Em companhia de outros políticos da Aliança Democrática, Leonel Brizola (ao centro), Mário Covas e Ulysses Guimarães participam de comício das Diretas Já no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, a 16 de abril de 1984 (Foto: Arquivo O Globo)

Image
Reprodução do artigo publicado no tradicional espaço de opinião “Coisas da Política” © Reprodução

As eleições do dia 15 de novembro de 1986 estão aí – não se trata mais de uma questão de dias, mas de horas. E, à medida que se aproxima o momento em que 69 milhões de brasileiros poderão depositar na urna as cédulas da Justiça Eleitoral, chega também a hora da verdade para a Aliança Democrática, este saco de gatos que provisoriamente se estruturou para eleger Tancredo e Sarney no Colégio Eleitoral e para sepultar o velho regime.

No Brasil, como se sabe, o faz-de-conta desempenha papel tão relevante quanto nos roteiros de histórias da carochinha. Nossa coleção de magníficas ficções não faz inveja sequer à União Soviética, cuja Constituição – só para ficar num exemplo – é campeã imbatível dos direitos civis.

Pois bem, no jardim tropical das instituições nacionais de hoje, a Aliança Democrática tem a exuberância de uma samambaia desidratada. Mas ai de quem lembrar que ali falta clorofila. Basta ver o que aconteceu, dias atrás, com o candidato do PMDB ao governo da Bahia, Waldir Pires. Foi só o ex-ministro lembrar que o presidente José Sarney vai ter que repensar a composição de seu governo a partir dos resultados eleitorais para ser tratado como um diretor de multinacional no Irã do Aiatolá Khomeini. Dias depois, foi a vez do Doutor Ulysses, com seu impassível ar de faraó, ter que desdizer em grande parte o que efetivamente dissera no Planalto, apontando na mesma direção.

E, no entanto, o ex-ministro Waldir Pires, como o Doutor Ulysses, falou o que a voz das urnas vai clamar: o PMDB deve fazer a maior fornada de governadores de um só partido em toda a história republicana e vai ter maioria absoluta na Assembleia Constituinte. Nada mais natural, portanto, que o partido espere do presidente Sarney algum tipo de tratamento proporcional a seu peso – às custas, naturalmente, de seu parceiro na Aliança Democrática, o PFL.

É evidente que existem cargos no governo que “pertencem” ao presidente, por mais que a filósofa Marilena Chauí, do alto de seu charme erudito, esperneie, invocando os fundamentos ontológicos e até etimológicos da palavra “República”. Por outro lado, ninguém está exigindo de Sarney nada semelhante à “coabitação” em tortuoso andamento na França, na qual o presidente François Miterrand, com menos pompa do que o habitual, mas com um bocado de circunstância, tem tido que engolir um primeiro-ministro oposicionista com as rédeas da administração na mão.

Além disso, o presidente Sarney tem razão nos argumentos que discretamente destila em conversas privadas mantidas durante seu peculiaríssimo café da manhã no Alvorada, repleto de vitaminas importadas e cardápios nordestinos: sua autoridade e sua legitimidade decorrem, em grande parte, do enorme prestígio popular que nem essa era do pós-Cruzado conseguiu arranhar.

Nada disso, porém, pode implicar em ignorar os resultados das eleições de sábado e o desempenho – quase certamente estrondoso – do PMDB. É inimaginável, no plano das coisas deste mundo, que a experiência e a sensibilidade política do presidente o façam desdenhar da necessidade de afagar o PMDB, quando menos porque a própria duração do seu mandato estará em bom grau nas mãos do Doutor Ulysses, no volátil plenário da Constituinte.

Ficar agora insistindo na unidade da Aliança Democrática, na intocabilidade da composição do governo e em teses do gênero é brincadeira. Bastaria, para pôr à prova tais ficções, que o presidente hipoteticamente convocasse uma reunião plenária da Aliança em torno de uma mesa. Imagine-se o festival de cotoveladas, por cima da mesa, e o de pontapés, por baixo dela, quando tomassem assento lado a lado o mesmo sr. Waldir Pires das declarações-anátema e, digamos, o ministro Antonio Carlos Magalhães [ferrenhos adversários em sua Bahia natal].

Ou uma delegação mineira de que fizessem parte o governador Hélio Garcia e o senador-candidato Itamar Franco. Ou, quem sabe, um bloco paulista em que estariam o senador Fernando Henrique Cardoso e o ex-vice-governador biônico José Maria Marín, seu competidor na atual disputa pelo Senado que, na campanha eleitoral, como em sua longa carreira de péssimo cartola [do futebol], só bate da medalhinha para cima.

Marín ainda carregaria consigo um galardão adicional: o de ter conseguido fazer malufar, em São Paulo, o partido tirado de uma costela do PDS justamente para exorcizar o sr. Paulo Maluf no Colégio Eleitoral. Não existe um único Estado do país em que essa fileira de exemplos não pudesse ser enriquecida, se olhado com lente de aumento.

Tudo isso não quer dizer que o presidente vá ser obrigado a defenestrar do ministério todo o esquadrão do PFL. Muito menos que precise lançar mão de uma denúncia vazia para desalojar da Casa Civil seu fiel vizir Marco Maciel, com sua esguia figura de Modigliani. Mas, terá que haver um acerto, e este deve ocorrer ali pelo nutrido exército de nomeados que fervilha no rico segundo escalão da República.

Quem viver, verá.

Artigo publicado no Jornal do Brasil em 9 de novembro de 1986

 

        

DEIXE UM COMENTÁRIO

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *