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(Texto da primeira página do Jornal do Brasil de 30 de outubro de 1989)
O imponente jato Challenger prefixo N102ML, da Líder Táxi Aéreo, está manobrando para decolar do aeroporto de Ilhéus, na Bahia. São 23h30 de uma noite agradável de céu estrelado, e Fernando Collor de Mello, candidato favorito à Presidência da República, está encerrando seu 164o dia de uma febril, devastadora campanha eleitoral. Ele já voou, hoje, mais de 1.500 quilômetros, tem mais 1.000 pela frente, fez cinco comícios e seis carreatas no Oeste baiano, trocou de roupa quatro vezes, rodou 156 quilômetros de estradas, caminhou pelo menos nove quilômetros e ainda não fez nenhuma refeição decente, mas pouco dá sinal disso.
Minutos depois, já em velocidade de cruzeiro, Collor pede à aeromoça um chá com bolachas cream cracker. Como sempre, senta-se na parte de trás do Challenger, ao lado da mulher, Rosane, que freqüentemente viaja à janela. Os demais nove lugares do avião estão ocupados. Entre outros, ali vão passageiros invariáveis, como os dois seguranças pessoais, o tenente Dário César Correa e o sargento Luis Amorim, licenciados da PM de Alagoas, e o secretário Celso Freitas Cavalcanti.
Collor, contrariando a praxe, não aproveita o vôo para dormir. Mais tarde recorre a outro hábito: depois de um dia duro, um uísque sem gelo, caubói. A comitiva chega a Brasília à meia-noite e meia. No desembarque, rápido, Collor engana seus assessores, senta-se ele mesmo ao volante do Santana que foi esperá-lo e, tendo só Rosane no carro, arranca pela noite rumo a sua casa no Lago Norte.
O padrão Collor de campanha termina o dia com um fecho adequado para quem, entre outras proezas, pulou uma janela para entrar num aeroporto e, no meio de uma carreata empacada, saltou para a garupa de uma moto desconhecida. (termina texto na primeira página, passa-se à página 3).

Para o grande teórico da comunicação Marshall McLuhan, como se sabe, o meio é a mensagem. Para Fernando Collor, a campanha é a mensagem. Basta seguir o candidato em sua busca de votos pelo país para perceber que são os símbolos emitidos pela campanha, muito mais do que os discursos, que comunicam a mensagem de Collor. É por meio de seu comportamento, de seus gestos, de suas atitudes, de sua música, barulho e luz que Fernando Collor passa ao eleitorado, seja ou não verdade, o que pretende ser sua marca – juventude, força, resistência, coragem –, numa estratégia que mistura o instinto do candidato com o planejamento da equipe.
Há, em primeiro lugar, o ritmo frenético, alucinante, que confere às passagens de Collor pelas diferentes cidades uma característica de aparição e, simultaneamente, transmite a impressão de alguém que está com pressa, que tem muito ainda por fazer e não pode perder tempo. Em geral, como ocorreu na semana passada em Guanambi (BA), quando não está nos grandes centros Collor já salta do avião para o meio da multidão que invade os aeroportos e, muitas vezes, vai esperar o jato à beira da própria pista de aterrissagem.
Suas carreatas passam em velocidade vertiginosa, debaixo do estrépito de buzinas e foguetórios. Os “encontros com lideranças locais”, como as três dezenas de prefeitos que o deputado estadual Fernando Bastos (PFL) reuniu em sua fazenda Guadalajara, perto de Guanambi, são puramente simbólicos: Collor chega como um furacão, aperta dezenas de mãos, dá abraços, autografa camisas e minutos depois já está zarpando. “A rapidez faz com que o Fernando mostre ao povo uma capacidade de se multiplicar”, analisa o deputado Renan Calheiros, líder do PRN na Câmara e um dos mais próximos colaboradores do candidato.
Os discursos são curtíssimos. Em Ilhéus, por exemplo, dias atrás, Collor falou dez minutos cravados a uma multidão que o esperava há três horas. Com isso, ganha tempo e esconde uma característica negativa: o favorito das pesquisas é um mau orador de palanque. Collor não modula a voz, não faz pausas dramáticas, não alterna ironia e fúria como os grandes tribunos. Seu tom permanente é o que poderia se chamar de rouco-exaltado. Os temas e os bordões são sempre muito semelhantes: “Venho em nome daqueles que têm sede de justiça.” (…) “Prometo um governo com vergonha na cara.” (…) “Vamos acabar com essa gente corrupta e incompetente que infelicita o Brasil.” (…) “Querem calar a minha voz, mas o povo não é bobo, não se deixa enganar pelos falsos profetas.” (…) “Ainda tem muito marajá por aí, minha gente, e o maior deles é esse presidente [refere-se a José Sarney] que está levando o Brasil a esse mar de desesperança.”
