A guerra, como sabemos, é uma experiência tão antiga quanto o homem. É, sempre foi, por excelência, exceto nos velhos filmes de Hollywood que a romantizavam, um denso repositório de horrores e misérias. É uma fábrica de vítimas, e a primeira é a verdade, na frase célebre – hoje citada a três por dois, sem identificação do autor, como verdade axiomática – do senador republicano norte-americano Hiram Johnson, ferrenho partidário do isolacionismo de seu país em plena I Guerra Mundial.
Vítima frequente das guerras, e sem dúvida dessa que opõe os aliados ao regime terrorista do Iraque, também costuma ser o puro e simples senso comum. Este vem sendo atropelado sem dó nem piedade por muitos dos movimentos pacifistas que começam a pulular em toda parte, muitas vezes como mero disfarce do antiamericanismo, na comparação que se faz entre a atual campanha e a guerra do Vietnã. Por mais gritantes que sejam as diferenças entre as duas situações, não custa repisar algumas delas – já que o óbvio, como sempre lembrava Nelson Rodrigues, é algo invisível, impalpável e espantoso para um número surpreendente de pessoas.
A guerra do Vietnã foi um colossal equívoco do establishment americano, em boa parte admitido hoje por ele próprio. Tratava-se de conter o expansionismo soviético no Sudeste Asiático, a partir da teoria dos dominós – caindo o Vietnã do Sul sob o comunismo, tombariam, tais como peças de dominó alinhadas precariamente em pé umas ao lado das outras, os países vizinhos, numa ameaça intolerável ao equilíbrio entre as superpotências e aos interesses da segurança americana. Em pequeno grau o dominó funcionou: unificado o Vietnã sob a bandeira de Ho Chi Minh, regimes comunistas se estabeleceram no Laos e no Camboja.
Mas a coisa pararia por aí, seja graças a ferrenhas ditaduras militares pró-ocidentais como a da Tailândia, seja via soluções como a da Indonésia, que deteve qualquer dominó por meio do banho de sangue que ceifou meio milhão de comunistas já em 1965, com o golpe do general Suharto. E a forma mais eficiente de conter o comunismo acabou sendo a espetacular escalada de desenvolvimento capitalista que fomentou prosperidade e distribuiu riqueza em regimes politicamente fechados no que hoje são os Tigres Asiáticos.
Na atual Guerra do Golfo, luta-se sob o amparo de um princípio comezinho de Direito Internacional – o de que um Estado soberano não pode ser militarmente anexado por outro, como ocorreu, de maneira ostensiva, escandalosa e arrogante, com o Kuwait diante do Iraque [no dia 2 de agosto de 1990] – que, por acaso, envolve um dos maiores produtores de petróleo do planeta, um crucial fornecedor de combustível ao Ocidente e um baluarte da estabilidade econômica dos Estados Unidos, da Europa e do Japão.

Simultaneamente, iniciou-se a operação porque o maior aliado do Ocidente no Golfo Pérsico, a Arábia Saudita, estratégica e politicamente ainda mais importante do que o Kuwait, estava ameaçada. [No dia 16 de janeiro de 1991, uma coalisão internacional sob mandato da ONU, integrada por 34 países e liderada pelos Estados Unidos, iniciou uma campanha militar para expulsar o Iraque do Kuwait, formalmente anunciada pelo então presidente norte-americano George H. Bush.] É, como se vê, absolutamente diferente do que ocorreu no Vietnã.
Não se comparam as duas guerras também do ponto de vista da legalidade formal. A intervenção no Vietnã nunca foi autorizada expressamente pelo Congresso americano, tendo o presidente Lyndon Johnson se utilizado para tanto de artifícios como a resolução do Senado sobre o Golfo de Tonquim, de 1965, que se seguiu a um ataque a um navio americano. Mais tarde, o presidente Richard Nixon ordenaria bombardeios ao Camboja que, de tão ilegais, foram mantidos escondidos do Congresso, da imprensa e da opinião pública. No Iraque, a comunidade internacional, liderada pelos EUA, é quem autoriza a intervenção armada. A União Soviética, apesar das reticências dos últimos dias, votou na ONU pela possibilidade de intervenção, países tão árabes como o Egito seguiram o mesmo caminho e a China comunista, que poderia vetá-la, não o fez.
Inexistem, também, no atual conflito, os componentes emocionais que derrotaram os EUA no Sudeste Asiático. Se, por um lado, os EUA perderam a guerra porque não queriam envolver a China no conflito se fossem decididamente à caça das linhas de suprimento de vietcongues e norte-vietnamitas fora do território do Vietnã, a derrota mesmo deu-se em casa, com a oposição interna ao envolvimento militar. Hoje, porém, embora não se possa prever quão duradouro será o apoio da opinião pública americana à guerra ao Iraque, não existem os garotos que amavam os Beatles e os Rolling Stones e foram arrastados compulsoriamente para morrer nos pântanos do Vietnã. As Forças Armadas americanas são profissionais desde a década de 70. Não há serviço militar obrigatório: é soldado quem quer, quem se alista voluntariamente para seguir carreira ou passar um período de sua vida numa das quatro Armas.
Outro componente emocional do Vietnã – a ideologia – está longe de existir no atual conflito. O bravo povo descalço que lutava por sua liberdade diante do colosso imperialista em que as esquerdas acreditavam cedeu lugar, agora, a um tirano hediondo, que preside um dos regimes mais despóticos do mundo, que usou armas proibidas pela Convenção de Genebra contra seu próprio povo, que ataca a população civil de um país, como Israel, não abrangido no conflito só para ampliá-lo politicamente, que está causando um dos maiores desastres ecológicos da História – e por aí vai.
Nada mais diferente do Vietnã do que o Iraque.
(Artigo de Ricardo Setti publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 31 de janeiro de 1991, sob o título original de “O Iraque não é o Vietnã”)