uma vez que você é uma figura pública. Em que medida ser célebre o afeta?
VARGAS LLOSA – Isso é uma das maiores desgraças que podem ocorrer a uma pessoa, porque quando alguém começa a escrever supõe que o reconhecimento e a popularidade sejam algo que o vão encher de satisfação, como uma espécie de prêmio a seu esforço e confirmação de seu talento. Não é nada disso. Converter-se numa pessoa famosa só traz inconvenientes. Você ganha inimizades – inimizades surpreendentes. Eu perdi meus melhores amigos por ser famoso. Cheguei a descobrir amigos íntimos que eram inseparáveis e se converteram da noite para o dia em inimigos mortais.
PLAYBOY – Como?
VARGAS LLOSA – Isso provoca emulações, invejas, estranhos ressentimentos e rancores. Por outro lado, você se transforma em objeto de uma curiosidade doentia, contínua, constante, que não o deixa absolutamente em paz. Fica uma pessoa como que constantemente vigiada. Isso faz com que se perca a espontaneidade e a naturalidade. É inevitável, se você vai à rua e o apontam, o chamam, o olham. No final, você está constantemente se autovigiando, e a privacidade desaparece. Por outro lado, você se vê envolvido continuamente em milhares de atividades que não lhe interessam e que não pode evitar, além de estar constantemente descobrindo, em jornais, rádio, televisão, revistas, uma imagem que não é a sua, na qual você não se reconhece.
PLAYBOY – É que você é uma instituição no Peru. Que tal falarmos um pouco de política para sabermos, por exemplo, como foi que essa instituição que é você rompeu com o marxismo?
VARGAS LLOSA – Fui bastante vinculado ao marxismo quando era estudante universitário. Li muito marxismo, militei numa organização que substituiu o Partido Comunista no Peru. Depois, o triunfo da revolução cubana me provocou um grande entusiasmo, como a muitos intelectuais latino-americanos. Cuba parecia uma forma renovada, mais moderna, flexível e aberta de revolução. Vivi isso com muitíssimo entusiasmo, considerando Cuba como um modelo que poderia ser erguido pela América Latina. Pouco a pouco fui vendo que era uma ilusão: a revolução optou por um rumo diverso e por formas soviéticas de socialismo, por um sistema autoritário, vertical, sem liberdade de pensamento. Por outro lado, conhecer a União Soviética e os países socialistas também significou para mim uma tremenda decepção. No caso de Cuba, estive várias vezes na ilha e, a princípio, não queria ver a realidade, me incomodava muito reconhecê-la. A ruptura se produziu, basicamente, com o caso Padilla, em 1971.
PLAYBOY – Como foi?
VARGAS LLOSA – O poeta Herberto Padilla havia feito algumas críticas à política cultural do regime e foi subitamente preso, acusado de subversão política e anti-socialista, esse tipo de coisa. Ficou preso um mês e depois emergiu da prisão num ato público da União Nacional de Escritores e Artistas no qual fez autocrítica, se acusou dos piores crimes ideológicos, acusou amigos seus de serem agentes da CIA. As pessoas que conhecíamos Padilla sabíamos que isso era uma grande farsa: Padilla realmente não estava dizendo nem a verdade nem o que sentia ou acreditava. Para quem conhecia o caso todo, era impossível aceitar aquilo.
PLAYBOY – Fidel Castro fez então um discurso, chamado de “canalhas” os escritores que, como você, assinaram um manifesto de protesto, não foi?
VARGAS LLOSA – Isso mesmo. Fidel Castro é um homem de uma inteligência política maquiavélica. Se se manter no poder e fazer todo o necessário para lá permanecer é o critério pelo qual deve ser julgado um dirigente político, Fidel é um homem genial. Isso nem se discute. No caso da política cultural de Cuba, num primeiro momento a revolução mostrou uma amplitude e pluralismo tais que praticamente todos os artistas e intelectuais não-reacionários do mundo abraçaram sua causa. Tinha-se a impressão, enfim, de que havia uma revolução com liberdade, e isso serviu muitíssimo à causa da revolução cubana. Mas passada essa fase de insegurança, quando a revolução se afirmou e passou a fazer parte do sistema soviético, esses aliados independentes, muitos deles anti-stalinistas e antitotalitários, tornaram-se muito incômodos por suas críticas e suas perguntas. Lembro-me de que, em 1968 ou 1969, quando da primeira repressão contra homossexuais em Cuba, houve uma reunião com Fidel, em que vários intelectuais…
PLAYBOY – Você estava lá?