Há algumas adaptações regionais. Se está no Nordeste, ele vocifera contra “o magote de cabras safados que estão neste governo”. Se está no Sul, assegura seu destemor dizendo: “Sou um camarada que tem faca na bota”.
O orador fraco é compensado por outros recursos. O vigor físico, por exemplo. Em Dourados (MS), recentemente, Collor escalou pela frente o pequeno púlpito do palanque de onde falaria, como se fosse um trapezista. A multidão delirou. Em Ilhéus, logo no desembarque, uma segurança local, apatetada, não conseguiu abrir as portas da apinhada estação de passageiros para que o candidato, já envolvido por uma centena de pessoas na pista e a passos rápidos, entrasse. Collor mudou de rumo, tentou uma porta secundária, não conseguiu, fez meia-volta e acabou, de um salto, entrando por uma janela. A platéia, admirada, reagiu: “Ohhhh…”

Foi outra a reação do cameraman Joedson, de uma das três equipes de televisão que se alternam seguindo o candidato: “Meu Deus, eu filmei, mas o equipamento não gravou”, chorava ele. O ímpeto com que Collor anda a pé, num ritmo que provoca destroncamentos em tornozelos e joelhos de assessores e jornalistas e chega a levantar poeira de ruas em que o cortejo passa, também impressionou o eleitorado. A empresa de pesquisas Vox Populi, que faz levantamentos para o candidato, constatou, em uma reunião de grupo com eleitores comuns para a avaliação qualitativa de seu desempenho, que o esbanjamento de saúde é um ponto positivo. “Eu gosto dele porque é um candidato que sua, mesmo”, admirou-se uma dona de casa.
Outro elemento com que o candidato joga é o fator surpresa. Em Caitité (BA), Collor impacientou-se quando a camionete aberta que o conduzia emperrou num congestionamento e não teve dúvidas: saltou ao chão e pulou na garupa de um motoqueiro que se dirigia ao comício. De outra feita, em Teresópolis (RJ), o tempo fechado e escuro de final de tarde complicou o vôo do grande helicóptero tipo Sapo, de 11 lugares, que o conduzia, e o comandante, preocupado, com dificuldades de localizar o campo de pouso, perguntou:
– Governador, a gente aborta a operação ou insiste?
Collor:
– Nós vamos descer de qualquer maneira.
O empresário Paulo Octavio Pereira, amigo de há vinte anos e um dos principais colaboradores de Collor, conseguiu avistar um pequeno campo de futebol, e o helicóptero desceu ali. Todo o esquema de recepção com automóveis e seguranças ficou, naturalmente, furado. Collor nem hesitou: pediu carona a vizinhos do campo de futebol, e assim chegou ao compromisso seguinte.

Além do fator surpresa, tais gestos transmitem a quem os presencia uma sensação de coragem. É a mesma coisa que ocorre com o hábito de Collor – que virou uma de suas marcas registradas – de mergulhar literalmente no meio do povo, chegando aos palanques pela frente, e não pelos lados ou pelos fundos, como os outros candidatos. É só segui-lo, numa penosa e arriscada empreitada em meio a cotoveladas, empurrões, pisadas e empurra-empurra, para constatar a admiração: “Esse é valente”, “O homem é macho”, “Ele é fogo” são as frases que se ouvem. “O contato com o povão o deixa em estado de graça”, atesta Claudio Humberto Rosa e Silva que, mais que assessor de imprensa, é um dos estrategistas fundamentais da campanha. “A ligação dele com o povo é uma coisa física, algo que só vi antes no Fidel Castro quando moço”, compara o embaixador Marcos Coimbra, cunhado e colaborador do candidato, que era um jovem segundo secretário da embaixada brasileira em Havana quando o líder cubano entrou triunfalmente na capital, em 1959, derrubando a ditadura de Fulgencio Batista.
Gosta, mas também não exagera. Collor detesta ser agarrado, preso em seus movimentos, e, não raro, desfere cotoveladas em eleitores mais entusiasmados, prevalecendo-se do físico de lutador de karatê do passado. Se ele usa colete de kevlar – espécie de fibra sintética – à prova de balas, como se chegou a divulgar, então abandonou de vez o hábito nos últimos dias, porque não há evidência de nada sob a camisa invariavelmente molhada de suor e colada ao corpo.
