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Coube e cabe de tudo no PDT, o partido do governador eleito do Rio, Leonel Brizola: cantores de péssimos antecedentes e políticos de tradição trabalhista, radialistas demagogos e economistas de formação competente, velhos colaboradores do regime militar e social-democratas de perfil moderno, fisiologistas de todo gênero e liberais no desvio. Parece só não ter lugar para quem é amplamente considerado um dos homens mais sérios do Congresso Nacional: o deputado carioca César Maia.

O PDT está arremessando às fogueiras de sua inquisição interna um deputado que, embora de oposição, julgou ser seu dever para com o País apontar o que considerou positivo no novo pacote do Planalto. Não interessa, aqui, discutir se o deputado está ou não na direção certa ao defender uma decisão do presidente Fernando Collor que o grande repórter político Carlos Castello Branco classificou de “a quebra de uma forte esperança que recua para o passado como uma bandeira em funeral”.

Mesmo sem saber seu destino no PDT, e não mais parecendo especialmente preocupado com isso – “meu voto é do partido, mas a minha consciência é inegociável”, assinalou –, o deputado tem lamentado a mesquinhez de conceitos que preside as relações políticas no Brasil. Lembrou, por exemplo, que, nos países civilizados e democráticos, o sucesso do governo não é visto como uma derrota da oposição, “ao contrário, gera um outro patamar de demanda”. É isso que talvez valha a pena discutir.

Um aspecto interessante do caso é que o PDT deve muito a César Maia. Foi ele, por exemplo, o principal responsável pelo esquema de apuração paralela das eleições de 1982, que detectou a probabilidade de uma fraude em marcha no chamado “caso Proconsult” e garantiu a eleição de Brizola para seu primeiro governo no Rio. Uma vez o engenheiro no Palácio Guanabara, foi César Maia quem viabilizou seu governo como secretário da Fazenda.

Cabe notar também que o deputado teve espírito partidário para sufocar sua própria e justa pretensão de se apresentar, dentro do PDT, como pré-candidato à sucessão de Brizola em 1986. Na ocasião, cedeu lugar ao nome que o governador impunha – o do hoje senador Darcy Ribeiro – para ser vítima de uma acachapante derrota eleitoral diante de Moreira Franco.

Mais tarde, durante a campanha presidencial de 1989, Maia sofreria a ameaça do cadafalso por ter mantido encontros sigilosos com o então candidato Fernando Collor. Mesmo assim, permaneceu no PDT, embora, como sabem os poucos jornalistas que estiveram junto ao núcleo do comando da campanha Collor na ocasião, se tivesse aderido ao favorito poderia ter escolhido o ministério que quisesse no futuro governo.

O irônico é lembrar qual foi o ambiente que serviu de cenário à primeira maldição lançada por Brizola contra o apóstata César Maia: Viena, na Áustria, onde o governador eleito do Rio participava de uma reunião da Internacional Socialista. Ora, a organização é justamente um cenáculo de líderes pragmáticos e flexíveis, acostumados às divergências internas e à convivência com opiniões contrárias.

Agora mesmo, devido à guerra do Golfo, pôde-se notar com perfeição como é dividido em alas o Partido Socialista francês do presidente François Mitterrand: o ministro da Defesa, Jean-Pierre Chevènement, que renunciou por divergir da posição de seu país no conflito, é um dos cardeais da ala esquerda do partido e foi substituído por um dos purpurados da ala conservadora, Pierre Joxe. Diverge-se, mas não se crucifica ninguém.

Inúmeros dirigentes da Internacional Socialista, supostamente amigos de Brizola, protagonizaram, ao longo de suas biografias, incontáveis episódios de tolerância democrática. O próprio Mitterrand, por ter perdido a maioria parlamentar, teve de coabitar com um primeiro-ministro conservador durante mais de dois anos. O presidente português Mário Soares está há quase cinco vivendo essa exata e precisa situação. E por aí vai.

Brizola, portanto, pouco aprendeu com seus confrades social-democratas europeus. Mas – justiça seja feita – o engenheiro e seu PDT não estão sozinhos. Lamentavelmente, é a regra na vida política brasileira a selvageria da patrulha ideológica, como vem sentindo na pele, entre outros, o prefeito petista de Campinas, Jacó Bittar, que ousa afirmar que pretende governar para toda a população, e não só para os militantes do partido. No caso específico do PDT,  que começa a achar que César Maia não merece permanecer no partido, a verdade talvez seja justamente o contrário.

(Artigo de Ricardo Setti, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 7 de fevereiro de 1991 sob o título original de “César Maia, o apóstata”)

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