VARGAS LLOSA – Sim. Nós lhe perguntamos – porque havia conhecidos nossos, atores e poetas, que tinham sido levados aos batalhões onde se colocavam homossexuais e criminosos para trabalhar no campo: “Mas isso não se coaduna com a política aberta e tolerante da revolução cubana, não?” Esse tipo de intromissão já era muito incômodo. Então creio que o caso Padilla foi o pretexto habilmente encontrado por Fidel para livrar-se de vez desses aliados que já não lhe eram úteis. Ficaram os incondicionais, os que iam apoiar a revolução fizesse ela o que fosse, ou porque eram sectários e stalinistas e funcionavam como o cachorro de Pavlov, por reflexos condicionados, ou até porque eram mesmo compráveis, baratos, podiam ser comprados com uma passagem de avião ou um convite para um congresso. Assim tem sido até agora, porque a política já começou a mudar outra vez, não?
PLAYBOY – Como assim?
VARGAS LLOSA – Agora em Cuba outra vez esboça-se uma abertura, começam a ir para lá, novamente, pessoas independentes, escutam-se críticas…É o gênio de Fidel, pois é um gênio, um homem absolutamente fascinante, não há nada que se possa fazer…Em reuniões privadas, então, é um encantador
“Os cubanos me propuseram basicamente doar o prêmio para a guerrilha e, depois, receber o dinheiro de volta na embaixada”
de serpentes! Tenho uma boa história a respeito. Estive na Nicarágua o ano passado. Um dia, Fidel apareceu lá para o aniversário da revolução. Então Tomás Borge [ministro do Interior e chefe da polícia do governo sandinista da Nicarágua] me disse um dia “Fidel esteve aqui e queria vê-lo”. [Risos] “Queria ver-me?”, perguntei. Ele disse: “Sim, porque você faz críticas a Cuba e ele estava disposto a falar com você. Eu estive procurando por você e não o encontrei”. Eu disse: “Mas que ruim deve ser sua polícia, porque [risos] você é o chefe da polícia e não conseguiu me localizar!”
PLAYBOY – Depois do caso Padilla, você não voltou mais a Cuba?
VARGAS LLOSA – Não, depois do caso Padilla eu, no dia seguinte ao rompimento com Cuba, com a carta a Haydée Santamaria [presidente da principal instituição cultural cubana, a Casa de las Americas, e falecida em 1980] renunciando a meu posto no Comitê Editorial e a carta dos intelectuais a ela dirigida, que eu escrevi, comecei a receber uma espécie de chuva de injúrias, que para mim foi muito instrutiva. A maquinaria que se põe em movimento nesses casos é absolutamente extraordinária. Eram os mesmos insultos, da Argentina ao México, com as mesmas palavras, os mesmos clichês!
PLAYBOY – Nessa campanha você foi acusado de ter-se comprometido a doar o dinheiro recebido do prêmio literário Rómulo Gallegos, em 1967, ao fundo de guerrilha do Che Guevara e de, em vez disso, ter comprado uma casa. Como foi o caso?
VARGAS LLOSA – Esse foi um dos episódios que precederam meu distanciamento com Cuba. Um belo dia eu estava em Paris e me comunicaram que eu figurava entre os finalistas do prêmio. Minha editora, a Seix Barral, de Barcelona, havia apresentado meu romance A Casa Verde sem que eu soubesse. Eu tinha uma relação muito estreita com a revolução cubana na época e cometi o erro – mas ao final foi totalmente positivo tê-lo feito – de dizer a Alejo Carpentier, que era o adido cultural cubano em Paris, que eu queria conhecer a opinião de Cuba sobre o prêmio. Voltei a Londres, onde vivia, e dias depois recebi um telefonema de Alejo Carpentier dizendo que ia a Londres, porque tinha uma mensagem a ser comunicada pessoalmente a mim.
PLAYBOY – O que era?