De todos os elementos de convicção do candidato, porém, o mais eficiente talvez seja o próprio aparato que envolve sua chegada, nos aeroportos e nos comícios. Em cidades pequenas e médias do interior, sobretudo, o efeito é, ao pé da letra, espetacular. Quando o Challenger corta o céu da cidadezinha e faz voltas antes de pousar, o povo já grita e aplaude. Depois, há o enorme foguetório do desembarque e o frenesi da carreata embandeirada. Vez por outra, um helicóptero de filmagem faz vôos rasantes sobre a comitiva. Nos comícios, sobretudo os noturnos, o clima é de show de rock. Os conjuntos musicais responsáveis pela animação vão num crescendo, aí entra o locutor oficial – Isve Cavalcanti, um profissional impecável no ramo –, que começa a brincar e dialogar com o povo:
– Aqui tem mais homem que mulher … Quem for homem levanta a mão!
– É Collor ou não é? É Collor ou não é?
Quando Collor já vem se aproximando, o carro de som, a todo vapor, já toca Fé Brasileira, do conjunto Chiclete com Banana, ou então o hino da campanha, em ritmo de batucada – “… no dia quinze/o Brasil vai collorir/ e vai dar Collor/do Oiapoque ao Chuí”. O palanque chega a tremer com o barulho. O locutor aumenta de tom:
– Vem chegando o futuro presidente da República, Fernando Collor de Mello. É o presidente mais jovem da história do Brasil. É o caçador de marajás, é Fernando Collor …
Collor assoma o palanque e chega ao púlpito. Vem com seu especialíssimo conjunto de gestos: os dois punhos fechados para cima, as duas mãos fazendo o “V” da vitória ou com ambos os polegares para cima, ou, como agradecimento, os dois punhos fechados, cruzados sobre o peito, com a cabeça levemente abaixada, um sorriso colado no rosto. Neste momento, irrompe uma música triunfal, tipo Assim Falava Zaratustra, de Wagner, um canhão de luz daylight azulada focaliza só o candidato, e arrebenta um foguetório que dura um, dois minutos. A multidão aplaude, grita, pula. A impressão é de que se quer apresentar o candidato como um Luke Skywalker vindo impetuosamente de algum lugar para combater imprecisos Darth Vaders. Não é surpresa que toda essa parafernália impressione. Em Guanambi (BA), enquanto Collor não voltava ao aeroporto, as pessoas, reverentes, visitavam o jato birreator Challenger com a compunção com que se entra num templo.
Todo esse ritmo de campanha, exige, naturalmente, um enorme esforço de Collor. O candidato perdeu alguns quilos – quantos, exatamente, nem ele contabiliza. Algumas rugas se acentuaram no rosto, a voz anda rouca, o estopim mais curto. No comício de Ilhéus da semana passada, quando, terminado o discurso, Collor gesticulava e acenava, mas o sistema de som recusava-se a entrar com o sambão da campanha, ele virou-se para trás, rápido, o sorriso de uma fração de segundos antes transformado num rosto de fúria, e gritou:
– Cadê essa música aí, porra?
Para enfrentar o desgaste, Collor se cuida. A bordo do Challenger – ou, quando as pistas do interior não permitem, de um avião menor – ele não come outro sanduíche que não de queijo. Procura dormir sempre que possível. “Ele tem um controle de dormir da zorra. Diz ‘Vou dormir’, e apaga”, espanta-se a jornalista baiana Neide Beto, responsável por parte do material do programa do candidato no horário eleitoral e pela TV Collor, um serviço de divulgação que consegue enfiar reportagem pró-Collor em 40 emissoras comerciais do país, pelo link da Rede Manchete. Ninguém no avião fuma. Bebe água, quase nunca suco ou refrigerante, e o uísque caubói só aparece quando terminaram todos os compromissos da jornada. Troca de roupa algumas vezes durante o dia, geralmente em alguma passagem pela casa do chefe político local. Usa, alternadamente, dois esplêndidos sapatos tipo inglês, de solado grosso, furadinhos e de amarrar, um preto e um marrom, que sempre estão brilhando quando desce do avião. É friorento, vez por outra pede para amenizar o ar-condicionado, e tem sempre à mão, na bolsa de Dário César ou de Amorim, um blusão de nylon claro.
