10 de janeiro de 1991
Jânio e a memória nacional
Repousa nas mãos do juiz titular da 2ª Vara de Família e Sucessões de São Paulo uma causa que tem tudo para parecer absolutamente rotineira. Ali, três filhas obtiveram o embargo de parte dos bens de família que, em decorrência da morte da avó, a mãe doou a uma instituição de caridade. Como se trata de uma disputa entre a família do ex-presidente Jânio Quadros, porém, o caso extrapolou os meros limites de pendengas entre anônimos.
Foi a filha única de Jânio, a deputada em final de mandato Dirce Tutu Quadros, quem decidiu entregar a uma instituição de caridade – o Amparo Maternal – parte dos bens originariamente pertencentes ao casal Jânio-Eloá Quadros algumas semanas depois da morte, em novembro, da ex-primeira-dama. As filhas pretendem que a Justiça determine a classificação e a avaliação do material. A advogada das moças argumenta que Tutu adquiriu, em testamento feito pela mãe Eloá, apenas o direito de uso sobre os bens. A filha de Jânio e mãe das três moças, por sua vez, diz que o gesto teve caráter ”humanitário”.
Ninguém teria nada com isso, nem caberia a um jornalista comentar o caso, se não estivesse aí envolvida a grave questão que é, no Brasil, o descaso com a memória nacional – e não houvesse, como há, a possibilidade de mais uma vez esfumarse ao menos parte de um acervo que talvez seja precioso para futuras gerações. Não há elementos para se imaginar qualquer má-fé de parte da deputada Tutu, nem compete aqui qualquer especulação sobre eventuais dificuldades em suas relações com o pai. Tudo isso é assunto rigorosamente pessoal.
Ocorre, porém, que determinados elementos no affaire chamam a atenção de quem se preocupa com a preservação de fiapos de nossa História. Deixando de lado o problema, relevante para outro tipo de discussão, sobre onde estariam, se é que existiam, quadros e tapetes persas valiosos do ex-presidente, que teriam deixado sua mansão no Morumbi, mas não chegado ao Amparo Maternal, permanece a indagação sobre se existe ou não valor documental no material atualmente em discussão na Justiça.
O material inclui, entre outras coisas, moveis, roupas, estatuetas de bronze, fotos de família, óculos, uma bengala e o famoso quepe da Guarda Civil que o ex-presidente usou em comícios na primeira fase de sua carreira política, além das celebradas chuteiras que dependurou em seu gabinete na Prefeitura, a partir de 1986, para passar o recado de que supostamente não tinha mais ambições de poder.
A coleção dos famosos bilhetinhos com que Jânio expedia ordens durante sua efêmera, frenética e desconcertante Presidência está com o ex-ministro da Cultura José Aparecido, que foi secretário particular do ex-presidente. Os livros e outros documentos de Jânio têm destino incerto desde sua mudança, dias atrás, da mansão que possui no bairro do Morumbi para um apart-hotel na região dos Jardins. Tutu chegou a dar declarações dizendo que os livros e o diploma de presidente conferido pela Justiça Eleitoral a Jânio estão consigo, e farão parte de um futuro Memorial Jânio Quadros.
O ex-presidente está doente, preso a uma cadeira de rodas e um tanto alheio ao que se passa à sua volta. Em longa conversa de toda uma tarde com este jornalista há um ano e pouco, porém, Jânio revelou que estava resistindo bravamente ao assédio da socióloga Celina Moreira Franco, diretora do Arquivo Nacional, desejosa de percorrer seus guardados da Presidência. Contou, então, que, embora virtualmente não guardasse material político sobre sua carreira anterior a Brasília, mantinha em caixas uma profusão de cartas, bilhetes, bilhetinhos, memorandos, relatórios e outros documentos sobre seu governo. Ele não tinha a intenção de doar o material nem de montar com ele um arquivo especial. “Essas caixas vão ficar com minhas netas, depois que eu me for”, adiantou o ex-presidente, nada falando sobre Tutu.
Hoje, é consideravelmente incômodo se travar um tipo de discussão como essa com Jânio vivo. Ocorre que, goste-se ou não do ex-presidente, ele é parte importante da História do Brasil e desde já se deve fazer o possível para que a rica documentação de sua trajetória não se perca. A atitude de Tutu, do ponto de vista do interesse histórico, decididamente não colabora em nada com essa preservação.
O contraste entre a forma como nós, brasileiros, encaramos a preservação de nossa memória e o que é feito em outros países é terrível. Não custa lembrar que o Museu da República, antigo Palácio do Catete, que guarda até os aposentos em que o presidente Getúlio Vargas se suicidou, não teve verba suficiente para estar apresentável ao público sequer por ocasião do centenário da República, em 1989. Já os americanos, por exemplo, têm o saudável hábito de, via iniciativa privada, instituir grandes bibliotecas com os documentos do período de seus presidentes mais recentes (os dos mais antigos estão em magníficos museus e universidades de primeira linha). Até a História do Brasil tem lucrado com isso. Foi na Biblioteca Lyndon Johnson, no Texas, que o atual editor do Jornal do Brasil, Marcos Sá Corrêa, garimpou em 1977 revelações inéditas e importantíssimas sobre o movimento militar de 1964 no Brasil e o envolvimento do governo americano no caso, transformadas em esplêndidas reportagens, publicadas em 1978 no livro 1964 Visto pela Casa Branca.
Ainda há tempo de se fazer algo pela memória política de Jânio.
Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 10 de janeiro de 1991