Para quem ficou meses distante, é penoso o reencontro com o Congresso Nacional [fechado a 13 de dezembro de 1968 pelo Ato Institucional númereo 5, baixado pelo presidente-marechal Costa e Silva e somente reaberto em outubro de 1969, para a “eleição” do general Garrastazu Médici como presidente do regime militar]. A situação é especialmente constrangedora com relação à Câmara.
O Senado ainda mantém traços de sua velha dignidade, e, além de expedir com regularidade pronunciamentos de importância, tem a vantagem de poder escudar-se na desculpa de ter a maioria de seus membros empenhados em duríssima campanha por uma eleição majoritária.
Mesmo com quórum mínimo, o Senado ainda é suportável. A Câmara, não.
O panorama da outra Casa do Congresso é desalentador: plenário às moscas (ao final da sessão de sexta-feira, 31 de julho, deste 1970, por exemplo, havia dois deputados presentes, além do presidente), discursos monótonos e desimportantes, apartes previamente acertados ou solicitados, comissões em sonolentas sessões.
A maioria dos deputados ostenta uma cautela que chega às raias do ridículo, as galerias andam absolutamente vazias – nem turistas estão aparecendo mais no prédio que, segundo disse recentemente o deputado Caruso da Rocha [MDB-RS] a um grupo de visitantes gaúchos, “foi um dia projetado por Oscar Niemeyer para abrigar um Poder”.
Mesmo em momentos de crise intensa, de perplexidades e incertezas, o Congresso manteve outrora uma característica que hoje também desapareceu: ser um centro precioso de informações, tanto da sua própria área, é claro, como de outros setores, especialmente o Executivo.
Com o encerramento da escolha dos governadores pelo presidente-general Médici, secou uma fonte de novidades que alimentou durante bom tempo a imprensa. Agora, cronistas políticos de renome como Carlos Castello Branco ou Evandro Carlos de Andrade perdem pouco de seu tempo indo ao Congresso.
A falta de notícias é uma tortura diária e estafante para os jornalistas que não cobrem os trabalhos de plenário ou comissões e têm a seu cargo preencher colunas com informações de bastidores.
Esta semana, por exemplo, ocorreu um fato curioso que merece registro e mostra a avidez pelas novidades: o presidente da Câmara, deputado Geraldo Freire [Arena-MG], estava reunido com um grupo de jornalistas à cata de assunto. Lá pelas tantas, um dêles comentou que o ex-vice-presidente [e ex-presidente do Congresso] Pedro Aleixo estava em Brasília, falando em criar um terceiro partido.
Em poucos minutos, ficou vazio o gabinete de Geraldo Freire. Um a um, todos os jornalistas foram saindo em busca de Aleixo, deixando o presidente da Câmara entregue à sua própria falta do que dizer.
Esta última semana foi uma boa mostra do vazio político da Câmara: das centenas de discursos pronunciados, salvam-se três – um do deputado Herbert Levy [Arena-SP] sôbre a economia cafeeira do País, outro do deputado Clóvis Stenzel [Arena-RS] sôbre as atividades no exterior do arcebispo de Olinda e Recife, dom Helder Câmara – que ensejou um debate com a liderança do MDB – e outro do deputado federal [e ex- ministro da Justiça] Pedroso Horta [MDB-SP], verberando o assassinato de um líder sindical.
Convenhamos que não é muito para uma Câmara de 300 deputados. Os outros discursos são de uma comovedora falta de interêsse. Um apanhado rápido mostra, por exemplo, o importantíssimo pronunciamento do deputado Athiê Jorge Cury [Arena-SP], presidente do Santos Futebol Clube, sob o ilustrativo título de “Que o Senhor Bom Jesus de Iguape inspire o governador Sodré e o ministro Mário Andreazza”, ou então, o brilhante discurso do deputado Rezende Monteiro [Arena], de Goiás, contendo reivindicações para fazendeiros do sudeste de seu Estado.
