
Provérbios chineses parecem certos escândalos da história republicana do país, como o Plano Cohen [documento falso detalhando uma conspiração comunista para tomar o poder usado como pretexto pelo governo de Getúlio Vargas em 1937 para justificar o golpe de Estado que deu início à ditadura do Estado Novo. A suposta conspiração incluía uma série de ações, inclusive assassinato de políticos de destaque]: quando eles não existem, são inventados.
Há um provérbio chinês, porém, que não só existe como foi largamente aplicado para explicar, na década passada, a espetacular ressurreição política do atual homem-forte do país, Deng Xiaoping: “Não se golpeia um cão debaixo d’água.” A moral da história, naturalmente, é o que o simpático animal, ao livrar-se do embaraço aquático, pode investir mais tarde contra quem se prevalece de sua momentânea desvantagem.
Com menor grandiloqüência histórica, o milenar dito chinês pode aplicar-se à sucessão paulista, na pessoa do candidato do PMDB ao governo do Estado, Orestes Quércia. Abandonado por prefeitos apressados, desprezado por setores “intelectuais” do partido, dado como morto pelos adversários, ei-lo a pleno vapor, tal qual fênix caipira renascida das próprias cinzas, a atropelar as pesquisas eleitorais com folgada vantagem sobre seus dois concorrentes mais próximos, o empresário Antônio Ermírio de Moraes, do PTB, e o deputado Paulo Salim Maluf, do PDS.
Quércia, então, está eleito? A pergunta, naturalmente, só duas instituições poderão responder: para quem crê, isso pode ser feito de imediato por Deus, apesar das dificuldades, no caso, de se estabelecer com ele um canal direto; num terreno mais pragmático, os números virão, mesmo, do Tribunal Regional Eleitoral, provavelmente já no dia 16 de novembro. Os dois rivais de Quércia com certeza ainda têm esperanças de reverter o quadro. Há mesmo indícios de que um deles se prepara para a tentativa usando um estoque de lama que nem mesmo o nível rasteiro da atual campanha eleitoral fazia supor possível.
A divulgação de pesquisas já está vedada por lei há 48 horas, e o público não terá mais esse recurso à mão para rastrear o vigor que a candidatura Quércia ainda pode exibir. De todo modo, mesmo se computadas apenas as últimas três ou quatro semanas, o vice-governador protagonizou uma proeza digna de entrar nos manuais de eleições. Sequer as canhestras explicações que forneceu para seu envolvimento em um negócio cheio de sombras com o notório sr Ronald Guimarães Levinsohn arranharam a exuberância de sua arrancada.
Agora, os especialistas, perplexos, debruçam-se sobre o fenômeno, tentando explicá-lo. Fala-se na excelência do programa eleitoral do PMDB pela TV; busca-se efeito mágico nos patéticos telegramas que Quércia enviou ao Palácio do Planalto cobrando confisco de bois no pasto [faltava carne no mercado, entre muitas outras coisas, por falta de reformas no Plano Cruzado contra a inflação] com a mesma sede com que ele próprio laçava votos; especula-se sobre o fim da “resistência das elites” à imagem política acanhada que o candidato projetava; recorda-se a força da máquina do PMDB; é possível que já haja engatilhadas teses acadêmicas com densas justificações sociológicas para se oferecer em um futuro breve aos interessados.
Mas existe um fator no fenômeno Quércia que não vem merecendo a necessária atenção dos nefelibatas explicadores de eleição. É um dado da equação que tem nome, CPF, carteira de identidade e endereço: André Franco Montoro, 70 anos, advogado, governador do Estado de São Paulo. Quem compartilhasse do frugal almoço do governador um mês atrás, na ala residencial do Palácio dos Bandeirantes, e o ouvisse falar da sucessão paulista, poderia se imaginar sentado na frente de um marciano.
Quércia estava quase 20 pontos atrás de Ermírio, que embolava com Maluf na disputa da dianteira, não se passava um dia sem que uma nova defecção se fizesse com espalhafato no PMDB e o governador, lépido e risonho, mostrava-se tão seguro da vitória do candidato quanto estava de sua própria, em 1982, quando massacrou o rival do PDS com quase 3 milhões de votos de vantagem.
O governador já se achava, então, mergulhado até o pescoço na operação-resgate de Quércia. Foi ele quem enquadrou os secretários de Estado que torciam o nariz ao candidato. Foi ele quem puxou as orelhas dos prefeitos e deputados que debandavam do partido, estabanados como estudantes em passeata fugindo da polícia. Foi ele quem pegou o candidato pelo cotovelo e começou a percorrer o estado em comícios. Foi ele quem dobrou até a relutância em ajudar Quércia que percebeu no símbolo-mor do PMDB no país o deputado Ulysses Guimarães.
O mérito de Montoro deve ser multiplicado pelo fato, notório, mas nunca tornado público, de que seu candidato in pecto à própria sucessão não era Quércia, mas o deputado Mario Covas, ex-prefeito de São Paulo.
Também com o governador pode-se aplicar o provérbio chinês. Aos que o imaginavam inepto, apresentou uma administração competente, em que a maior obra não tem fita de inauguração para ser cortada: a moralização administrativa e o saneamento financeiro do Estado. No mais – que não é pouco -, só quem nunca visitou uma cidade do interior na vida pode zombar de obras como os famosos 4 mil quilômetros de estradas vicinais de que Montoro tanto se gaba – parte de um programa que não deixará um único aglomerado de gente em todo o estado a mais de dez quilômetros do asfalto.
Político paroquial? Bem, um leve esforço de memória vai indicar Montoro como o articulador do primeiro grande comício pró-diretas e o tecelão que, após o naufrágio da emenda Dante de Oliveira, ficou boa parte da sustentação que levou Tancredo Neves a esmagar Maluf no Colégio Eleitoral. Morto Tancredo, lá estava Montoro enfileirando todos os governadores de Estado – nem Brizola escapou – na frente de apoio responsável pelo primeiro empurrão político que fez andar o governo Sarney. Nesta eleição, se Quércia vencer, Montoro, tal qual um caçador de vampiros do século XIX, terá pela segunda vez cravado uma estaca no peito de Maluf.
Por tudo isso, a história desses últimos anos da vida brasileira vai acabar fazendo justiça ao governador Franco Montoro. Em todo caso, não custa a imprensa diária já ir começando a exercitá-la.
(Artigo de Ricardo Setti, de São Paulo, publicado no espaço “Coisas da Política” do Jornal do Brasil em 26 de outubro de 1986 sob o título original de “Montoro e o provérbio chinês”)