A bordo, quando termina a agitação de um comício-carreata, procura relaxar e, conforme testemunho de um acompanhante recente, “vira um São Domingos Sávio, que contempla as nuvens, pensativo, e fala muito pouco”. Também lê pouco: raros documentos, corre os olhos nos jornais, detém-se, não sem vaidade, nas fotos suas publicadas. Minucioso, leva sempre no bolso da camisa uma pequena embalagem de colírio, e traz invariavelmente consigo, uma lata de pastilhas Valda.
Mal o avião pousa para a próxima etapa, porém, e dá-se a metamorfose: é sempre o primeiro a ir para a porta, agitado, o cansaço desaparece como que por milagre, e ele se ilumina quando sai na escadinha e ouve, do lado de fora: “Collor! Collor!”.
Vai começar mais uma etapa da campanha que descobriu uma fórmula original: é o primeiro videoclip político ao vivo de que se tem notícia. Até agora, Sílvio Santos à parte, tem dado certo.
(Reportagem de Ricardo Setti, desde Brasília, publicada no Jornal do Brasil de 30 de outubro de 1989 sob o título original de “Collor ao vivo faz videoclip político”)
Equipe do PRN faz marketing sobre o acaso
BRASÍLIA – O padrão Collor de campanha é algo que resulta em parte do instinto do presidenciável e em parte de diretrizes traçadas em conjunto pelo candidato e o comando de sua campanha, com algumas pitadas de acaso. A decisão de se fazer invariavelmente discursos curtos, por exemplo, foi tomada nas duas primeiras “reuniões de segunda-feira” – encontros semanais, que não são mais feitos, de Collor com a meia dúzia de assessores mais chegados –, uma na sede do Movimento Popular de Reconstrução Nacional, próxima à Torre de Televisão, em Brasília, e outra no escritório do empresário Paulo Octavio Pereira, na Asa Norte da capital.

“O candidato não deve encher o saco do povo”, propôs na ocasião o assessor Cláudio Humberto Rosa e Silva. Collor topou. Decidiu-se, então, acabar com a tradição brasileira de, em comício de candidato, falarem o prefeito da cidade, o deputado da região, ex-prefeitos, vereadores. Com Collor, só falaria, no máximo, a liderança local responsável pelo evento. No mais, o comício deveria ser um espetáculo: fogos, música, dança.
Crucial, para a campanha-show, foi outra tática: a de criar um “púlpito” no palanque de forma a evitar os “papagaios de pirata” e destacar a figura do candidato. A idéia surgiu de uma conversa entre Cláudio Humberto e o fotógrafo Antonio Ribeiro, da revista Veja em Brasília. Ribeiro reclamava que, do ponto de vista profissional, palanque era tudo igual: uma massa de políticos se espremendo. “Vocês têm que dar um jeito de limpar a área para deixar o candidato aparecer”. Cláudio Humberto observou fotos de comícios americanos e concordou com a tese. Hoje, no púlpito, que avança para a frente do palanque e às vezes fica mais alto do que ele, só ficam Collor, Rosane e, eventualmente, o promotor local do comício.
Já a decisão de levar a mulher aos comícios foi do próprio Collor. É estranho que outros candidatos não façam o mesmo, porque funciona de forma exemplar. Rosane às vezes enxuga o suor da testa do marido, aplaude, sorri. Em Sorocaba (SP), dias atrás, não resistiu a uma passagem do discurso de Collor e o abraçou. O público aplaudiu.

Foi também Collor quem percebeu o impacto de chegar aos comícios entrando no meio do povo. Aconteceu por acaso em Imperatriz (MA), no dia 29 de setembro. Quando a comitiva acorreu à praça central, percebeu que o público tomara o local tanto à frente como atrás do palanque. Não havia outra forma de chegar lá a não ser contornando a praça por ruas adjacentes. O senador João Castelo (PRN-MA), um tanto assustado ante a decisão de Collor de ir em frente, avisou: “O povo aqui faz questão de pegar no candidato”. Collor foi, e notou o entusiasmo da platéia quando chegou ao palanque despenteado, com a roupa amassada e arranhões nas costas.
Da mesma forma, o costume da caminhada rápida começou sem querer em Codó (MA), no dia seguinte, sob um sol de 40 graus. O avião King Air que o conduzia teve que frear no meio da pista de aterrissagem, por temor do comandante quanto à segurança do público que invadira o aeroporto. Collor pulou do avião e marchou dois quilômetros até a pequena estação de passageiros, seguido por gente aplaudindo. Os dois movimentos acabaram virando peças de seu marketing.
(Reportagens de Ricardo Setti, de São Paulo, publicadas no Jornal do Brasil em 30 de outubro de 1989)