VARGAS LLOSA – Era uma carta dirigida por Haydée Santamaria a Alejo Carpentier para que ele a lesse para mim. Como que para não deixar provas do episódio. Na carta, que provavelmente não foi escrita por Haydée – ela não poderia havê-la escrito –, se dizia, entre elogios a minha obra, que o prêmio me dava a grande oportunidade de praticar um gesto em favor da revolução na América Latina: fazer um donativo ao Che Guevara, que estava naquele momento lutando, ninguém sabia onde. Até aí muito bem, mas então veio uma parte que me ofendeu muito: a carta dizia que “naturalmente nós compreendemos que um escritor tem necessidades”, e me propunha, depois da doação, a devolução discreta do dinheiro. Eu disse a Alejo Carpentier: “Alejo você imagina o que Haydée está me propondo? Que eu faça toda essa farsa? Isso me ofende muitíssimo, não é maneira de tratar um escritor que tem respeito por seu trabalho”. Então Alejo Carpentier – que era muito cínico, um grande escritor, mas um homem muito cínico, um funcionário de governo – disse [mudando a entonação da voz]: “Eu não vou dizer isso desse jeito para a Haydée, porque não convém que você brigue com a revolução…Vamos dizer que você não pode fazer isso, mas que você vai fazer algum gesto…”
PLAYBOY – E como o episódio terminou?
VARGAS LLOSA – Fui receber o prêmio e pronunciei um discurso em que fiz elogios à revolução cubana e tomei distâncias do governo da Venezuela [instituidor do prêmio e, na época, atritado com Cuba]. Recebi depois uma carta de Haydée, muito carinhosa, me felicitando pelo “grito de Caracas” [irônico]. Mas de todo modo isso já criou uma distância, um esfriamento. O episódio demonstrou para mim que para um governo, especialmente do tipo totalitário, um escritor não é nada mais que um instrumento que se usa em função do poder. Então, sob este aspecto, minha ruptura posterior com Cuba foi para mim muito importante, porque me deu liberdade e independência. A mim podem insultar, mas nunca ninguém poderá dizer que tomei uma posição política por uma razão interesseira. Posso ter-me equivocado ao longo da vida, mas sempre me equivoquei em função de convicções.
PLAYBOY – Entre seus amigos em Cuba estava o Che Guevara?
VARGAS LLOSA – Nunca conheci o Che Guevara. É curioso porque fui bastante amigo de sua mulher, Hilda Gadea, que, como você sabe, é peruana. Aliás, sobre isso me ocorreu um episódio interessante. Quando eu morava em Paris, um dia recebi um telefonema de Hilda, que vivia em Havana, já separada do Che, nessa época. Ela me disse: “Vai para Paris uma pessoa amiga minha que não tem recursos. Você poderia hospedá-la em sua casa?” Eu vivia muito pobremente, em dois quartinhos muito modestos, mas disse que sim. E ela: “Não vou lhe dizer quem é, você vai conhece-la aí”. Pois era a mãe do Che Guevara! Era a senhora Celia, que tinha estado em Havana para ver o filho e regressava [via Paris] à Argentina. A mãe dele esteve hospedada na minha casa durante dez dias. A senhora, muito simpática, efetivamente não tinha um centavo. E mostrava até que ponto o Che era uma pessoa absolutamente íntegra, quer dizer, era o poderoso segundo homem de Cuba, e sem condições de dar a sua mãe 200 dólares!
PLAYBOY – Por falar em Che Guevara, houve uma época em que você compreendia as pessoas que optavam pela luta armada, e em seu país, o Peru, em 1965, você chegou mesmo a apoiar um grupo que pegou em armas contra o governo. Você ainda tem compreensão por quem escolhe essa via?
VARGAS LLOSA – Compreensão em termos individuais, sim. Creio que estão equivocados, mas entendo o mecanismo que leva muita gente à luta armada, claro. É uma mescla de muitas coisas: um certo romantismo, essa tentação utópica de fazer tábula rasa, de começar do zero, essa idéia de que existe uma solução final, absoluta. É muito difícil erradicar isso, porque há entre nós uma tradição que não é apenas marxista, mas que vem de muito antes, em favor da insurreição, e a idéia de que, se se está disposto a investir em heroísmo, sacrifício e violência, pode-se conseguir o poder e fazer, com ele, o que se quiser.
PLAYBOY – Qual sua opinião sobre o Sendero Luminoso no Peru?
VARGAS LLOSA – Creio que o Sendero Luminoso é a culminação de todo esse processo, que pode chamar de legitimação da violência como instrumento de luta política. Ou seja, a idéia de que o único instrumento válido da política é a violência física, e que esta, por outro lado, é um sinal da verdade: a verdade está na ponta do fuzil – não o poder, como dizia a frase de Mao Tsé-tung, mas a verdade! Você soma a isso a terrível crise econômica vivida pelo Peru nos últimos vinte anos, as enormes desigualdades existentes, o sofrimento, a frustração e o rancor causados por elas. Acrescente, além disso, a negligência do governo do presidente Beláunde Terry [1980-1985] no início, quando havia a idéia de que não se deveria sujar as mãos da democracia com a repressão do que parecia uma coisa menor, e o resultado final é esta espécie de Pol Pot [ditador do Camboja deposto em 1979 e cujo regime genocida inspirou o filme Gritos do Silêncio] peruano em potencial que é o Sendero Luminoso.
PLAYBOY – E quanto a sua situação pessoal nesse quadro de violência? Falou-se que você estaria numa “lista negra” do Sendero Luminoso.
VARGAS LLOSA – Ninguém tem a vida garantida no Peru do jeito que as coisas estão, infelizmente. A violência vem geralmente acompanhada por uma grande insensatez, e não se pode descartar – dentro da imbecilidade tão evidente em quem acredita que se pode resolver os problemas do país matando ou seqüestrando gente – que alguns pensem que matar um romancista vai fazê-los ganhar pontos na batalha pela justiça social. Mas sou um pouco cético quanto [risos] ao Sendero Luminoso fazer listas para que a polícia descubra. Ou se mata as pessoas, ou não se mata. Não me parece muito sério.
PLAYBOY – Há pouco você lembrou que esteve na Nicarágua no ano passado. Parece que você se surpreendeu com as possibilidades de se manter o pluralismo na sociedade nicaraguense, não?
VARGAS LLOSA – Eu tinha a impressão, de fora, de que a Nicarágua já tinha optado por uma forma de socialismo autoritário. Quando cheguei, verifiquei que não era assim, ainda. Que havia uma resistência interna suficientemente forte para haver detido ou feito diminuir muito esse projeto totalitário. Não cheguei tampouco à conclusão de que a Nicarágua é uma sociedade democrática. Por outro lado, me pareceu notar uma tendência nos diversos dirigentes sandinistas com quem conversei – não sei se era impressão autêntica ou a impressão que me quiseram dar, por eu estar fazendo uma reportagem para a revista dominical do The New York Times. Mesmo não estando dispostos de forma alguma a ceder o poder, pareciam, sim, dispostos a distanciar-se da União Soviética e de Cuba se, em troca disso, lhes fosse garantida a sobrevivência, eliminando-se a ajuda americana aos chamados “contras”[guerrilheiros financiados pela CIA que lutam contra os sandinistas].
PLAYBOY – Você compartilha a opinião de alguns setores latino-americanos segundo os quais o governo do presidente Ronald Reagan tem, na verdade, empurrado a Nicarágua para o endurecimento e para maior aproximação com a URSS e Cuba?
VARGAS LLOSA – Desde quando estive lá, lamentavelmente a situação mudou muito, há um endurecimento recíproco que evidentemente não vai no sentido do que eu pensava. Acho que os sandinistas não precisam que lhes empurrem muito em direção a URSS e Cuba…Por outro lado, a visão dos EUA parece ser a de que se pode conseguir a derrubada do sandinismo, e isso tem a sua contrapartida nos sandinistas: bem, como não há absolutamente nada a fazer por esse lado, temos então que fazê-lo pelo outro.
PLAYBOY – Na primeira página de Conversa na Catedral, o personagem Zavalita pergunta: “Quando foi que o Peru se jodió?”Você acha que a América Latina toda está nesta situação, ou existe uma saída viável e democrática?
VARGAS LLOSA – Se olharmos para os últimos dez anos, vamos verificar que, numericamente, a América Latina é a região do mundo que tem mais democracias – mais que a própria Europa! E, em todos os processos eleitorais ocorridos nesses dez anos em países como Argentina, Brasil, Uruguai, Peru etc., em nenhum caso – nenhum! – as forças que representam posições antidemocráticas, sejam de extrema-direita ou extrema-esquerda, mereceram o apoio do eleitorado. Sempre que consultados, os povos latino-americanos fizeram opções civilizadas de consenso, convivência e pluralismo. Portanto, se depender exclusivamente dos povos latino-americanos, que podem
“São nossos intelectuais que optam por soluções totalitárias, e militares e certos políticos só querem mesmo o poder”
ser ignorantes, explorados e desamparados, eu tenho, sim, confiança. Infelizmente não tenho a mesma confiança se nós consultarmos as elites: são nossos intelectuais os que optam por soluções totalitárias ou de legitimação de violência, e são as instituições militares e certos setores políticos os que vêem como objeto da política não a liberdade e a justiça, mas o poder e o controle do poder.
PLAYBOY – Como você se define politicamente hoje?
VARGAS LLOSA – Acho que a justiça social é fundamental e que se deve lutar por ela, mas considerando que a liberdade é um ingrediente da justiça. Creio que, para o desenvolvimento de um país, é importante que a intervenção do Estado seja a menor possível, em favor da livre participação dos indivíduos. Que ideologia garante melhor isso? Creio que todo um espectro de posições que se podem chamar de centro – desde um centro-esquerda a um centro, ou mesmo um centro-direita. Eu quisera para a América Latina uma espécie de síntese, que você me dirá impossível, mas que eu acho que não, porque há casos em que já nos aproximamos disso, do seguinte: de um lado, um Felipe González [primeiro-ministro socialista da Espanha], um homem que encarne o socialismo democrático com o que ele tem de preocupação com os setores mais desfavorecidos e de esforço para ir reduzindo a proporções humanas as diferenças sociais, que são inevitáveis. E, de outro, uma pessoa como Margaret Thatcher [primeira-ministra conservadora da Grã-Bretanha], que está disposta a travar uma batalha terrível para fazer diminuir o Estado, que é o grande inimigo da liberdade e, além disso, do progresso autêntico – porque ele significa sempre burocracia, ineficiência e, sobretudo, um entrave à iniciativa e à vigilância criativa das pessoas.
PLAYBOY – O que sobrou do Vargas Llosa marxista?
VARGAS LLOSA – O que está vivo absolutamente em mim é uma indignação ante a injustiça, e eu creio que foi o marxismo que me levou a isso, embora ele não tenha o monopólio desse sentimento. Nisso, creio que sou o mesmo Vargas Llosa de há trinta anos. Agora, muitas outras coisas mudaram, é lógico. Hoje estou convencido de que o marxismo não reduz a injustiça, ao contrário, muitas vezes a aumenta, dando-lhe uma nova forma. Mas minha passagem pelo marxismo também me ensinou a ver o papel fundamental, o papel capital que o fator econômico tem no movimento geral da sociedade, embora eu não creia no determinismo econômico marxista.
PLAYBOY – Já estamos nos aproximando do final da entrevista. Voltemos então à literatura, seu maior interesse: qual é a qualidade sua que mais lhe agrada como escritor, e qual é o defeito que mais o aborrece?
VARGAS LLOSA – Creio que a qualidade principal é a teimosia: sou capaz de trabalhar com teimosia, insistência e perseverança, até que o que me parece impossível aconteça. Meu maior defeito é uma insegurança que me desgasta tremendamente. Meus romances tomam três ou quatro anos – e uma grande parte desse tempo eu passo duvidando. Com o correr dos anos isso não diminui, ao contrário, creio que sou mais autocrítico e mais inseguro. Talvez por isso não seja vaidoso: tenho uma consciência talvez exagerada e excessiva de minhas limitações.
PLAYBOY – Isso já lhe deu a tentação de deixar de escrever?
VARGAS LLOSA – Não, nunca. Deixar de escrever, jamais. Eu sei que não vou deixar de escrever até morrer. Escrever é para mim minha natureza, a vida toda se organiza, para mim, em função do meu trabalho. Se eu não escrevesse, me daria um tiro.
PLAYBOY – A vida já lhe deu tudo?
VARGAS LLOSA – [Risos] Se eu pensasse que a vida me deu tudo, eu não estaria aqui sorrindo.
PLAYBOY – Basicamente, falta realizar o quê?
VARGAS LLOSA – Bem, quero escrever ainda muitos livros, e livros melhores do que os que eu escrevi. Quero ter aventuras mais interessantes e ricas do que as que eu já tive. Não admito, além disso, sequer a possibilidade de que o melhor ficou para trás. Mesmo que fosse certo, eu não admitiria, não?…
PLAYBOY – Então, a pergunta final: por que razão você descreve?
VARGAS LLOSA – Eu escrevo porque não sou feliz. Basicamente, escrevo porque é uma maneira de lutar contra a infelicidade. [Sorriso]
Entrevista publicada na Revista Playboy em maio de 1986.