(Não preciso explicar muito o título deste artigo. Basta o eventual leitor deste site ler o texto e vai ficar bem clara a razão. Previ determinado papel para o governador de São Paulo, Franco Montoro, na sucessão presidencial e quebrei a cara.)
Devem ter sido as bolhinhas do champanhe natalino, generosamente vertido nas taças da Nova República, ou, quem sabe, a modorra da digestão do peru da noite de 24 de dezembro. O fato é que, para os políticos do PMDB que analisaram com distância e enfado a reunião de governadores promovida pelo governador Franco Montoro em São Paulo nesta antevéspera de Natal, parecem ter escapado lições do manual de política que remontam a séculos antes de Maquiavel.
Não é fácil, de fato, compreender a minuciosa contagem de cabeças que foi feita para, a partir do resultado aritmético, julgar se foi um sucesso ou um fracasso o evento. Não é, também, de importância absoluta contabilizar se não integraram a revoada de governadores personalidades como o Sr Moreira Franco [governador do Rio], o sr Newton Cardoso [governador de Minas] – até porque ambos estão, agora, empenhados numa espécie de nostálgica e demodée cruzada anti-São Paulo na política brasileira. A consulta a um manual de política, desses bem elementares, revelará que para um governador em final de mandato, com sucessor eleito e até as horas contadas para deixar o palácio – um clássico lame duck, um “pato manco”, na terminologia norte-americana do poder – é uma proeza reunir em torno de si 19 de seus pares atuais, futuros ou recentes.
O direito de não gostar dos outros, e especificamente o de não gostar de Montoro, está assegurado na Constituição – mesmo na atual, uma mistura da que foi baixada pela junta militar em 1969 com a maquiagem que lhe providenciou o ministro Petrônio Portella. Além de garantido, deve-se ressaltar que ele é exercido com grande apetite, inclusive dentro do PMDB. Mas, no caso da reunião de governadores, não se pode confundir desafeição com miopia: Montoro, gostem dele ou não, já tem a primazia de alguns corpos na corrida pela sucessão do presidente José Sarney.
Convém que não se desdenhe do governador. Os jornalistas mais atentos e de melhor memória ainda se recordam dos risinhos de escárnio que Montoro provocou, ainda em 1983, quando colocou determinada ideia na cabeça – até que ela se transformasse na campanha pelas eleições diretas para a Presidência. Frustrado o sonho das diretas – vale lembrar -, foi ainda ele quem começou a costurar uma teia de alianças então aparentemente inviável – Maluf, àquela altura, parecia indestrutível no Colégio Eleitoral – mas que desembocaria no triunfo de Tancredo Neves. Morto Tancredo, e com o presidente Sarney à frente de uma nova república de pernas trêmulas, ainda uma vez mais coube ao governador de São Paulo a iniciativa, com a esperteza política de atrair até o Sr Leonel Brizola para uma cerrada bateria em favor das instituições.
Mais recentemente, nas eleições para a sua própria sucessão, cruciais para os destinos do PMDB, ele se constituiu no solitário e teimoso portador do estandarte da candidatura Orestes Quércia — seu vice mas não o candidato de seus sonhos — mesmo quando ela batia em números horrendos nas pesquisas de opinião e era abandonada, de forma em alguns casos escandalosa, por levas de prefeitos que se jogavam nos braços do empresário Antônio Ermírio de Moraes [candidato pelo PTB].
É claro que, ao final da reunião desta semana em São Paulo, o governador não pôde exibir um vistoso coral de vozes em favor do encurtamento do mandato de Sarney. Mas Montoro, que não é bobo, não esperava isso: sabendo que é tema para a Constituinte, qual é o governador, dependurado nas verbas de Brasília, que vai se indispor com o presidente? Certamente já bastam a Montoro outros trunfos para exibir na preliminar da disputa presidencial – a luta pela sucessão dentro do PMDB, que se aproxima, inexorável, em janeiro.
Um deles é a própria realização da reunião. O outro é a presença, nela, de dois notórios adversários de Montoro na disputa do bastão de Sarney – o governador Hélio Garcia, de Minas, e o senador eleito e ex-governador do Paraná José Richa. Um terceiro é o firme posicionamento dos presentes em favor da reforma tributária, que implica redistribuir recursos hoje centralizados em Brasília aos Estados e municípios que os produzem. Em contrapartida, o mais próximo rival de Montoro, o Dr Ulysses Guimarães, ultimamente só anda toldando seu passado de glórias com sua ânsia de acumular funções.
Para Montoro, até que não está mal este começo.
(Artigo de Ricardo Setti, de São Paulo, publicado no Jornal do Brasil em 28 de dezembro de 1986, no espaço tradicional de opinião “Coisas da Política”)