Ou ainda, a oração do deputado Levy Tavares [Arena-SP], sôbre a entrega de uma medalha a um industrial do Amazonas, ou o necrológio que o deputado Wilson Roriz [Arena-CE] fêz de um deputado estadual do Ceará. Temos também o transcendental discurso do deputado Francisco Amaral [MDB-SP] em defesa da Ponte Preta de Campinas, vítima de m “complô programado”: caso seja campeã paulista de futebol, disse, não poderá disputar a Taça de Prata.
Para encerrar a lista – meramente exemplificatória – podemos lembrar que o deputado Cid Rocha [Arena-PR] pediu estradas para seu Estado, o deputado Lyrio Bertolli [Arena-PR] elogiou o Incra e o deputado Benedito Ferreira [Arena-GO] elogiou o presidente Médici.

Quarta-feira passada, 29 de julho, alguns jornalistas ficaram surpresos quando, lá pelas cinco da tarde, soaram com estridência as campainhas do plenário da Câmara, que em outros tempos serviam para interromper os debates muito acalorados ou extra-regimentais.
Mas não era nada de anormal. A sessão já estava encerrada e um funcionário testava o dispositivo: as campainhas não tocam há tanto tempo que correm o risco permanente de se estragarem.
Desde que foi suspenso o recesso, em outubro do ano passado, não se tem notícia de que qualquer projeto do govêrno ou de seu interêsse tenha sido rejeitado ou alterado substancialmente pelo Congresso. Muito menos qualquer dos decretos-leis baixados pelo general Médici foi recusado.
O Congresso mostra uma curiosa, não voluntária e absoluta identificação de propósitos e pontos de vista com Executivo que, longe de engrandecê-lo, só diminui sua imagem diante do próprio Poder maior.
O Congresso de 1964, apanhado em meio de mandato pela tempestade revolucionária [era obrigatório no Jornal da Tarde referir-se ao golpe como “Revolução”, e suas ações como “revolucionárias”], tinha consciência de exercer uma certa missão. Atuava e influía nas decisões de poder e assumia sempre, consciente das últimas implicações de cada medida adotada, sua quota de responsabilidade.
O Congresso de 1967, atuando sob o império de uma ordem constitucional que a maioria sabia precária, [já que a Carta foi em boa parte imposta pelo então presidente Castello Branco], teve momentos de independência e altivez e correu todos os riscos por suas atitudes, até seu momento final e culminante: a crise de dezembro de 1968 [com a recusa da Câmara em autorizar o processo contra o deputado oposicionista Márcio Moreira Alves e a decretação do Ato Institucional número 5, que levou à ditadura à sua mais espessa escuridão].
O resto de Congresso que aí está, onde a opinião é confundida com a contestação e a independência com a rebeldia, é um Congresso que só tem um estímulo: a esperança de remotos e incertos dias melhores. Levado pela Constituição de 1969 [baixada pela Junta Militar que passou a governar no lugr do marechal Costa e Silva depois que este teve um derrame] cumprir um papel decorativo e simbólico no regime, só resta ao Congresso ser o pulmão político do País, a sentinela crítica do Executivo e o guardião das liberdades democráticas.
Enquanto não volta o País ao Estado de direito, com a revogação dos Atos Institucionais que pendem, ameaçadores, sôbre a generalidade das cabeças políticas, o Congresso sómente pode subsistir como instituição, impor-se à opinião pública e à própria chamada Revolução, pela atuação corajosa, serena e desprendida de deputados e senadores.
Caso contrário, continuará sendo um apêndice submisso e silencioso do Executivo, alvo da indiferença e mesmo da chacota popular.
O atual Congresso, mutilado, amedrontado e desinteressado, dificilmente poderá deixar de lado sua melancólica rotina de dizer “amém”.
A esperança dos políticos que ainda se preocupam com a sorte do regime é o próximo Congresso, nascido das próximas eleições. Mas isso é assunto para outro dia.
(Artigo de Ricardo Setti, enviado especial a Brasília, publicado pelo Jornal da Tarde, de São Paulo, a 3 de agosto de 1970, s0b 0 título original de “Aqui existia a Câmara dos Deputados”)